A Crimeia, o referendo e o dia seguinte
Na Crimeia joga-se o futuro da mirífica união euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim.
Mesmo que não usasse os seus exércitos, e usou-os; mesmo que não calasse as vozes adversárias, e calou-as, nomeadamente nos meios de comunicação social; mesmo que não ajudasse a espalhar o medo dos “nazis de Kiev”, e ajudou; a Rússia teria todas as condições para ganhar maioritariamente o referendo, pois ali dominou durante décadas. Do domínio tártaro, a Crimeia passou em 1783 para o Império Russo de Catarina a Grande, ao qual foi anexada como parte da província da Táurida; e no rescaldo da Revolução comunista de Outubro de 1917 foi integrada na União Soviética. O tempo em que esteve sob jugo nazi (agora usado como fantasma contra o actual poder de Kiev), de 1941 a 1945, antecedeu a sua entrega, em 1954, à República Socialista Soviética da Ucrânia, que era, à data, parte integrante da URSS, onde dominava a Rússia. Há uma razão, entre outras, para tal entrega: Krutschov, líder soviético à data, tinha nascido na Ucrânia. Neste rol de anos, os tempos de autonomia da Crimeia são demasiado breves para pesarem tanto quanto o domínio e a identificação russa: chegou a proclamar a independência já depois do colapso do comunismo, em 1992, mas não tardou a voltar a ser parte da Ucrânia, agora com estatuto de república autónoma. A frota russa do mar Negro continuou lá, em Sebastopol, durante todo este tempo. Mais precisamente desde a anexação de 1783.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Mesmo que não usasse os seus exércitos, e usou-os; mesmo que não calasse as vozes adversárias, e calou-as, nomeadamente nos meios de comunicação social; mesmo que não ajudasse a espalhar o medo dos “nazis de Kiev”, e ajudou; a Rússia teria todas as condições para ganhar maioritariamente o referendo, pois ali dominou durante décadas. Do domínio tártaro, a Crimeia passou em 1783 para o Império Russo de Catarina a Grande, ao qual foi anexada como parte da província da Táurida; e no rescaldo da Revolução comunista de Outubro de 1917 foi integrada na União Soviética. O tempo em que esteve sob jugo nazi (agora usado como fantasma contra o actual poder de Kiev), de 1941 a 1945, antecedeu a sua entrega, em 1954, à República Socialista Soviética da Ucrânia, que era, à data, parte integrante da URSS, onde dominava a Rússia. Há uma razão, entre outras, para tal entrega: Krutschov, líder soviético à data, tinha nascido na Ucrânia. Neste rol de anos, os tempos de autonomia da Crimeia são demasiado breves para pesarem tanto quanto o domínio e a identificação russa: chegou a proclamar a independência já depois do colapso do comunismo, em 1992, mas não tardou a voltar a ser parte da Ucrânia, agora com estatuto de república autónoma. A frota russa do mar Negro continuou lá, em Sebastopol, durante todo este tempo. Mais precisamente desde a anexação de 1783.
A interrogação de hoje não é, pois, sobre os votos, mas sobre o que fazer com eles. Se, após a declaração de independência já votada (embora não aceite internacionalmente) pelo parlamento da Crimeia o referendo der o “sim” maioritariamente à integração na Federação Russa, o passo seguinte é que é determinante: a aceitação oficial, ou não, pela Rússia, de tal pedido. Vladimir Putin pode jogar com tal pedido e adiar a sua aceitação, para negociar o que lhe aprouver com outras nações a partir dos resultados; ou pode pôr em marcha o processo efectivo de secessão, desencadeando um verdadeiro sismo na ordem geopolítica mundial. Uma e outra opção têm custos e não há muito tempo para gerir soluções mais calculistas. Na Crimeia, incentivadas pelo poder russo, há já vozes que falam numa espécie de “cruzada” para “libertar” regiões da Ucrânia e isso, sim, poderá conduzir a conflitos armados pontuais ou a uma guerra em maior escala. A Rússia, que detém por enquanto as rédeas de tal encarniçamento, poderá travá-lo ou ampliá-lo à medida dos seus interesses, mas vai ter de tomar uma decisão rápida quanto às suas ambições. Na Crimeia joga-se o futuro da mirífica União Euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim. Começa hoje, para todos, o dia seguinte.