Democracia e desobediência civil
A desobediência civil dá voz a convicções de consciência profundamente sentidas.
A destruição do Estado social imposta pelas medidas do “ajustamento” da Troika, que alguns analistas consideram violar a “Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”, conferiu ao desempenho do governo maioritário que nos governa um conjunto de medidas que contrariaram frontalmente os valores consagrados da Justiça e do Direito – valores voltados a evitar a punição desproporcional; a distribuição não equitativa de bens e situações; o não cumprimento do princípio consagrado na lei segundo o qual “ os contractos legalmente celebrados devem ser legalmente cumpridos”, ou, dito de outra forma, “pacta sund servanda”. O diagnóstico e a avaliação destas medidas, ao identificar a ruptura trazida por estas políticas, inaugurou na comunidade “o tudo é possível” e conduziu a que largas faixas da população portuguesa passassem a ser tratadas como supérfluas e descartáveis. A ruptura no plano jurídico surge quando a lógica do razoável que permeia a reflexão jurídica não consegue dar conta da não razoabilidade que caracteriza uma experiência autoritária e arrogante. É, com efeito, um paradigma organizacional e uma nova forma de governo que almeja a dominação das minorias através do uso da ideologia e do emprego da força para promover a ubiquidade do medo e esfacelar uma cidadania sem direitos. Tal política representa uma contestação frontal à ideia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A destruição do Estado social imposta pelas medidas do “ajustamento” da Troika, que alguns analistas consideram violar a “Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”, conferiu ao desempenho do governo maioritário que nos governa um conjunto de medidas que contrariaram frontalmente os valores consagrados da Justiça e do Direito – valores voltados a evitar a punição desproporcional; a distribuição não equitativa de bens e situações; o não cumprimento do princípio consagrado na lei segundo o qual “ os contractos legalmente celebrados devem ser legalmente cumpridos”, ou, dito de outra forma, “pacta sund servanda”. O diagnóstico e a avaliação destas medidas, ao identificar a ruptura trazida por estas políticas, inaugurou na comunidade “o tudo é possível” e conduziu a que largas faixas da população portuguesa passassem a ser tratadas como supérfluas e descartáveis. A ruptura no plano jurídico surge quando a lógica do razoável que permeia a reflexão jurídica não consegue dar conta da não razoabilidade que caracteriza uma experiência autoritária e arrogante. É, com efeito, um paradigma organizacional e uma nova forma de governo que almeja a dominação das minorias através do uso da ideologia e do emprego da força para promover a ubiquidade do medo e esfacelar uma cidadania sem direitos. Tal política representa uma contestação frontal à ideia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica.
A violenta austeridade, dita sem alternativa, construiu uma crise que se virou contra os mais fracos e desprotegidos, mimando os seus salários e determinando cortes aos pensionistas e reformados, violando regras elementares do Estado de Direito democrático com o apelo subversivo ao princípio da não retroactividade da lei, à corrosão do princípio da confiança e a valores fundamentais esculpidos e cunhados no texto constitucional. O governo com estas práticas arrogantes e de reincidência que não ouve os outros, parece encerrado numa torre de marfim, na qual a crueldade do tenebroso espectáculo da miséria e do empobrecimento e as vozes fantasmagóricas do desemprego e da fome abjecta lhe são insensíveis.
Decorre deste estado de coisas, um ambiente onde se murmura a resistência e o protesto e onde os cidadãos se mobilizam em greves e manifestações, contra a indignidade que os arrasta para o patamar da mera sobrevivência, contra a falsificação da vontade soberana do povo e o abalroamento da cidadania concebida como o direito a ter direitos. A opressão corrói a autoridade do Direito. Paz sem voz, não é paz, é medo.
Cabe neste contexto perguntar que contornos tem assumido o conceito e a prática do protesto neste país de intolerância para com os mais fracos - assalariados, pensionistas e reformados e em geral perante a voz clamante das minorias vítimas do desmembramento em marcha do estado social.
É nosso objectivo e pretensão com este artigo analisar a forma de protesto consubstanciada na desobediência civil, analisar o seu estatuto jurídico como direito fundamental humano, e o de compreender o papel que ela desempenha num regime democrático/constitucional que como o nosso prevê no seu artigo 21º o direito à resistência, de que a desobediência civil é um direito associado.
Partimos do princípio de que num regime democrático que respeite a Constituição há uma concepção política da justiça, por referência à qual os cidadãos resolvem as suas questões políticas. A violação persistente e deliberada dos princípios básicos dessa concepção durante um período de tempo extenso, em especial a lesão de liberdades fundamentais e dos direitos sociais das minorias, convida ao protesto e à resistência.
Com esta escolha e preocupação de expor uma teoria da desobediência civil, teremos com este artigo a oportunidade de fazer uma síntese da análise crítica de um dos pontos mais interessantes do Direito, visto que, no nosso entender, muitas análises têm-se de dicado ao estudo da lei, mas poucas delas se dedicam à crítica através da contestação da mesma, como forma de torná-la mais próxima dos que vivem sob a sua égide e desta forma aparentemente paradoxal, fortalecê-la.
Como foi dito o direito à resistência está previsto na Constituição da República Portuguesa e é um direito que pertence ao património dos povos. Ao escrever sobre a tensão entre direito positivo e direito natural, em “Antígona - Uma Velha Lição Grega”, Sófocles sugere que o rei Creonte não terá razão ao negar sepultura a um traidor do Estado. Desta forma ela reaviva a diferença entre legal e legítimo, a partir do momento em que Antígona declara o direito de resistência.
Segundo Hannah Arendt, a desobediência civil ocorre quando “um número significativo de cidadãos se convence de que os canais normais para mudanças já não funcionam, ou que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efectuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostos a graves dúvidas”. Esta perspectiva da desobediência civil encaixa-se eloquentemente na situação que se vive no país.
Um Estado de Direito exige um regime democrático, donde a teoria que se expõe diz respeito ao papel e á justificação da desobediência civil a uma autoridade democrática legitimamente estabelecida.
A desobediência civil dá voz a convicções de consciência profundamente sentidas. Ela representa uma forma de dissidência situada nas fronteiras da fidelidade ao direito. Na verdade, se as políticas forem flagrantemente contrárias à justiça das minorias e dos estratos mais enfraquecidos dos cidadãos, temos o dever, e não apenas o direito, de as recusar.
Nesta perspectiva, a desobediência civil é um dos mecanismos estabilizadores de um sistema constitucional, embora seja por definição um mecanismo ilegal. No entanto, quando utilizada em situações limite, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas. Ao resistir à injustiça, dentro dos limites do direito, ela serve para impedir os desvios face às regras da justiça e para os corrigir, caso ocorram. O facto de os cidadãos estarem em geral dispostos a recorrer à desobediência civil justificada é um elemento de estabilidade numa sociedade organizada e justa.
A injustiça deliberada é um convite à submissão ou à resistência. A submissão provoca o desprezo daqueles que perpetuam a injustiça e reforça as suas intenções, ao passo que a resistência quebra os laços que unem a comunidade. Se, após um período de tempo razoável que permita a manifestação dos protestos políticos expressos pelas formas normais, os cidadãos respondem à violação das liberdades fundamentais através do recurso à desobediência civil, tal facto significaria o reforço, e não o enfraquecimento, destas liberdades. Por estas razões, os desobedientes adoptarão as condições que definem a justificação da desobediência civil como uma forma de introduzirem, dentro dos limites da fidelidade ao direito, um mecanismo de último recurso que mantenha a estabilidade de uma constituição justa. Assim entendida, esta concepção de desobediência civil, faz parte da teoria do regime político baseado na liberdade. Embora este modo de acção seja, em rigor, contrário à lei, ele é, apesar disso, uma forma correcta de manter um regime constitucional e, como dizem Vital Moreira e Gomes Canotilho, “pode colher protecção constitucional”. Ela questiona normas despidas de conteúdo axiológico ou elaboradas em desconformidade com o consentimento expresso pelo pacto constitucional, que é dado pelo povo e pela sociedade civil à autoridade constitucional.
É por estas razões que o cidadão compreende que a desobediência civil representa uma resposta insuperável e superior à violência das leis ilegítimas e dos governos. É, nas palavras de Mohands Gandi “um direito intrínseco do cidadão e reprimir a desobediência civil é aprisionar a consciência.”
Numa última consideração, cumpre salientar que a sua aplicação prática não está, muitas vezes, isenta de conflitos, mas “(…) no entanto se a desobediência civil injustificada ameaçar a paz civil, a responsabilidade não será daqueles que protestam, mas daqueles cujo abuso do poder e da autoridade justifica essa oposição. A utilização do aparelho coercivo do estado para conservar instituições manifestamente injustas é em si mesma uma forma ilegítima do emprego da força, à qual se terá, a partir de certo momento, o direito de resistir (…). (John Rawls, Teoria da Justiça, fols. 301, Editorial Presença, 3ª edição).