Depois da “guerra” o bairro ganhou vida nova. A crise pode estragar tudo

O julgamento de 15 envolvidos nos motins de 2008, na Quinta da Fonte, Loures, começa esta quarta-feira. Nos últimos anos, os moradores empenharam-se na pacificação. Recentemente, o director do agrupamento de escolas escreveu à câmara para dizer que a tensão está a voltar. "Há fome no bairro", diz quem lá trabalha.

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As imagens dos tiroteios abriram os noticiários. E a “guerra” foi apresentada como um conflito entre moradores ciganos e moradores de origem africana — visão contestada por muitos dos que trabalhavam com a comunidade havia anos. Arruinada ficou a já frágil reputação que a zona tinha, como lamentam ainda hoje muitos dos que ali vivem. Por exemplo, Madalena Máquina, 41 anos, mãe de dois filhos, diz que de cada vez que vai a uma entrevista de emprego e explica que vive neste bairro, leva com uma cara franzida e desconfiada. “A minha filha, quando andava à procura de trabalho, só me dizia: ‘Mãe, temos de sair daqui, não há trabalho para quem é da Quinta da Fonte.’”

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As imagens dos tiroteios abriram os noticiários. E a “guerra” foi apresentada como um conflito entre moradores ciganos e moradores de origem africana — visão contestada por muitos dos que trabalhavam com a comunidade havia anos. Arruinada ficou a já frágil reputação que a zona tinha, como lamentam ainda hoje muitos dos que ali vivem. Por exemplo, Madalena Máquina, 41 anos, mãe de dois filhos, diz que de cada vez que vai a uma entrevista de emprego e explica que vive neste bairro, leva com uma cara franzida e desconfiada. “A minha filha, quando andava à procura de trabalho, só me dizia: ‘Mãe, temos de sair daqui, não há trabalho para quem é da Quinta da Fonte.’”

Quase seis anos passados, tem início nesta quarta-feira o julgamento de 15 pessoas que estiveram envolvidas nos confrontos. Três respondem por motim armado. Todas respondem por detenção de arma proibida. A maioria já não vive aqui — pelo menos, foi isso que nos foi sendo dito à medida que nos fomos cruzando com quem trabalha e vive nos prédios amarelos da Quinta da Fonte. Nuns há caixas de correio, noutros não, nuns há campainhas, noutros não, mas, dizem os moradores, as empresas de distribuição já entram no bairro sem problemas para entregar encomendas.

Como está hoje o bairro? “Há dez anos, quando aqui cheguei, estava caótico. Em 2008, aquilo que se viu [as cenas de tiros] já não correspondia exactamente à realidade do bairro. Mas quando algo de mau acontece, geralmente segue-se uma coisa boa”, diz Félix Bolaños, presidente do Agrupamento de Escolas da Apelação.

Tensão, outra vez

Depois dos tiros, o Governo anunciou um contrato local de segurança (CLS), que envolveu as freguesias da Apelação, Camarate e Sacavém, a câmara, a polícia, as escolas e dezenas de outras entidades — a experiência alargou-se depois a outros pontos do país. “De 2008 até 2011 foi feito um trabalho fantástico, que pode ser um exemplo europeu de como se faz uma intervenção [num bairro]”, continua o professor.

No último ano e meio, contudo, algo mudou. “E sente-se uma tensão muito grande [no bairro e na escola].” “Um nervosismo” como não se sentia havia muito tempo. Há cerca de um mês, Félix Bolaños escreveu uma carta à Câmara de Loures e a vários outros parceiros. Para dizer, no essencial, que até acha normal que o investimento público tenha diminuído a partir do momento em que uma certa normalidade se foi instalado. Mas que a crise atingiu em força a Quinta da Fonte. As pessoas perderam o emprego, “muitas têm perdido o rendimento social de inserção, ou os subsídios de desemprego, há muitos problemas alimentares” e “as famílias mais competentes” emigraram.

A Associação de Jovens da Apelação, que depois da “guerra” passou a ter entre os seus dirigentes vários rapazes do bairro, activos e influentes na comunidade, morreu. Estudaram, tiraram cursos e partiram. Também os mediadores que foram formados “são hoje muito menos”, continua Bolaños. Na verdade, mediador, com esse nome, só há um. “Largámos um bocadinho a rua.” Entretanto, nos últimos dois anos, foram realojadas cerca de 600 novas pessoas nos fogos que ficaram livres.

“Formalmente o CLS já não existe”, diz a vereadora da Câmara de Loures Eugénia Coelho (CDU). O Governo deixou de financiar. “Mas na última reunião com o ministro [da Administração Interna, Miguel Macedo, do PSD] ele disse que haveria um novo contrato, com outro nome, mas com a mesma filosofia. Estamos a aguardar.”

Nem a vereadora nem Félix Bolaños dramatizam. Há projectos que resistem e envolvem centenas de moradores. Mas é preciso investir, de novo, na formação de mediadores, sustenta o professor — sai mais barato do que ter o aparato policial que se viu, em 2008, no bairro. “A carta foi bem acolhida e já houve reuniões com vários parceiros.”

Câmara quer reabilitar

Eugénia Coelho confirma. Promete acompanhar os casos sociais mais graves e diz que haverá mais verbas para reabilitação de casas — no ano passado houve apenas 3000 euros para gastar na Quinta da Fonte, este ano serão 100 mil. “Era preciso mais, mas é um sinal do nosso empenho na reabilitação dos apartamentos.” Adília Conceição, 46 anos, 16 de bairro, dois filhos, está a perder a esperança. Mostra uma casa consumida pela humidade e uma pilha de requisições de exames médicos. Esta casa, diz, não lhe dá saúde.

A Quinta da Fonte foi construída num local isolado da freguesia da Apelação por duas cooperativas de habitação que acabaram por sofrer problemas financeiros e ter de vender vários lotes. Em meados dos anos 90, a maioria dos 800 apartamentos foram usados para realojar pessoas que viviam em barracas em zonas que iriam ser usadas para os acessos à Expo-98. Hoje, uma parte deles precisa de obras. Outros estão impecavelmente cuidados, como o de Madalena, que é a “presidente” do seu prédio — prédio que, aliás, chegou a receber o galardão do mais limpo do bairro num concurso que, entretanto, também se extinguiu. A distinção ainda está emoldurada à entrada.

Aida Marrano, coordenadora do Centro de Actividades de Tempos Livres (CATL) Verdine, do Secretariado de Lisboa da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, é uma das que recusam que os problemas locais tenham alguma coisa a ver com conflitos étnicos. Madalena, que trabalha voluntariamente no centro, “a fazer de tudo um pouco”, acena com a cabeça afirmativamente. É angolana. Há 30 anos que vive em Portugal. Diz que as pessoas de diferentes grupos juntam-se, organizam convívios, festas. Sim, concede, se calhar mais agora do que há uns anos...

O bairro tem problemas graves, prossegue Aida, mas são outros, e têm-se agravado: “Hoje há fome na Quinta da Fonte.” Muitas famílias vão às instalações da Pastoral para levar alimentos do Banco Alimentar, diz.

Sandra Andrade, 35 anos, mãe de três filhos, é uma delas. Faz limpezas, duas horas por dia, a 2,95 euros à hora. Apesar de procurar outras formas de ganhar dinheiro — no Verão é “a menina dos gelados”, porque faz gelados em casa e anda a vender na rua — não consegue ter as contas em dia.

O que falta é emprego

Todos os dias, meia centena de crianças do 1.º e 2.º ciclo comem, fazem os trabalhos de casa e aprendem “competências básicas de cidadania” no CATL. A poucos metros dali, algumas dezenas de adolescentes estão envolvidos nos programas de apoio ao estudo financiados pelo Escolhas (programa integrado no Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural). E muitos outros acabam os dias no pavilhão desportivo da escola, a treinar futebol, acompanhado por Tiago Lopes, um jovem do bairro, de 20 anos, dinamizador cultural, também do Escolhas.

No CATL, há duas semanas, o tema de trabalho com os mais pequenos foi “a violência”. Os meninos tiveram de inventar “uma história de violência que terminasse bem graças à intervenção de alguém”, explica Ricardo Santos, monitor, 23 anos.

Ricardo andou ele próprio no CATL. Era um miúdo no tempo da “guerra”, em 2008. Fez parte da primeira turma de capoeira promovida pela Alto Astral nas instalações do CATL. E diz que tudo isto é bem capaz de ter sido determinante na sua vida. “Levaram-nos a fazer acampamentos, fomos fazer apresentações em todo o país, conheci outras pessoas... se tivesse ficado na rua, se calhar tinha sido diferente.” A história dele acabou bem.

Outras são menos felizes. Na passagem de ano 2012-2013, Bartolo, 12 anos, estava em casa com a família e abeirou-se da janela pouco depois da meia-noite só para festejar um bocadinho. Na passagem de ano é comum que alguns façam a festa com tiros para o ar e Bartolo foi atingido. Ficou meses com uma bala alojada na cabeça.

Encontramos Manuela Kassmo, 44 anos, mãe de Bartolo, num curso de informática para desempregados dinamizada pela Pastoral nas instalações do Escolhas. À volta dos computadores há 22 homens e mulheres, de diferentes etnias. Aida Marrano pergunta se alguém quer interromper a aula para falar sobre como está o bairro hoje. Um homem diz que o pior que o bairro tem são os bares clandestinos — “que nem bares são” —  que estão abertos até às cinco da manhã, atraindo todo o tipo de actividades ilícitas. A queixa é partilhada por todos. Independentemente da cor da pele.

Já para Manuela Kassmo, a mãe de Bartolo, o maior problema é a falta de trabalho. No intervalo da aula abre um saco com pastéis fritos para vender aos colegas. Depois vai para casa e chora. Bartolo está bem. Tornou-se um símbolo do bairro, o seu rosto foi pintado num dos muitos murais que estão espalhados pela Quinta da Fonte, no âmbito de uma intervenção artística promovida pela câmara e o Teatro Ibisco. O problema é que depois de Bartolo ter sido atingido, o pai, Mário Silva, 46 anos, perdeu o emprego. Estava emigrado em França, onde trabalhava havia anos como armador de ferro, não voltou logo, porque era preciso responder às solicitações da polícia que investigava como tinha sido o menino baleado. Resultado: quando Mário quis voltar a França, já o tinham substituído. “Estávamos habituados a viver bem. Agora, às vezes nem tenho dinheiro para comer”, queixa-se Manuela.

Teatro da vida real

A poucos metros da casa de Manuela fica o centro de produção do Ibisco — Teatro Inter Bairros para a Inclusão e Cultura do Optimismo. O ambiente aqui é bem mais leve. Tatiana Pereira, de 17 anos, fala com alegria da peça que anda a ensaiar. Vai interpretar o papel de uma cigana chamada “Rosa Linda”. Como todas as peças do Ibisco, também esta se baseia em histórias reais deste e de outros bairros. Tatiana adora quando as peças são levadas à cena “e os moradores se emocionam”.

Eduíno Silva, 24 anos, detentor de uma vistosa crista no topo da cabeça, guineense, actor e tesoureiro do Ibisco, também transborda de energia positiva. Está envolvido num projecto que anda a entusiasmar toda a equipa: um “negócio social” que será galeria de arte, bar e ginásio polidesportivo. “Era um espaço abandonado, vandalizado, que a câmara nos cedeu”, explica Eunice Rocha, coordenadora do Ibisco. Estão a renová-lo com financiamento do Escolhas. Deverá ser inaugurado em Maio e garantir alguns salários. Eduíno vai gerir a parte do desporto. Os artistas do bairro poderão expor. Os pastéis de Manuela Kassmo poderão ser vendidos no bar.

Desafiados pelo Barclays, que aprovou um financiamento que garante uma boa parte das despesas do Ibisco, Eunice e os colaboradores estão também a lançar o “projecto Abota”. Objectivo: ajudar os residentes a encontrar trabalho ou a desenvolver o seu próprio negócio. Madalena foi contagiada pelo optimismo da equipa do Ibisco. O sonho dela era abrir uma pequena creche na Quinta da Fonte. Quem sabe, se calhar é possível.