A costumeira demagogia parlamentar no Dia da Mulher
Tornar os crimes de violação e coacção sexual públicos significa que o procedimento criminal tenha lugar sem necessidade de queixa. Se assim for, a investigação terá lugar mesmo contra a vontade da vítima
A Assembleia da República aprovou na quinta-feira passada, 7 de Março — isto é, tristemente, mesmo a tempo de o invocar no Dia da Mulher — o projecto de lei n.º 522/XII, do BE, com vista a tornar públicos os crimes de violação e coacção sexual, o qual será agora será discutido na especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A Assembleia da República aprovou na quinta-feira passada, 7 de Março — isto é, tristemente, mesmo a tempo de o invocar no Dia da Mulher — o projecto de lei n.º 522/XII, do BE, com vista a tornar públicos os crimes de violação e coacção sexual, o qual será agora será discutido na especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Acham eles — os senhores deputados do BE e do PEV, que votaram a favor, e os do PSD, PS e CDS-PP, que se abstiveram —que tornar os crimes públicos é proteger as mulheres que (na quase totalidade dos casos) deles são vítimas. E pretendem convencer-nos disso.
A ideia é simplesmente abjecta. Tornar os crimes públicos significa que o procedimento criminal tenha lugar sem necessidade de queixa. Se assim for, a investigação terá lugar mesmo contra a vontade da vítima. Ora, esta possibilidade é degradante para a vítima, a quem deve caber sempre a decisão sobre se quer ou não que esse processo exista, mais que não seja por tudo o que de negativo um processo e um julgamento de um crime sexual implica em termos psicológicos e de exposição da intimidade.
A coberto da necessidade de aumentar o número de condenações nos casos de violação, esta solução vem, afinal, colocar sobre a vítima a obrigação de suportar um processo, ainda que contra a sua vontade e, quem sabe, em seu grande prejuízo. Não pode admitir-se tamanho custo.
No facto de que haverá vítimas que não apresentam queixas por medo, porventura ninguém desassentirá. Com a necessidade de punir os agentes destes crimes, muitos concordarão. Mas o que importa aqui perguntar é se é justo pretender-se obter esta punição através da imposição de uma investigação para a qual a vontade da vítima não é tida nem achada. O que importa aqui perguntar é se a prossecução da verdade material, uma das finalidades do processo penal, deve ser feita à custa do sacrifício do direito das vítimas destes crimes, já de si tão traumáticos, à sua intimidade, à reserva da sua vida sexual.
Deve o Estado impôr a sujeição à investigação e julgamento destes crimes às vítimas, mesmo contra a sua vontade? Alcançar-se-á, assim, o equilíbrio, a concordância prática, entre as três finalidades do processo penal (a realização da justiça e a descoberta da verdade material a protecção dos direitos fundamentais das pessoas envolvidas no processo e o restabelecimento da paz jurídica), que devem nortear a escolha legislativa sobre a natureza (pública, semi-pública ou particular) dos tipos de crime? A resposta é "não".
Recorrendo ao palavreado do referido projecto de lei, cabe perguntar se o "não consentimento da vítima", neste caso, já não constituirá "uma violência de 'per se'". Talvez ninguém se tenha dado ao trabalho de ponderar isso e é absolutamente urgente e necessário que se o faça. É premente uma análise séria do assunto de modo a saber se é esta a via que pretendemos tomar no que respeita aos crimes sexuais. Atente-se com seriedade na experiência feita, por exemplo, com o crime de violência doméstica, que desde 2007 também é público, e tirem-se as devidas conclusões. E faça-se isto já, antes que mais demagogias parlamentares do género aconteçam sempre que se comemora um Dia da Mulher.