Cate Blanchett tinha razão – só 15% dos filmes mais vistos tiveram mulheres protagonistas

As personagens femininas de Hollywood continuam a ser mais novas, mais despidas e a ter menos objectivos do que as dos homens, revela um estudo do Center for the Study of Women in Television and Film.

Fotogaleria

No maior espectáculo da indústria, Blanchett frisou que os filmes com e sobre mulheres “não são” um segmento especial, que “os públicos querem vê-los” e que “fazem dinheiro”. Uma semana antes de ser conhecido o estudo do Center for the Study of Women in Television and Film (CSWTF) que faz as contas da disparidade entre o trabalho de actores e actrizes, a vencedora do Óscar por Blue Jasmine, de Woody Allen, juntou-se assim a anos de discussão sobre a fatia mais glamorosa da problemática da igualdade de género – a relação entre Hollywood e as mulheres.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No maior espectáculo da indústria, Blanchett frisou que os filmes com e sobre mulheres “não são” um segmento especial, que “os públicos querem vê-los” e que “fazem dinheiro”. Uma semana antes de ser conhecido o estudo do Center for the Study of Women in Television and Film (CSWTF) que faz as contas da disparidade entre o trabalho de actores e actrizes, a vencedora do Óscar por Blue Jasmine, de Woody Allen, juntou-se assim a anos de discussão sobre a fatia mais glamorosa da problemática da igualdade de género – a relação entre Hollywood e as mulheres.

A ela, juntou-se esta semana a actriz, produtora, argumentista e realizadora Lena Dunham, uma das figuras de proa da jovem Hollywood e da cultura pop que cheira a espírito hipster graças à série da HBO Girls. Num discurso no festival de cinema SXSW (South by Southwest), pediu que a indústria mude a forma como vê e trabalha com as mulheres, dando o exemplo sobre o seu elenco de Girls e as oportunidades que os protagonistas têm tido. “O nosso protagonista masculino, Adam Driver, tem tido um ano espectacular no cinemal”, disse a profissional de 25 anos sobre o actor que participou em Frances Ha, de Noah Baumbach, A Propósito de Llewyn Davis, dos irmãos Coen, e que poderá ser vilão no próximo filme da saga Guerra das Estrelas.

“O mundo está pronto para ver Adam como um milhão de homens diferentes”, detalhou. “Mas as raparigas [do elenco] ainda estão pacientemente à espera de papéis que honrem a sua inteligência e a sua capacidade”, disse sobre Zosia Mamet, Allison Williams e Jemima Kirke. Elas, diz a primeira mulher premiada pela Guilda dos Realizadores, são convidadas para fazer o mesmo papel repetidamente, de acordo com o seu aspecto e com as personagens da própria série – a despassarada, a namoradinha…

No ano passado, só 30% dos papéis com falas no cinema foram interpretados por actrizes, revela o estudo do CSWTF da Universidade de San Diego. E só 13% desses cem filmes mais lucrativos tiveram um elenco paritário – igual número de personagens femininas e masculinas ou, então, maior número de papéis para mulheres do que para homens. Contudo, essas personagens femininas, diz o mesmo estudo, intitulado It’s a Man’s (Celluloid) World: Representations of Female Characters in the Top 100 Films of 2013, são mais jovens do que as masculinas e tendem mais a ter um estado civil identificado do que as personagens de homens, além de terem menos objectivos facilmente identificáveis e de serem menos vezes retratadas como líderes.

Leonor Areal, autora da investigação sobre as representações dos portugueses no seu cinema Cinema Português: Um País Imaginado, diz-se “chocada, mas não surpreendida” por estes dados sobre a indústria americana, que acredita ser conhecida “pelo uso e abuso de estereótipos, sexistas” e não só. “O caso é grave, de facto, porque a cultura audiovisual americana domina em quase todos os países e induz e modela uma determinada perspectiva do mundo, uma percepção social monolítica, sem variantes e cambiantes culturais – neste caso, estabelecendo diferenças de géneros claramente sexistas e prejudiciais para a identidade feminina – que pouco será representada, ou representada com pouca autonomia”.

Para o estudo americano, foram analisadas mais de 2300 personagens nos cem filmes mais vistos de 2013 e sobressaem conclusões claras sobre a representação das mulheres quanto, por exemplo, à idade ou ao corpo. Uma das caras do ano cinematográfico foi Lupita Nyong’o, que se estreou em 12 Anos Escravo, pelo qual venceu o Óscar de Melhor Actriz Secundária, aos 31 anos. O CSWTF nota que “as personagens femininas continuam mais jovens do que as masculinas. A maioria das personagens femininas está na casa dos 20 (26%) e dos 30 (28%)” e, no ano em que Judi Dench (79 anos) foi nomeada para o Óscar por Filomena e que Meryl Streep (64 anos) e Julia Roberts (46 anos) estavam também na corrida por Um Quente Agosto, só 30% dos papéis foram de mulheres com mais de 40 anos – por seu turno, as personagens masculinas acima dos 40 perfizeram 55% das interpretações nos filmes mais rentáveis de 2013. E entre os papéis femininos, a esmagadora maioria (73%) é branca, seguida por negros, latinos e asiáticos.

Os Jogos da Fome: Em Chamas foi o filme mais visto de 2013 nos EUA e é um raro blockbuster protagonizado por uma heroína, a jovem estrela Jennifer Lawrence. No fim-de-semana da sua estreia, a New York Film Academy divulgou o estudo Desigualdade de Género no Cinema (em articulação com o CSWTF), que faz um apanhado dos 500 filmes mais populares de 2007 a 2012. Nestes cinco anos de cinema, há uma actriz para cada dois actores e um quarto e o relatório detalha, por exemplo, que cerca de um terço das actrizes (28,8%) surge no ecrã com roupas reveladoras – o mesmo acontece com apenas 7% dos actores. E se 26,2% das actrizes estão parcialmente nuas, tal só ocorre a 9,4% dos actores.

“A questão da mulher-objecto sexual é hoje premente, porque invade todas as esferas de representação – e afecta directamente as percepções sociais e a ideologia corrente – e não apenas o cinema”, contextualiza Leonor Areal. Ainda assim, a investigadora não encontra uma relação directa e simples entre o que se passa na sociedade ocidental e o que o cinema (americano) mostra. “O cinema não reflecte tanto a vida real como reflecte os seus fantasmas e ideias”, defende, mas o que se passa nesta poderosa indústria de grande visibilidade não é dissociável de “desigualdades análogas que têm a ver com grupos de poder e grupos minoritários” - os decisores.

Qual efeito Bigelow?

Martha M. Lauzen, directora executiva do CSWTF, sublinhou ao The New York Times que estes números não mudaram muito desde os anos 1940, década em que a actriz Bette Davis se tornou a primeira presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por dois fugazes meses, demitindo-se depois de conflitos constantes com os restantes membros da organização, que ainda hoje é predominantemente masculina. Em sete décadas, passou-se dos 25 ou 28% de papéis femininos com falas no cinema para os 30% de 2013 e, em termos de diversidade racial, os números são também mais ou menos os mesmos na última década, diz Lauzen. “Pensamos em Hollywood como um sítio muito progressista e como um bastião de pensamento liberal”, mas os números desmentem-no. “A indústria cinematográfica não gosta de mudança.”

Em 2010, mais de 80 anos passados sobre os primeiros prémios da Academia, Kathryn Bigelow tornou-se a primeira mulher a ganhar o Óscar de Melhor Realizador com Estado de Guerra. Desde então, não houve mulheres sequer nomeadas e não só na realização, mas também no argumento ou fotografia. “Se há inércia de género nos bastidores, encontramos inércia de género no ecrã”, justifica Martha Lauzen. Um outro relatório do CSWTF, o Celluloid Ceiling (que faz o trocadilho com a ideia do tecto de vidro que impedirá as mulheres de atingir o topo nas suas carreiras), dizia já em Janeiro que nos últimos 16 anos (quando o primeiro Celluloid Ceiling Report foi publicado) nada mudou nas carreiras femininas em Hollywood. A estatística, que desta vez teria retratos de Bigelow a segurar o seu Óscar a acompanhá-la, indicava que só 6% dos filmes do ano passado foram realizados por mulheres (menos 3% do que em 2012) e que apenas 16% dos profissionais nas áreas da fotografia, argumento, produção ou montagem que trabalharam nos principais filmes do ano passado são mulheres.

“Como actriz no cinema, é muito fácil ficar isolada simplesmente devido ao rácio de desigualdade de género que existe. Raramente se tem uma cena com outras mulheres, há muito poucas mulheres na equipa e as poucas executivas mulheres tendem a ensimesmar-se”, descreveu a actriz Laura Linney no Verão passado, dando vida numa imagem aos números de Desigualdade de Género no Cinema que indicam que, no cinema americano, por cada mulher que trabalha atrás das câmaras há cinco homens na mesma posição. E não recebem o mesmo, tal como no resto dos mercados laborais. No ano passado, os dez actores mais bem pagos ganharam um total de 465 milhões de dólares; as dez actrizes que mais ganham receberam, no total 181 milhões. A mais bem paga, Angelina Jolie (33 milhões), ganhou o mesmo que Denzel Washington e Liam Neeson, os dois actores no fundo do "top dez" da Forbes.

Leonor Areal regressa à ideia dos fantasmas e ideias que os filmes comerciais reflectem para falar de quem os faz. “Os produtores tendem a fazer mais do mesmo, a fim de assegurar as receitas”, argumenta, e a “máquina de sonhos” é um “mundo dominado por homens – tal como a maior parte dos postos de trabalho hierarquicamente poderosos”. Contudo, defende que estas escolhas serão determinadas “não pelo género dominante no sector, mas sobretudo por regras inerentes à lógica dos consumos. Ou seja, não há ‘inocentes’ – os filmes não ‘subjugam’ as mulheres por serem feitos por homens, fazem-no por opção estratégica”. A tal de que falava Cate Blanchett e que remete os filmes de mulheres para o limbo dos pouco rentáveis.

Portugal feminino

O estudo do CSWTF não só quantifica, mas também qualifica: mede a importância das personagens femininas na história dos filmes e as suas funções sociais, um pouco como o "teste Bechdel" – nascido de uma história da cartoonista Alison Bechdel, avalia se uma obra ficcional contém pelo menos duas mulheres que falam entre si sobre um qualquer assunto que não um homem. O teste Bechdel foi aplicado, com resultados negativos, a um dos blockbusters do ano passado, Pacific Rim (Batalha do Pacífico), um dos filmes que integram a lista a partir da qual o CSWTF fez as suas contas, a par de Gravidade ou da animação com protagonista feminina Frozen – O Reino do Gelo.

O resto da paisagem dos "dez mais" está cheia de homens musculados, deuses nórdicos e homens de ferro, padrão quebrado em Portugal por A Gaiola Dourada, a visão contemporânea da emigração portuguesa em França protagonizada por Rita Blanco e Joaquim de Almeida. Depois de um longo trabalho de pesquisa sobre o cinema português, Leonor Areal confirma que por cá as “profissões no cinema foram, até ao final do século XX, predominantemente masculinas” e que as primeiras realizadoras “começaram pelo cinema documental – por ser menos caro – nos anos 1970”, como Noémia Delgado ou Manuela Serra. Na ficção, só nos anos 1990 surge a “primeira geração de mulheres realizadoras” com Teresa Villaverde ou Ana Luísa Guimarães. “Ou seja, no meio do cinema, em Portugal, as mulheres chegaram mais tarde do que às outras profissões...” E apesar de os decisores terem sido e continuarem a ser sobretudo homens, o cinema português tem “uma acentuada perspectiva feminina do mundo”, diz a investigadora, que defende que novos estudos sobre a produção cinematográfica de outros países, como o francês ou o português, “revelariam conclusões muito diferentes”.

E quando os decisores são mulheres? Nos EUA, onde apenas um quarto dos produtores é do sexo feminino, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é agora presidida pela primeira vez por uma afro-americana. E depois há Amy Pascal, presidente de um dos grandes estúdios, a Sony Pictures, que diz querer escolher filmes em que as “mulheres são personagens cujos actos tenham consequências na história” e não “apenas um apêndice”, “casadas com alguém, ou sua irmã, ou namorada”. Mas, em entrevista à Forbes no ano passado, reconheceu também que “o sistema está engrenado para elas falharem”.