Resnais e a vida
Em Lisboa, no final dos anos 1960, tudo se discutia. A cultura francesa dominava as conversas dos universitários de esquerda, a rápida leitura na Internet ainda nem sequer era sonhada e a ditadura salazarista determinava o contexto para debates intermináveis.
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Em Lisboa, no final dos anos 1960, tudo se discutia. A cultura francesa dominava as conversas dos universitários de esquerda, a rápida leitura na Internet ainda nem sequer era sonhada e a ditadura salazarista determinava o contexto para debates intermináveis.
Resnais era um dos nossos temas. Ligávamos o realizador francês à Nouvelle Vague, sem compreendermos como foi único ao longo de toda a sua vida. Neo-realistas na sua maioria, venerávamos Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol e tínhamos dificuldade em aderir à complexidade onírica de Alain Resnais e à subversão do ritmo narrativo característica do seu cinema.
Hiroxima, Meu Amor/Hiroshima, Mon Amour, recentemente exibido em cópia restaurada, interessará sempre. É uma narrativa sublime de amor e guerra, em que Emmanuelle Riva (que redescobrimos em Amor, de 2012, de Michael Haneke, cerca de 50 anos depois) se apaixona em Hiroxima por um japonês e recorda o amor proibido com um soldado alemão no contexto da Segunda Guerra Mundial. O filme Muriel ou O Tempo de um Regresso (1963) introduziu, à época, o debate sobre o sentido do cinema de autor: mais realista na aparência, mantinha o estilo reflexivo e metafísico característico de Resnais.
O filme anterior, L’Année Dernière a Marienbad (1961), foi, contudo, o que provocou intensas discussões nos meios universitários de então, a começar pela tradução do título: uma colega viva (com quem mais tarde casei) sustentava que a tradução correcta seria "O Ano Passado em Marienbad" (e não O Último Ano…) e hoje, passados tantos anos, não deixo de lhe dar razão.
Éramos muito novos e um pouco fanáticos. Hoje sei que não podíamos compreender como Marienbad mudou o conceito do tempo no cinema, nem conseguíamos entender a visão sobre as complexidades da memória que o filme introduz. Brincávamos o jogo dos fósforos como M., o marido do filme, e recordávamos a beleza de Delphine Seyrig, sem compreendermos bem aqueles travellings repetidos por corredores intermináveis (au long de ces couloirs…).
Nunca revi o filme, mas não esqueço aquela grande mansão barroca com jardins geométricos, a abordagem inovadora do eterno tema do triângulo amoroso ou a incerteza permanente sobre o que seria verdadeiro ou derivava de um sonho. Recordo mais tarde os debates sobre Providence (1977), um filme em que um velho romancista doente se interroga sobre a morte que o espera e recorda com inquietação muito do que viveu.
Em 2009, no meu livro Porque sim, publiquei a crónica Corações, escrita para esta revista, então denominada Pública. Escrevi então como esse filme (2007) retratava com mestria muitos dos amores actuais, em que relacionamentos frios e estranhos tentam sobreviver num mundo sem esperança. O humor inteligente e a certeira direcção de actores (sempre presente em Resnais) tornaram o filme numa nova surpresa para mim, afinal sem justificação, como escrevi na altura: “O filme demora duas horas e seríamos capazes de estar a vê-lo muito mais tempo, porque aquelas pessoas são iguais às que nos rodeiam e, em certa medida, somos nós próprios, ou pelo menos a parte de nós abandonada e triste com que temos dificuldade em lidar (…) filmar assim aos 85 anos é, em derradeira análise, um estímulo para a vida (…)”
Alain Resnais morreu em 1 de Março deste ano, depois de ver consagrado o seu último filme Amar, Beber e Cantar (Aimer, Boire, Chanter). A verdade é que nunca nos deixará.