Carta aberta: o Arquivo Histórico Ultramarino, a democracia e o conhecimento

Mais de uma centena de professores universitários e investigadores portugueses e estrangeiros assinaram uma carta aberta, enviada na quinta-feira ao ministro dos Negócios Estrangeiros, contra a integração do Arquivo Histórico Ultramarino na Universidade de Lisboa.

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Salão Pompeia no Palácio da Ega dr

Em 1931, depois de um debate que se estendeu por mais uma década, foi criado o Arquivo Histórico Colonial, no âmbito do Ministério das Colónias, para “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessem ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, económica e financeira da colonização portuguesa”.

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Em 1931, depois de um debate que se estendeu por mais uma década, foi criado o Arquivo Histórico Colonial, no âmbito do Ministério das Colónias, para “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessem ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, económica e financeira da colonização portuguesa”.

Seria constituído “a) Pelos documentos manuscritos de natureza histórico-colonial actualmente na posse do Ministério das Colónias e suas dependências; b) Pelos documentos de idêntica natureza que existirem nos arquivos dos governos coloniais […]; c) Pela cartografia portuguesa […]; d) Pelos documentos que de futuro derem entrada no Ministério das Colónias, depois de decorrido o período de 10 anos”.

Eram ainda incorporados na nova entidade, sita no antigo Palácio dos Condes da Ega, à Junqueira, os documentos históricos do extinto Conselho Ultramarino (1642-1833), do Arquivo da Marinha, e outros, oriundos das colónias, cujo conjunto formara o denominado “Arquivo de Marinha e Ultramar”, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1889.

A 1 de Janeiro de 1974, o então denominado Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) foi integrado na Junta de Investigações Científicas do Ultramar (JICU), organismo de coordenação da investigação científica relativa às colónias, dependente do Ministério do Ultramar. Após as descolonizações, o AHU continuou na dependência da JICU, renomeada em 1982 Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), sob tutela do Ministério da Educação e das Universidades.

O seu objectivo era fazer investigação sobre as regiões tropicais. Não estava, portanto, vocacionado para a salvaguarda, descrição e comunicação de arquivos históricos. Apesar disso, teve também o encargo da conservação de outros relevantíssimos acervos, tais como os da Comissão de Cartografia (1883-1936), das expedições científicas às ex-colónias (1936-1974) e da Comissão Executiva da Junta de Investigações do Ultramar (1936-1974).

Em 2012, a tutela do IICT passou para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), depois de uma fugaz transição pela Presidência do Conselho de Ministros, a partir do Ministério da Ciência e do Ensino Superior (2009-2011). O MNE, no orçamento de 2014, infligiu enormes cortes ao IICT, comprometendo a sua existência. O ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou há semanas no Parlamento que o IICT será integrado na Universidade de Lisboa. A 11 de Março, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação reuniu com o conselho directivo do IICT, e confirmou a decisão. Quanto ao futuro do AHU, disse apenas estar ainda em estudo.

O AHU é um arquivo de Estado e património nacional

O AHU conserva património arquivístico nacional: documentação produzida e acumulada por órgãos do Estado português no âmbito das actividades relativas à gestão do Império, da América do Sul às ilhas atlânticas, dos territórios na África aos no Índico e no Pacífico. Património arquivístico que deve estar acessível a todos os cidadãos. Dada a sua abrangência, interessa também, directamente, aos países de língua oficial portuguesa, e constitui uma parte importante dos recursos disponíveis para o conhecimento de todo o processo de expansão europeia. Por conseguinte, o AHU é um polo de atracção da comunidade de pesquisadores de todo o mundo, e altamente potenciador da internacionalização da produção científica portuguesa em ciências sociais e humanidades.

O presente momento convida-nos a reflectir sobre a tutela que melhor se adequa à natureza e à missão do AHU. Na Europa, há uma clara e enraizada resposta a essa questão: os “arquivos coloniais” são arquivos de Estado. No Reino Unido, os arquivos administrativos do antigo império integram os Arquivos Nacionais. Em Espanha, integram os Arquivos Estatais, no Ministério de Educação, Cultura e Desporto. Em França, os arquivos do ultramar pertencem ao Serviço interministerial dos Arquivos, da Direcção Geral dos Patrimónios, do Ministério da Cultura e da Comunicação. Nos Países Baixos, os arquivos coloniais integram os Arquivos Nacionais, do Ministério da Educação, Cultura e Ciência. Na Alemanha, encontram-se num polo dos Arquivos Federais. Na Itália, estão no Arquivo Central do Estado, do Ministério dos Bens Culturais.

Uma forma de comemorar o 25 de Abril de 1974, a democracia e o fim do colonialismo é criar condições para que o AHU, integrando os restantes acervos históricos do IICT, tenha os seus fundos integralmente inventariados e abertos à consulta, para o desenvolvimento de trabalhos de investigação e divulgação científica. Isso implica que o AHU passe a ser tutelado pelo sector da administração pública dedicado à Cultura e ao Património, na dependência dos Arquivos Nacionais, onde os seus fundos documentais poderão ser sujeitos a procedimentos técnicos normalizados e internacionalmente sindicáveis.

Defendemos que os documentos ora existentes no Palácio da Ega, assim como aqueles dispersos por todas as outras instalações do IICT, sejam não apenas salvaguardados, mas devidamente tratados, valorizados e disponibilizados para consulta pública, sob a guarda directa do Estado, como ocorre, sem excepção, em toda a Europa.

Lisboa, 19 de Março de 2014.


Subscritores (por ordem alfabética):

1. Acácio José Lopes Catarino, Universidade Federal da Paraíba, Brasil

2. Alexander Keese, Universidade do Porto

3. Alice Santiago Faria, Universidade Nova de Lisboa

4. Amélia Neves Souto, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique

5. Amélia Polónia, Universidade do Porto

6. Ana Cristina Nogueira da Silva, Universidade Nova de Lisboa

7. Ana Isabel López-Salazar Codes, Universidade Complutense, Madrid, Espanha

8. André Belo, Universidade de Rennes 2, França

9. Ângela Barreto Xavier, Universidade de Lisboa

10. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, UFRJ, Brasil

11. Antonio Cesar de Almeida Santos, Universidade Federal do Paraná, Brasil

12. António Costa Pinto, Universidade de Lisboa

13. António Manuel Hespanha, Universidade Nova de Lisboa

14. Bernardo de Vasconcelos e Sousa, Universidade Nova de Lisboa

15. Bruno Feitler, Universidade Federal de São Paulo, Brasil

16. Caio César Boschi, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil

17. Cátia Antunes, Universidade de Leiden, Países Baixos

18. Célia Cristina da Silva Tavares, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Brasil

19. Charlotte de Castelnau L'Estoile, Université de Paris Ouest Nanterre, França

20. Cláudia Castelo, Universidade de Lisboa

21. Conceição Neto, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola

22. Cristiana Bastos, Universidade de Lisboa

23. Cristina Osswald, Universidade do Porto

24. Diogo Ramada Curto, Universidade Nova de Lisboa

25. Evergton Sales Souza, Universidade Federal da Bahia

26. Fátima Nunes, Universidade de Évora

27. Fernanda Olival, Universidade de Évora

28. Fernando Catroga, Universidade de Coimbra

29. Fidel do Carmo Reis, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola

30. Filipa Lowndes Vicente, Universidade de Lisboa

31. Francisco Carlos Cosentino, Universidade Federal de Viçosa, Brasil

32. Francisco Bethencourt, King’s College, Londres, Reino Unido

33. Gaetano Sabatini, Università egli Studi Roma Tre, Itália

34. Georgina Silva dos Santos, Universidade Federal Fluminense, Brasil

35. Giuseppe Marcocci, Univ. della Tuscia, Viterbo, Itália

36. Guilherme Pereira das Neves, Universidade Federal Fluminense, Brasil

37. Gustavo Acioli, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil

38. Helder Adegar da Fonseca, Universidade de Évora

39. Helena Pinto Janeiro, Universidade Nova de Lisboa

40. Iris Kantor, Universidade de São Paulo, Brasil

41. Isabel Correia da Silva, Universidade de Lisboa

42. Isabel dos Guimarães Sá, Universidade do Minho

43. Jacqueline Hermann, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

44. João Carlos Garcia, Universidade do Porto

45. João Figueirôa Rêgo, Universidade Nova de Lisboa

46. João José Reis, Universidade Federal da Bahia, Brasil

47. João Luís Lisboa, Universidade Nova de Lisboa

48. João Paulo Oliveira e Costa, Universidade Nova de Lisboa

49. João Sarmento, Universidade do Minho

50. Joaquim Alves Gaspar, Universidade de Lisboa

51. Joaquim Romero Magalhães, Universidade de Coimbra

52. Jorge Flores, Instituto Universitário Europeu, Florença, Itália

53. José Javier Ruiz Ibanez, Universidade de Murcia, Espanha

54. José Pedro Paiva, Universidade de Coimbra

55. José Vicente Serrão, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa

56. Júnia Ferreira Furtado, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

57. Laura de Mello e Souza, Universidade de São Paulo, Brasil

58. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,

Brasil

59. Luciano Figueiredo, Universidade Federal Fluminense, Brasil

60. Luís Miguel Duarte, Universidade do Porto

61. Luís Miguel Moreira, Universidade do Minho

62. Luiz Mott, Universidade Federal da Bahia, Brasil

63. Lurdes Rosa, Universidade Nova de Lisboa

64. Margarita Rodríguez García, Universidade Nova de Lisboa

65. Maria Cristina Cortez Wissenbach, Universidade de São Paulo, Brasil

66. Maria de Fátima Bonifácio, Universidade de Lisboa

67. Maciel Santos, Universidade do Porto

68. Mafalda Soares da Cunha, Universidade de Évora

69. Marcia Mello, Universidade Federal do Amazonas

70. Maria de Belém Fonseca, Universidade de Évora

71. Maria Fernanda Bicalho, Universidade Federal Fluminense, Brasil

72. Maria João Vaz, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa

73. Maria Regina Celestino de Almeida, Universidade Federal Fluminense, Brasil

74. Michel Cahen, Institut d'études politiques de Bordeaux, França

75. Miguel Jerónimo, Universidade de Lisboa

76. Miguel Metelo de Seixas, Universidade Lusíada

77. Miriam Halpern Pereira, ISCTE-IUL Instituto Universitário de Lisboa

78. Mozart Vergetti de Menezes, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

79. Nuno Camarinhas, Universidade Nova de Lisboa

80. Nuno Domingos, Universidade de Lisboa

81. Nuno Gonçalo Monteiro, Universidade de Lisboa

82. Nuno Grancho, Universidade de Coimbra

83. Nuno Lopes, Universidade de Coimbra

84. Paulo Cesar Possamai, Universidade Federal de Pelotas, Brasil

85. Paulo Fontes, Universidade Católica Portuguesa

86. Paulo Jorge Fernandes, Universidade Nova de Lisboa

87. Paulo Varela Gomes, Universidade de Coimbra

88. Pedro Aires Oliveira, Universidade Nova de Lisboa

89. Pedro Cardim, Universidade Nova de Lisboa

90. Pollyana Mendonça, Universidade Federal do Maranhão, Brasil

91. Renata Malcher Araújo, Universidade do Algarve

92. Renato Franco, Universidade Federal Fluminense, Brasil

93. Rene Pélissier, França

94. Ricardo Roque, Universidade de Lisboa

95. Roberta Stumpf, Universidade Nova de Lisboa

96. Roberto Guedes, Universidade Federal Rural do Rio do Janeiro, Brasil

97. Rodrigo Bentes Monteiro, Universidade Federal Fluminense, Brasil

98. Ronald Raminelli, Universidade Federal Fluminense, Brasil

99. Sérgio Alcides Pereira do Amaral, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

100. Silvana Roque de Oliveira, Universidade de Alcalá

101. Stuart B. Schwartz, Yale University, EUA

102. Tânia Dias, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil

103. Teresa Cruz e Silva, Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragança, Maputo,

Moçambique

104. Tiago C. P. dos Reis Miranda, Universidade Nova de Lisboa

105. Valentim Alexandre, Universidade de Lisboa