Tudo isto é já o começo de um filme
Numa manhã de Fevereiro, João Tabarra guiava a crítica e historiadora de cinema francesa Nicole Brenez pela sua exposição antológica no Centro de Arte Moderna (CAM), na Gulbenkian, quando os dois pararam diante de uma fotografia em que o artista caminha num terreno baldio segurando uma bandeira branca onde está escrito: PLUS JAMAIS LA FIN DU MONDE. Nicole Brenez quis saber por que é que a frase estava em francês. “Porque a França está sempre em greve?”, perguntou.
Tabarra explicou que tentara em português e em inglês, mas nenhuma das línguas correspondia ao que idealizava. Um protesto, sim, mas poético. No último minuto, já com a equipa a postos e uma lata de spray na mão, ligou a um amigo em França e pediu-lhe ajuda: “Tenho um grande problema. Preciso de dizer isto em francês, mas em bom francês: ‘O fim do mundo nunca mais. Basta.0’”
“Para mim, esta imagem é o emblema da arte contemporânea”, disse Nicole Brenez. “Toda a arte do século XX joga com a ideia de catástrofe. O fim da história, o fim da linguagem, o fim das formas, o fim da humanidade. E aqui temos esta declaração, que anuncia um renascimento. Algo que está presente em todo o teu trabalho”, concluiu, dirigindo-se ao artista.
Brenez parecia quase aliviada. “Já tinha visto o trabalho do João mas só na Internet. E nunca a esta escala, o que é fundamental. E ainda não tinha visto os filmes. É como descobrir o Miguel Ângelo em postais: é muito bonito, mas depois uma pessoa tem de ir a Roma. E estou genuinamente espantada. Tenho tido a oportunidade de conhecer muitos artistas na minha vida e a maior parte das vezes quando depois vejo o trabalho deles fico desapontada.”
Uma narrativa maior do que o enquadramento
João Tabarra e Nicole Brenez conheceram-se em 2012, quando ambos fizeram parte do júri da competição internacional do DocLisboa. O artista nunca tinha sido membro de um júri e não tinha a certeza de querer abrir um precedente quando recebeu um telefonema às duas da manhã de um dos programadores do festival com o que foi menos um convite do que uma resolução irrevogável: “Não podes dizer que não.” Tabarra disse que ia pensar no assunto e depois daria uma resposta mas, no dia seguinte, os directores do Doc ligaram-lhe a agradecer ter aceitado o convite. Felizmente, encontrou boa companhia. “Quando duas pessoas gostam dos mesmos filmes, é óbvio que vão gostar uma da outra. Quando não se gosta dos mesmos filmes, não há volta a dar”, resume a crítica francesa.
Mas a cumplicidade não foi instantânea, como explicará Tabarra mais tarde, em sua casa. “No DocLisboa tivemos uma discussão muito acesa sobre um filme. Estava em causa a atribuição de um prémio especial e eu achava que o filme não merecia. Estivemos três horas a discutir, só nós os dois. Às tantas os outros membros do júri foram lá para fora beber e fumar porque já não aguentavam.” Naturalmente, parecia a causa mais importante do mundo na altura — mas hoje João Tabarra já nem se lembra do título do filme. “Acho que era um japonês qualquer...” Vai buscar o catálogo do festival, onde anotou as suas impressões sobre os filmes da competição. “Adorei tem que ter [prémio]!”, escreveu sobre um. Outra página, outro filme: “ODIEI”. E mais outro: “ZZZZZ”.
Fim da história: Tabarra foi ver o filme outra vez e apesar de considerar que ele não merecia o prémio especial, achou legítimas as motivações de Brenez. E votou a favor.
Apesar desse “desencontro muito grande”, forjaram uma cumplicidade, e João convidou Nicole para vir a Lisboa ver a sua exposição. Os dois planeiam trabalhar juntos num livro sobre a influência do cinema na obra do artista.
Brenez não tem dúvidas de que os filmes de João Tabarra presentes no CAM fazem todo o sentido numa sala de cinema como a Cinemateca Francesa, onde é programadora das sessões de vanguarda. “Temos um público muito aberto a novas formas. Tenho a certeza de que vão adorar. A textura, a qualidade plástica são perfeitas para o grande ecrã. Além disso, são bastante narrativos. Muitos deles contêm referências ao cinema, como Buster Keaton e alguns cineastas documentais. Além de que falam de temas muito profundos — onde estamos no mundo.”
De resto, as fotografias de João Tabarra também se inscrevem numa linhagem cinematográfica, de uma forma muito imediata ou explícita (títulos como Strada, One of Us) ou por via da sua mise-en-scène (elas nunca parecem captar um instante, mas sugerir uma narrativa que é maior do que o seu enquadramento, como se efectivamente fossem imagens em movimento).
“Não tenho essa ideia de que uma fotografia é um momento fixo no tempo”, diz. “Não é nada fixo. Há movimento, há ritmo. E tudo o que eu quero é que as pessoas criem as suas próprias narrativas. Até mesmo no retrato de alguém que está a posar existe movimento. Há o movimento do nosso cérebro, a curiosidade: ‘Quem é esta pessoa? Por que é que tem os olhos assim, ou o cabelo, as rugas, a cor da pele, qual é a sua história...?’ Tudo isto é já o começo de um filme.”
Mesmo quando está a trabalhar numa fotografia, João Tabarra escreve um guião e desenha um storyboard, como se faz no cinema. E ele descreve as suas fotografias como fotogramas de um filme caídos no chão durante o processo de montagem.
“Então é como se fossem a arqueologia de um cinema não existente”, sugere Nicole Brenez.
“Voilà. Tu disseste-o de uma forma muito melhor”, responde o artista.
Mr. Director
Tabarra diz que sempre quis fazer cinema, mas nunca achou que fosse capaz. Em 2008 fez SEA ©, um filme de 52 minutos em que dois homens sentados num rochedo à beira-mar, de costas para o espectador, ditam uma sequência de nomes de grandes figuras da cultura mundial que supostamente identificam nas ondas. O filme valeu-lhe um convite para participar no Festival Internacional de Cinema de JeonJu, Coreia do Sul, aonde, de resto, voltou recentemente para uma retrospectiva de João César Monteiro que propunha um diálogo com outros cineastas portugueses. “É curioso porque aqui as pessoas têm tendência para pensar em mim como fotógrafo, mas quando vou à Coreia ou ao Japão chamam-me ‘Mr. Director’ [Sr. Realizador]. Não há problema. Em casa sou considerado o cozinheiro.” Risos. Só não lhe chamem videasta. “Não sei o que isso é. Eu trabalho em vídeo porque é mais barato, mas não faço vídeos, faço filmes.”
João Tabarra está a co-realizar uma longa-metragem com o artista francês David Legrand, e tem pelo menos mais dois projectos de filmes em mente. “Sei perfeitamente o que quero filmar, como quero filmar.”
Recentemente, também descobriu que podia escrever sobre cinema. Nicole Brenez convidou-o para escrever sobre o filme Fúria de Viver (Rebel Without a Cause), de Nicholas Ray, para um dossier especial dedicado ao filme na revista trimestral La Furia Umana, onde Brenez integra o conselho editorial [ver texto no final deste suplemento]. “A Nicole convidou-me para fazer uma coisa de que eu tinha muito medo. Disse-lhe que não podia, que não sabia escrever.”
“Enquanto professora e investigadora de cinema interessa-me encontrar novas formas de pensar e escrever sobre filmes e imagens”, explica Brenez. “Existem tantas abordagens que são técnicas e tradicionais. O João, bem como outros artistas, tem o seu próprio estilo, o que proporciona uma nova forma de nos relacionarmos não só com o filme mas também com a razão por que precisamos de imagens e de histórias.”
João Tabarra acabou por escrever um texto que é uma espécie de autobiografia da sua relação com o filme de Ray que é também uma espécie de biografia de Portugal nos últimos 40 anos, entre a revolução e a crise (política e cultural, sobretudo), entre a fúria de viver e a desilusão furiosa. (O texto pode ser lido nas páginas ???? deste suplemento.)
“Enquanto estava a escrevê-lo, disse à Nicole: ‘Isto é muito perigoso. Porque estou a expor-me imenso. E agora não posso fugir.’ Foi demasiado forte, demasiado emotivo. Mas por causa dela descobri a escrita. A culpada é ela.” Nicole: “Fico feliz por ser culpada.”
Entretanto, Tabarra escreveu mais texto, sobre o filme de Rui Simões, Bom Povo Português, que será publicado na próxima edição da revista, num dossier especial sobre cinema e revolução.
“Desde o momento em que comecei a trabalhar como artista disse a mim mesmo: ‘Vou tentar fazer isto mas se não ficar satisfeito vou fazer outra coisa. Prefiro tornar-me bancário ou jardineiro’”, diz João Tabarra, fumando um Camel White.
Nicole: “Imagino-te como jardineiro, não como bancário.”
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Numa manhã de Fevereiro, João Tabarra guiava a crítica e historiadora de cinema francesa Nicole Brenez pela sua exposição antológica no Centro de Arte Moderna (CAM), na Gulbenkian, quando os dois pararam diante de uma fotografia em que o artista caminha num terreno baldio segurando uma bandeira branca onde está escrito: PLUS JAMAIS LA FIN DU MONDE. Nicole Brenez quis saber por que é que a frase estava em francês. “Porque a França está sempre em greve?”, perguntou.
Tabarra explicou que tentara em português e em inglês, mas nenhuma das línguas correspondia ao que idealizava. Um protesto, sim, mas poético. No último minuto, já com a equipa a postos e uma lata de spray na mão, ligou a um amigo em França e pediu-lhe ajuda: “Tenho um grande problema. Preciso de dizer isto em francês, mas em bom francês: ‘O fim do mundo nunca mais. Basta.0’”
“Para mim, esta imagem é o emblema da arte contemporânea”, disse Nicole Brenez. “Toda a arte do século XX joga com a ideia de catástrofe. O fim da história, o fim da linguagem, o fim das formas, o fim da humanidade. E aqui temos esta declaração, que anuncia um renascimento. Algo que está presente em todo o teu trabalho”, concluiu, dirigindo-se ao artista.
Brenez parecia quase aliviada. “Já tinha visto o trabalho do João mas só na Internet. E nunca a esta escala, o que é fundamental. E ainda não tinha visto os filmes. É como descobrir o Miguel Ângelo em postais: é muito bonito, mas depois uma pessoa tem de ir a Roma. E estou genuinamente espantada. Tenho tido a oportunidade de conhecer muitos artistas na minha vida e a maior parte das vezes quando depois vejo o trabalho deles fico desapontada.”
Uma narrativa maior do que o enquadramento
João Tabarra e Nicole Brenez conheceram-se em 2012, quando ambos fizeram parte do júri da competição internacional do DocLisboa. O artista nunca tinha sido membro de um júri e não tinha a certeza de querer abrir um precedente quando recebeu um telefonema às duas da manhã de um dos programadores do festival com o que foi menos um convite do que uma resolução irrevogável: “Não podes dizer que não.” Tabarra disse que ia pensar no assunto e depois daria uma resposta mas, no dia seguinte, os directores do Doc ligaram-lhe a agradecer ter aceitado o convite. Felizmente, encontrou boa companhia. “Quando duas pessoas gostam dos mesmos filmes, é óbvio que vão gostar uma da outra. Quando não se gosta dos mesmos filmes, não há volta a dar”, resume a crítica francesa.
Mas a cumplicidade não foi instantânea, como explicará Tabarra mais tarde, em sua casa. “No DocLisboa tivemos uma discussão muito acesa sobre um filme. Estava em causa a atribuição de um prémio especial e eu achava que o filme não merecia. Estivemos três horas a discutir, só nós os dois. Às tantas os outros membros do júri foram lá para fora beber e fumar porque já não aguentavam.” Naturalmente, parecia a causa mais importante do mundo na altura — mas hoje João Tabarra já nem se lembra do título do filme. “Acho que era um japonês qualquer...” Vai buscar o catálogo do festival, onde anotou as suas impressões sobre os filmes da competição. “Adorei tem que ter [prémio]!”, escreveu sobre um. Outra página, outro filme: “ODIEI”. E mais outro: “ZZZZZ”.
Fim da história: Tabarra foi ver o filme outra vez e apesar de considerar que ele não merecia o prémio especial, achou legítimas as motivações de Brenez. E votou a favor.
Apesar desse “desencontro muito grande”, forjaram uma cumplicidade, e João convidou Nicole para vir a Lisboa ver a sua exposição. Os dois planeiam trabalhar juntos num livro sobre a influência do cinema na obra do artista.
Brenez não tem dúvidas de que os filmes de João Tabarra presentes no CAM fazem todo o sentido numa sala de cinema como a Cinemateca Francesa, onde é programadora das sessões de vanguarda. “Temos um público muito aberto a novas formas. Tenho a certeza de que vão adorar. A textura, a qualidade plástica são perfeitas para o grande ecrã. Além disso, são bastante narrativos. Muitos deles contêm referências ao cinema, como Buster Keaton e alguns cineastas documentais. Além de que falam de temas muito profundos — onde estamos no mundo.”
De resto, as fotografias de João Tabarra também se inscrevem numa linhagem cinematográfica, de uma forma muito imediata ou explícita (títulos como Strada, One of Us) ou por via da sua mise-en-scène (elas nunca parecem captar um instante, mas sugerir uma narrativa que é maior do que o seu enquadramento, como se efectivamente fossem imagens em movimento).
“Não tenho essa ideia de que uma fotografia é um momento fixo no tempo”, diz. “Não é nada fixo. Há movimento, há ritmo. E tudo o que eu quero é que as pessoas criem as suas próprias narrativas. Até mesmo no retrato de alguém que está a posar existe movimento. Há o movimento do nosso cérebro, a curiosidade: ‘Quem é esta pessoa? Por que é que tem os olhos assim, ou o cabelo, as rugas, a cor da pele, qual é a sua história...?’ Tudo isto é já o começo de um filme.”
Mesmo quando está a trabalhar numa fotografia, João Tabarra escreve um guião e desenha um storyboard, como se faz no cinema. E ele descreve as suas fotografias como fotogramas de um filme caídos no chão durante o processo de montagem.
“Então é como se fossem a arqueologia de um cinema não existente”, sugere Nicole Brenez.
“Voilà. Tu disseste-o de uma forma muito melhor”, responde o artista.
Mr. Director
Tabarra diz que sempre quis fazer cinema, mas nunca achou que fosse capaz. Em 2008 fez SEA ©, um filme de 52 minutos em que dois homens sentados num rochedo à beira-mar, de costas para o espectador, ditam uma sequência de nomes de grandes figuras da cultura mundial que supostamente identificam nas ondas. O filme valeu-lhe um convite para participar no Festival Internacional de Cinema de JeonJu, Coreia do Sul, aonde, de resto, voltou recentemente para uma retrospectiva de João César Monteiro que propunha um diálogo com outros cineastas portugueses. “É curioso porque aqui as pessoas têm tendência para pensar em mim como fotógrafo, mas quando vou à Coreia ou ao Japão chamam-me ‘Mr. Director’ [Sr. Realizador]. Não há problema. Em casa sou considerado o cozinheiro.” Risos. Só não lhe chamem videasta. “Não sei o que isso é. Eu trabalho em vídeo porque é mais barato, mas não faço vídeos, faço filmes.”
João Tabarra está a co-realizar uma longa-metragem com o artista francês David Legrand, e tem pelo menos mais dois projectos de filmes em mente. “Sei perfeitamente o que quero filmar, como quero filmar.”
Recentemente, também descobriu que podia escrever sobre cinema. Nicole Brenez convidou-o para escrever sobre o filme Fúria de Viver (Rebel Without a Cause), de Nicholas Ray, para um dossier especial dedicado ao filme na revista trimestral La Furia Umana, onde Brenez integra o conselho editorial [ver texto no final deste suplemento]. “A Nicole convidou-me para fazer uma coisa de que eu tinha muito medo. Disse-lhe que não podia, que não sabia escrever.”
“Enquanto professora e investigadora de cinema interessa-me encontrar novas formas de pensar e escrever sobre filmes e imagens”, explica Brenez. “Existem tantas abordagens que são técnicas e tradicionais. O João, bem como outros artistas, tem o seu próprio estilo, o que proporciona uma nova forma de nos relacionarmos não só com o filme mas também com a razão por que precisamos de imagens e de histórias.”
João Tabarra acabou por escrever um texto que é uma espécie de autobiografia da sua relação com o filme de Ray que é também uma espécie de biografia de Portugal nos últimos 40 anos, entre a revolução e a crise (política e cultural, sobretudo), entre a fúria de viver e a desilusão furiosa. (O texto pode ser lido nas páginas ???? deste suplemento.)
“Enquanto estava a escrevê-lo, disse à Nicole: ‘Isto é muito perigoso. Porque estou a expor-me imenso. E agora não posso fugir.’ Foi demasiado forte, demasiado emotivo. Mas por causa dela descobri a escrita. A culpada é ela.” Nicole: “Fico feliz por ser culpada.”
Entretanto, Tabarra escreveu mais texto, sobre o filme de Rui Simões, Bom Povo Português, que será publicado na próxima edição da revista, num dossier especial sobre cinema e revolução.
“Desde o momento em que comecei a trabalhar como artista disse a mim mesmo: ‘Vou tentar fazer isto mas se não ficar satisfeito vou fazer outra coisa. Prefiro tornar-me bancário ou jardineiro’”, diz João Tabarra, fumando um Camel White.
Nicole: “Imagino-te como jardineiro, não como bancário.”