"Estes homens estiveram frente a frente, tinham o dedo no gatilho e não dispararam"
Alfredo Cunha tinha 20 anos e era fotógrafo no Século há três. Adelino Gomes tinha 29 e estava proibido pelo regime de trabalhar para a Rádio Renascença. Passaram o dia 25 de Abril de 1974 ao lado um do outro, na rua, sem se conhecerem.
No livro Os Rapazes dos Tanques, de Alfredo Cunha (fotografia) e Adelino Gomes (texto), lançado esta terça-feira, às 18h30, no Torreão Poente, no Terreiro do Paço, onde tudo começou, os dois jorrnalistas revelam algumas das histórias destes oficiais, furriéis, cabos e soldados, os homens do “outro lado”. "É um acto de justiça”, diz o jornalista. Os dois trabalham há anos sobre a revolução, mas só se conheceram em 1990, na redacção do PÚBLICO, onde ficaram amigos. Este é terceiro livro que fazem juntos.
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No livro Os Rapazes dos Tanques, de Alfredo Cunha (fotografia) e Adelino Gomes (texto), lançado esta terça-feira, às 18h30, no Torreão Poente, no Terreiro do Paço, onde tudo começou, os dois jorrnalistas revelam algumas das histórias destes oficiais, furriéis, cabos e soldados, os homens do “outro lado”. "É um acto de justiça”, diz o jornalista. Os dois trabalham há anos sobre a revolução, mas só se conheceram em 1990, na redacção do PÚBLICO, onde ficaram amigos. Este é terceiro livro que fazem juntos.
Quarenta anos depois do 25 de Abril, o vosso livro “dá” uma notícia: a identidade do mítico cabo apontador que recusou disparar do seu tanque contra a coluna de Salgueiro Maia. Andavam à procura deste homem há 40 anos?
Adelino Gomes – Andámos 39 anos a ouvir falar dele. Várias vezes, como jornalista do PÚBLICO, tentei encontrá-lo, mas ninguém o conhecia. Quando decidimos fazer o livro, pensámos: é agora ou nunca. E encontrámo-lo.
Quanto tempo demorou?
Alfredo Cunha – Andámos um ano à procura dele e três meses desde o momento em que soubemos quem ele era.
Logo na noite do 25 de Abril, o alferes Fernando Sottomayor, o primeiro militar do regime que recusou disparar contra os revolucionários, contou a história: “E houve aquele cabo que não disparou…” Porque é que nunca se encontrou este homem?
A.C. – Acho que nunca se procurou bem.
A.G. – Não podemos esquecer que depois veio o PREC e isto desvaneceu-se. Ficou como mito. Catorze anos depois do 25 de Abril, há uma belíssima entrevista do Salgueiro Maia ao Fernando Assis Pacheco em O Jornal na qual ele próprio já efabula um pouco e já conta uma história e diz: “Foi aqui que se ganhou o 25 de Abril.”
O cabo apontador tem noção de que é visto dessa forma, ele leu essa entrevista?
A.C. – Não, ele não tinha a noção da importância que lhe era atribuída.
A.G. – Julgo que ele sempre soube que tinha feito uma coisa muito importante, mas que, perante si mesmo, desvalorizou. A superioridade dele está no facto de nunca se ter posto nos bicos dos pés. Acho que ele também teve prazer nisso.
Ele mesmo recusou louvores.
A.G. – Sim, ele diz que quando, na noite do 25 de Abril, começou a constar no regimento de Cavalaria 7 da Ajuda que “houve um cabo que disse ‘não’ ao brigadeiro Junqueira dos Reis [2.º comandante da Região Militar de Lisboa e o único oficial general que veio para a rua defender o regime], o foram buscar e disseram: “Conta lá a história.” Ele contou e disseram: “Eh pá, tu tens de ter um louvor!" E há um que se oferece logo para escrever. E ele diz: “Deixai-me ir em paz. Não quero louvor, quero-me ir embora.”
É um clássico anti-herói: não quis reconhecimento, não é politicamente engagé, nunca cantou a Grândola, nunca participou nas comemorações do 25 de Abril...
A.C. – Ele é um minhoto típico. É muito cuidadoso, tudo é feito com muita precaução, tudo é feito a pensar nas consequências. Foi um herói, mas um herói cauteloso.
A.G. – Cauteloso mas decidido. Quando toma uma decisão, assume as responsabilidades.
Com a tal “astúcia camponesa” de que falam no livro...
A.G. – Sim.
Ele nunca chega a dizer um “não” frontal ao brigadeiro Junqueira dos Reis que dá a ordem de fogo.
A.G. – É a melhor forma de enfrentar o brigadeiro. Se ele dissesse: “Eu não cumpro a ordem!”, havia para li um tiroteio. Ele diz: “Vou ver o que é que se faz”, e derrota completamente o brigadeiro. Com astúcia, com sageza. Perante o superior, derrota-se pela astúcia – não é preciso começar aos murros. Ou és como o David: tens uma fisga, vem o gigante e tocas no ponto. Ele tocou no ponto.
E como foi o encontro? Bateram a que portas?
A.C. – Eu fui várias vezes a Balazar. Sabíamos que havia um cabo apontador chamado José Alves Costa, que vivia em Balazar, mas não havia a morada. Várias pessoas com quem tinha falado sabiam vagamente e diziam: “Ah, conheço, venha cá tal dia…” Mas não havia nem sim, nem não. Falei duas ou três vezes com o presidente da junta de freguesia. Hoje estou convencido de que ele me ocultou mesmo, que não me quis dizer.
Porquê?
Não sei.
O cabo não queria ser encontrado?
A.C. – Sim, talvez não quisesse.
Mas como chegaram a Balazar?
A.G. – Começámos pelo Arquivo Geral do Exército, em Chelas, e fizemos um levantamento da lista completa dos homens que, depois do 16 de Março, vieram de Santa Margarida para a Ajuda para reforçar [o regime], ou seja, os cerca de 30 homens dos cinco tanques. As listas só tinham os nomes e à frente a especialidade: apontador, condutor... Depois, fomos ver quando é que eles tinham saído da tropa, para saber as regiões. Nas listas só está: José F. Costa. Vítor J. Rocha. O que é que isto nos diz? Depois, foi preciso ver em 1975 ou 1976 e tentar descobrir as ordens de serviço de saída. Andámos à procura, a catar, a catar, uma a uma. Deste levantamento, escrevi cartas, fui a algumas moradas. Uma vez fui à Pontinha e aproximei-me de uns homens, mais ou menos da minha idade, que jogavam às cartas. “Os senhores conhecem um homem chamado tal e tal?” Eles olharam-me com desconfiança. “Eu não sou fiscal das Finanças.” "Pois não, o senhor é o Adelino Gomes." Era um antigo condutor da Carris, que me conhecia do 25 de Abril. E ajudaram-me a procurar o tal homem. Não conseguimos. Vim a concluir mais tarde isto: como eles saíram durante o PREC, com a astúcia camponesa própria destas pessoas, num momento em que não se sabe como vão as coisas correr, provavelmente alguns deram moradas falsas. A verdade é que escrevi umas dez cartas e quase todas vieram devolvidas.
Essas cartas foram todas à procura do cabo José Alves Costa?
A.G. – Não só dele. Andámos à procura de várias pessoas. Há pelos menos dois cabos apontadores com quem não falámos. Um deles não quis falar. Não quer falar com a família, não quer falar com ninguém. Naquele momento, a seguir à revolução, há alguma desconfiança. Eles pensam: safei a pele, não matei ninguém, vou para casa.
Ele recebeu-vos com um “finalmente apanharam-me”?
A.C. – Não. Ele ficou satisfeito, surpreendido mas agradado. E houve uma reacção dos que estavam ao lado dele no café: “Ah é mesmo verdade!” E ele: "Eu não vos disse?” Depois pediu para sairmos dali. “Vocês não acreditaram em mim, agora não ouvem a história.”
Ligou logo para o Adelino?
A.G. – Sim e eu disse: não lhe faças pergunta nenhuma para ele não começar a inventar, para não estar a elaborar um discurso.
Porque é que teve esse cuidado?
A.G. – Já fiz muitas destas entrevistas e sei que há efabulação.
Este antigo cabo nunca tinha sido entrevistado?
A.C. – Ele mal tinha contado à mulher! Ele é um homem muito sólido. Disse sempre a mesma coisa. Já apanhei vários militares em várias contradições. As pessoas tendem a dourar a pílula. Ele não.
A partir deste ponto do vosso trabalho, começaram a juntar os outros homens dos tanques, os que estavam no Terreiro do Paço para defender o regime. Como foi esse encontro?
A.G. – Todos aceitaram, menos um, por razões circunstanciais. Juntámo-los e eles não se conheciam. Fomos nós que os apresentámos, alguns eram camaradas que no 25 de Abril tinham estado dentro do mesmo carro de combate. Ficámos muito impressionados com isso. Há muitas falhas nas memórias e daí também as contradições. Há coisas de que eles não se lembram mesmo. Fizemos como se faz numa reunião: alugámos uma sala no Inatel da Foz do Arelho e pedimos ao alferes Sottomayor para desenhar os quatro tanques no Terreiro do Paço num grande quadro na parede. E tentámos fazer a reconstituição das tripulações.
Quem estava onde, a que horas, a fazer o quê.
A.G. – Sim. Há duas ruas: quem estava em que rua e quem estava em cada um dos tanques? Não conseguimos! Mesmo ali, com todos juntos. Não se lembram. É tão traumático…
Como é que eles não se lembram se estavam ao pé do rio ou do outro lado?
A.G. – O máximo é isso. Mas os tanques não estiveram sempre no mesmo sítio... Eles não se lembram quem estava dentro dos tanques com eles. Há um dos condutores que diz que viu o brigadeiro Junqueira Reis a apontar a pistola. "Quem era esse fulano?", perguntámos. "Não sei, só sei que era mais velho, era da incorporação de 1972." Imagine como trabalha a memória. Foi por ali que comecei a achar que talvez fosse ele o cabo que procurávamos há tantos anos. Mas é importante dizer que eu próprio, jornalista que ando com estas coisas, dou por mim a não ter a certeza de coisas que penso que vi no 25 de Abril. E já me contaram episódios desse dia que eu diria que fui eu que fiz!… Nós vamos incorporando os discursos uns dos outros.
Os soldados de Santarém, que vieram com Salgueiro Maia, também se esqueceram de muitas coisas. Mas normalmente onde encontramos as contradições é na efabulação, não num quadro numa parede. E porquê? Porque a história dos homens de Santarém está contada desde o primeiro dia, no relatório de Salgueiro Maia. Ora, estes homens não têm relatório. Os vencidos não fizeram relatório, até porque aquelas pessoas, os comandantes, foram presas. Não se conhece um relatório da derrota.
A historiografia já não é só sobre os reis e os vencedores, já é sobre os pobres, os derrotados…
A.G. – Nós estivemos a tentar um bocado fazer isso. Salgueiro Maia contou a história oficial, o seu relatório é a fonte primeira. Os jornalistas que lá estavam contaram também. Depois vieram os historiadores. Essa história está contada. O que acontece nestes homens não é estarem a inventar: é meterem-se em algumas histórias. E alguns contam coisas que são incompatíveis com outras.
Estes homens, os que perderam, sentem-se os derrotados? Sentiram isso quando os reuniram na mesma sala?
A.G. – Não, nenhum! Nenhum. Pelo contrário. Alguns dizem mesmo: “Se não fôssemos nós, não teria havido aquele 25 de Abril como houve.”
Eles têm orgulho e consciência de que a sua sensatez foi crucial no 25 de Abril?
A.G. – Sim, só não sei desde quando. Há os que aderiram e têm orgulho. E há o cabo apontador Alves Costa que diz sempre: “Eu não aderi.“
Eles são derrotados, mas são ambíguos…
A.G. – Eles estão orgulhosos – e justamente. Acham que, se quisessem, tinham derrotado o 25 de Abril. Não derrotaram e têm muito orgulho nisso.
Mas não se encontraram uma única vez ao longo de 40 anos...
A.G. – Os outros também nunca os chamaram, se calhar. Não sei. Não me interessa isso. Mas há uma altura, quando eles viram a alegria das pessoas na rua, em que eles passaram todos a ser vencedores.
O vosso livro está cheio de emoções: homens tensos, homens com medo, homens que choram, homens que rezam. Nesse reencontro esse lado reapareceu?
A.G. – Não, os homens que rezam são os vencedores.
Porquê?
A.C. – Porque estiveram muito em perigo, sabiam que os outros os podiam matar a qualquer momento. Há um que nos disse: “Quando ouvi a ordem de fogo [dos tanques do regime], despedi-me da vida.” Eles dizem: “Se nós disparássemos, era o fim do mundo.” Nem se imagina o poder de fogo de uma arma daquelas. Seriam uma cratera de 100 metros. O Terreiro do Paço ficaria desfeito.
Naquela manhã, há pelo menos cinco homens que recusam disparar contra as tropas revolucionárias. Eles aperceberam-se logo disso?
A.G. – Foi imediato. A certa altura, dois dos carros de combate do regime passam para o outro lado e o brigadeiro Junqueira dos Reis já quer que os seus homens disparem contra esses tanques. O brigadeiro acaba por perder toda a adesão. Eles tiveram a sensação de que os outros já eram vencedores. Os outros foram cedo vencedores. De tal maneira que o Maia diz ao Otelo, lá para a cima [posto de comando da Pontinha]: “Eh pá, já não estou aqui a fazer nada.”
Que horas eram?
A.C. – Por volta das 11h30.
A.G. – Cedo há uma dinâmica de vitória do lado do Maia e cedo há uma dinâmica de derrota do lado do regime: perdem o alferes Sottomayor, que é preso; o brigadeiro Junqueira dos Reis dá as célebres estaladas ao capitão Alfredo Assunção [do lado de Maia]; vem um militar do regime e diz-lhe: “Ó meu brigadeiro, o senhor está muito exaltado…” E perdem metade da força.
No Tejo, também na Gago Coutinho uns militares não cumpriram as ordens de Seixas Louçã. No total, houve quantas desobediências? E é importante sabermos isso?
A.G. – O nosso livro não é sobre este cabo. É sobre estes homens que estiveram frente a frente. A história grandiosa é a dos homens de Salgueiro Maia, que vieram com menos homens, menos força e que derrotaram sucessivamente todos os que lhes apareceram pela frente, sempre numa posição de inferioridade. Com astúcia, com camaradagem. O livro tem 32 histórias e é sobre os homens da Cavalaria que, naquele microcosmo – entre o Terreiro do Paço e o Largo do Carmo – estiveram frente a frente, que tinham o dedo no gatilho e não dispararam.
São revolucionários sensatos, parece um paradoxo…
A.G. – Primeiro é-se revolucionário, depois é-se sensato. Primeiro é preciso avançar, sem medo. E depois, no acto da revolução, ele procura a sensatez.
A.C. – Os oficiais de Santarém tinham experiência de guerra. Quando havia tiros de metralhadora, o Maia dizia: “São fogachos.” Nem se baixava.
Não é difícil imaginar que tudo teria sido muito diferente, se tivesse havido um primeiro tiro…
A.G. – No livro há dois homens, os então capitão Garcia Correia e Joaquim Bernardo, que contam, com grande minúcia, como estava tudo preparado para, caso começasse a correr mal em Lisboa, irem a meio caminho buscar o Maia e entrincheirarem-se em Santarém. Ocuparam a PIDE, a GNR, a câmara municipal, a água e a luz. E ficavam ali até outras tropas se sublevarem. Era o Plano B. para garantir que se salvava a ideia da revolta.
Estamos a falar de soldados com enorme sensatez, de um lado e de outro, porque do lado de Salgueiro Maia também se desobedeceu a ordens para disparar. Como jornalistas, aperceberam-se disso naquele dia?
A.C. – Apercebi-me que houve ali bom senso e que não houve precipitação. Mas o regime caiu porque tinha mesmo de cair. Se analisarmos o golpe do ponto de vista militar, ali, no Terreiro do Paço, eles não tinham a mínima hipótese de vencer. Houve inteligência, estratégia e heroísmo por parte de Salgueiro Maia e dos seus homens, que souberam dar a volta aos que tinham a força. Usaram subtileza, souberam falar com eles. Eles eram todos de Cavalaria, eram todos “rapazes dos tanques”, que se conheciam. “Então eu durmo com ele na mesma camarata e agora vou disparar…". E, com isso, o Maia foi ganhando tempo. Isto ainda dura uma hora e tal. Ganhou élan e ascendente psicológico sobre eles.
Nunca senti hostilidade nenhuma, nem entre eles, nem connosco. Quando eu cheguei lá, não sabíamos quem era aquela gente, nem eles quem nós éramos – e sabia-se que os pides andavam na rua. Naquelas primeiras horas era preciso cuidado. Só quando o Salgueiro Maia me dá um raspanete, é que eu percebi o que era. Eu estou a fotografar meio escondido e ele diz: “Ó homem, ponha-se visível. Não ande escondido, porque isto é para haver liberdade.”
Ele usou logo essa palavra?
A.C. – Logo. E disse: "Se você for do contra, é connosco. Se for a favor, é ali com os outros, do outro lado." A partir daí andei sempre atrás dele.
A.G. – De um lado havia um homem com uma capacidade de liderança, carismático, que traz 200 homens, a quem explicou – ele e os seus homens – o que vinham fazer a Lisboa. Eles sabiam que vinham fazer um golpe, uma mudança – alguns até nos dizem: “Vínhamos acabar com a guerra do Ultramar.” Eles vêm atrás de um homem em quem confiam. Eles conheciam os seus chefes. Havia uma unidade. Do outro lado, alguns nem nunca tinham visto o brigadeiro Junqueira Reis. Havia uma distância.
A.C. – Eles eram reforços que tinham sido enviados para Lisboa…
A.G. – O único que tinha alguma liderança, que tinha vindo de Santa Margarida, é preso imediatamente pelo brigadeiro. Portanto, os furriéis, os alferes, os cabos, todos ficam sem chefe. Esta é uma razão absolutamente essencial para que de um lado haja a vitória e do outro o desmoronamento de uma força. Eles não vêm para coisa nenhuma. No dia 25 de Abril, o regime já estava a perder. Eles não vêm salvar o regime. Não vêm por um ideia, nem atrás de um homem. O que resta, o brigadeiro, anda para aí aos gritos a mandar dar tiros. Eles vêm numa acção de polícia. Os outros vêm com um ideal, mesmo que não fosse o mesmo para todos.
A.C. – A força do Maia está numa frase que um oficial disse, um homem de direita e conservador: “Eu, com o Maia, ia para todo o lado.”
O que é que ele tinha?
A.C. – Carisma.
Esse carisma revela-se como?
A.C. – Porque é que eu escolhi este homem para fotografar? A certa altura, vejo um tipo novo, com bom aspecto, que se movimentava por todo o lado a dar ordens a majores, a tenentes-coronéis, a toda a gente. Eu percebi: "Este é o chefe." E, quando ele me dá aquela reprimenda, percebi: "Este é mesmo o chefe." É isso que me põe atrás dele. Eu fotografo-o no Terreiro do Paço, na Ribeira das Naus, a correr à beira dos tanques… Andei sempre atrás dele. Ele sempre sereno, sem tensão.
Teve medo?
A.C. – Tive, tive medo. Houve uma altura, quando houve tiros, que me escondi atrás de umas obras do Banco de Portugal.
A esta hora, onde é que o Adelino estava?
A.G. – Eu não vi nada disto. Quando cheguei, já tudo tinha acontecido. Não vi nada. Cheguei às 10h30. Eles não deixavam ninguém passar. Eu nem tinha um gravador e estava sem carteira profissional porque estava proibido de trabalhar na rádio [Renascença]. Só consigo passar porque endromino um soldado. Fui para o meio do Terreiro do Paço e perguntei ao primeiro tipo que vi, o fotógrafo Carlos Gil: “O que se passa?” Quando cheguei e vi capacetes por todo lado, pensei: “Vamos lá a ver se são dos bons ou dos maus, se são dos capitães ou do general Kaúlza de Arriaga. Ao olhar para aquilo fiquei receoso. Porque eram todos de Cavalaria e a Cavalaria era uma arma tida como mais conservadora. E sabia-se que se o Kaúlza fizesse um golpe, as forças que o apoiariam seriam pára-quedistas, Força Aérea e, eventualmente, Cavalaria.
Quando falo com o Carlos Gil ele diz: “Não faço ideia. Mas porque é que não perguntas àquele tipo que está a mandar nisto?” “Quem é?” “É um capitão, chama-se Maia.” E eu vou ter com o Maia. Mas como eu conhecia o Maia, porque tinha andado com ele no liceu, eu vou como colega: “Ó Maia, de que lado é que estás?” “E ele responde: "Tu não tiveste um problema qualquer que te obrigou a ir para o estrangeiro?” Não nos víamos desde o 7.º ano do liceu. E ele dá-me uma resposta extraordinária, que é, para mim, o meu 25 de Abril: “Nós estamos a fazer isto para que ninguém tenha de ir para o estrangeiro por causa daquilo que diz ou daquilo que faz.” Dei-lhe um abraço, ele foi à sua vida e eu juntei-me aos jornalistas.
Durante algum tempo, até as forças saírem para o Carmo, fui uma espécie de go-between. Acontecia alguma coisa e vinham-me pedir: “Vai lá perguntar ao teu amigo…” Por volta das 11h, eles começam a levantar o dispositivo. E eu fui lá perguntar: “Ó Maia, o que é estás a fazer?” E ele: “Estou a dividir a coluna em duas partes: uma vai para a Penha de França, a outra para o Largo do Carmo." “E tu para onde é que vais?”, “Vou para o Carmo porque deve lá estar o Presidente da República e o presidente do Conselho.”
Há uma candura em tudo isso, com Salgueiro Maia a revelar a estratégia…
A.G. – É que ele não está a falar com o repórter, está a falar com o colega de liceu. “Então e tu não arranjas um carro para os jornalistas?” E ele dá a ordem: “Arranja um carro para os jornalistas!” E vai-se embora.
Foi aí que passou a jornalista em acção?
A.G. – Não. Subi para o carro dos jornalistas, mas não tinha nada comigo. Nem caderno, nem gravador. Mas quando a coluna avança, vêm uns tipos a correr. Eram dois repórteres do programa Limite, da Rádio Renascença, o que tinha posto a Grândola, Vila Morena no ar. O Carlos Albino, um jornalista do República, sem dizer que no dia a seguir ia haver um golpe, tinha dito: “Vocês amanhã estão no Terreiro do Paço às 6h." E eles lá estavam: o Paulo Coelho e o Pedro Laranjeira. E andavam por lá a trabalhar, até me entrevistaram, a mim, um jornalista desempregado, a pedir uma opinião. Aí, comecei a ficar nervoso. “Gostava mesmo de fazer reportagem”, pensei. E como eles não estavam em directo, calavam-se muitas vezes, iam à Renascença levar as bobines, no Chiado. A certa altura disse-lhes, com muita humildade: “Vocês não me deixam fazer um bocadinho de reportagem?” Eles foram generosíssimos. “Claro!” E passaram-me o microfone. Até fui um bocado egoísta, porque eu estou muito na reportagem, a certa altura não me controlei. Mas fui repórter pela generosidade de dois jornalistas.
E o Alfredo, como é que chegou ao Terreiro do Paço?
A.C. – Eu morava na Amadora, com a minha mãe e os meus irmãos. Tinha vindo de uma festa, eram umas 4h, e o meu irmão, que estava a ouvir um disco novo, o Riders on the Storm, dos Doors, chamou-me para eu ouvir. Estávamos nisto, quando a minha mãe nos chamou a dizer que estavam a passar na rádio comunicados a pedir para a população não sair à rua. E nisto o Mário Zambujal, que era o chefe de redacção do Século, telefona e diz: “Vem para a redacção, está a haver um movimento militar e não sabemos o que é.” Telefonou-me a mim e a toda a gente do jornal. Cheguei ao Século e ele disse: “Vão para o Terreiro do Paço, mas passem pela António Maria Cardoso [sede da PIDE]." Recomendou cuidado e deu-me vinte escudos: "Para o caso de acontecer alguma coisa e precisarem.” Ele era uma espécie de Salgueiro Maia da redacção do Século, não havia impossíveis. Na redacção, houve alguém que perguntou: “E se é perigoso?” E ele: “Sabes lá se é perigoso! Se não fores lá, não sabes se é perigoso!”
Ainda há coisas importantes para contar?
A.G. – Sim. Temos muitas dúvidas, isso vê-se no livro. O nosso livro não conta a verdadeira história do 25 de Abril. Conta a história de um conjunto de homens que estiveram frente a frente no dia 25 de Abril, através da memória que eles guardam desse dia, e a quem pedimos que nos dissessem como vêem Portugal 40 anos depois. É um conjunto de narrativas de homens, que hoje têm entre 60 e 70 anos, de uma geração que ajudou a arrancada de um capítulo que alguns pensam que precisa de ser reaberto ou reescrito. É uma homenagem a esses homens.
Mas ficaram coisas por esclarecer nos episódios que os nossos entrevistados descrevem (muitas vezes dando versões diferentes e até contraditórias) e cujo esclarecimento talvez se encontre noutros oficiais, sargentos e cabos com quem não chegámos à fala. Houve pessoas que não quiseram falar connosco, houve pessoas que não encontrámos, há coisas que seria bom saber, há coisas que ainda que vale a pena revisitar.
Não encerrámos a investigação sobre o 25 de Abril.
Depois do esforço do PÚBLICO em ouvir todos os homens da coluna vencedora de Salgueiro Maia [em 1999], nunca, como agora, tinha havido um esforço tão abrangente para ouvir aqueles que estavam do outro lado, nem em ouvir pessoas tão humildes. Em vez de nos concentrarmos sempre nos capitães, fomos também aos furriéis e aos soldados que nunca ninguém tinha ouvido. Talvez isso não dê mais rigor à história, mas dá vozes mais próximas das pessoas. Não é a visão do militar profissional, há muitos milicianos, é um pouco o povo que está aqui, são pessoas humildes, o cabo, o condutor. Não tem representatividade. São os que estavam ali e os que nós encontrámos. [Os dos quatro carros de combate] eram 20 a 25. Desses, ouvimos nove. Não encontrámos mais nenhum.
A.C. – E são os “rapazes dos tanques”.