Portugal no Brasil

Antes, era normal um português de 14 anos meter-se num navio e atravessar o Atlântico. Agora, parte-se mais velho e de avião. Mas o objectivo é o mesmo. Perguntámos a quem tem uma história de sucesso para contar: o que é preciso para dar certo no Brasil?

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Houve um tempo em que um português podia chegar ao Brasil, depois de uma longa viagem de navio, com 14 anos e uma mala de roupa. Muitos foram assim, durante o século XX, começar uma vida nova, num país que não conheciam. Dessa geração ficaram muitas histórias de sucesso. Todos eles trabalharam muito, mas muitos também enriqueceram, constituíram família e nunca mais deixaram o Brasil — se bem que nunca mais tenham esquecido Portugal.

Fomos conhecer algumas destas histórias, por entre as importantes comunidades portuguesas em cidades da Amazónia, como Manaus e Belém do Pará, ou em Campinas, onde a selecção portuguesa vai ficar instalada durante o Mundial de Futebol, em Junho. Descobrimos que Joaquim Marques dos Reis, já falecido, criou a Viagem da Primavera, os primeiros voos, nos anos 1960, entre Belém e Lisboa, e ouvimos o filho recordar as aventuras do comendador. Conhecemos José Azevedo, que conseguiu criar uma cadeia de lojas de electrodomésticos em Manaus.

E há agora uma nova geração de portugueses que rumou ao Brasil nos últimos anos e que, em muitos casos, está também a ter sucesso nos projectos em que se envolveu. Estes foram já de avião e em circunstâncias muito diferentes. Luís Silva, por exemplo, foi convidado para ser director de operações do estádio do Maracanã e vai poder viver a Copa do Mundo num dos seus palcos mais privilegiados.

Rodrigo Castelão e Luís Santos trabalhavam para o grupo Pestana e decidiram juntar-se com sócios brasileiros e apostar nos doces conventuais portugueses, mas quiseram que o seu projecto tivesse uma componente social, por isso recrutaram os seus empregados na gigantesca favela Complexo do Alemão. Vítor Sobral tornou-se o mais conhecido rosto da gastronomia portuguesa em São Paulo e está a abrir a sua segunda Tasca da Esquina no Brasil, desta vez em João Pessoa.

Fomos perguntar-lhes o que é preciso para dar certo no Brasil. Eles contam como foi. 

 O homem do Maracanã     

Como posso fazer para ir visitar o Maracanã?” Foi a primeira pergunta de Luís Silva ao fazer o check-in no hotel no Rio de Janeiro, numas férias em 1999. Hoje, no ano em que o Brasil recebe o Mundial de Futebol, Luís é o director de operações daquele que é, provavelmente, o estado mais mítico do mundo.

Sentamo-nos a conversar, num princípio de tarde tão sossegado quanto é possível no Maracanã, onde há sempre uma fila de visitantes a chegar. Um grupo de crianças de uma colónia de férias invade, entusiasticamente, o palco de alguns dos maiores jogos do mundo. “Iniciámos as visitas e os tours guiados no final do ano e cada vez há mais procura”, diz o português, vindo do Estádio do Dragão, do “seu” Futebol Clube do Porto.

“A grande diferença é que aqui não estamos no estádio de um clube, mas num estádio nacional, onde jogam os grandes clubes cariocas”, explica. “No Porto, fazíamos por ano entre 27 e 30 jogos, e aqui fazemos isso em dois meses. Lá tínhamos um jogo a cada 15 dias, aqui temos às vezes três ou quatro por semana. Lá tínhamos uma equipa e conhecíamos perfeitamente os nossos interlocutores, aqui temos várias equipas completamente diferentes, o Flamengo, o Fluminense, o Botafogo, o Vasco da Gama, cada um com a sua realidade, a sua dimensão, os seus objectivos, a sua torcida.”

Por isso, o Maracanã até muda de cor — a iluminação é escolhida em função do clube que joga. É um estádio muito diferente daquele que foi construído em 1950 para a Copa do Mundo que o Brasil recebeu também nesse ano.

O “Maraca” querido dos brasileiros foi sofrendo alterações ao longo dos tempos. “Hoje é um estádio muito mais acolhedor, mais confortável, mais funcional, mais seguro. Claro que há sempre gente saudosista do ambiente que o Maracanã tinha.” Estamos a falar de um estádio que no início tinha bancadas de cimento, sem lugares marcados e que chegou a receber 200 mil pessoas para uma partida, quando hoje tem capacidade para 78 mil.

Cada jogo, continua, no entanto, a ser uma emoção imensa. “É um estádio ultramoderno, com quatro ecrãs gigantes e uma acústica brutal. Quem vê aqui um jogo de casa cheia fica decididamente marcado.” E depois, continua Luís, estamos a falar do Brasil. “O povo brasileiro é um povo naturalmente alegre, que festeja como nunca dentro de um estádio. É um povo extrovertido, muito mais alegre do que aquilo que estamos habituados a ver, pelo menos em estádios em Portugal. Aqui há uma música, um samba, um ambiente que é viciante.”

E com o Mundial, como vai ser? “Não vou falar das questões políticas, mas a expectativa das pessoas todas em relação ao Mundial é grande, acho que todo o mundo no Rio espera uma Copa fantástica. Se o Brasil for à final, não tenho dúvidas de que vai ser um momento histórico.” Quanto a ele, vai estar a trabalhar, claro. Embora a gestão do estádio seja, durante o período do Mundial, colocada nas mãos da FIFA, esta conta com a ajuda e apoio da equipa que habitualmente gere o Maracanã.

“Neste momento, estamos a preparar o estádio para o entregar à FIFA a 22 de Maio. Temos uma missão diferente nesse período, a casa está alugada e temos cá um hóspede que define como se arruma, a que horas se abrem e fecham as portas, quando é que um determinado compartimento tem de ser limpo.”

Luís, que se mudou para o Rio com a mulher e os dois filhos — já todos “completamente adaptados” — aprendeu a lidar com as particularidades brasileiras. “No início, não estamos habituados à forma como os serviços aqui funcionam e ficamos stressados. Mas depois vamos percebendo que as coisas funcionam no seu ritmo e você tem de entrar um pouco nesse ritmo para poder usufruir.”

Afinal, é um privilégio estar no Rio em 2014. “A vida é isso, temos de usufruir cada momento de benesse que é estarmos vivos, estarmos aqui.” Sorri. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” E é para continuar? “Vamos continuar. Como dizia Vinicius de Moraes, que seja infinito enquanto dure.” A.P.C.

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O estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, realiza três a quatro jogos por semana Nelson Garrido

As asas do comendador

Eram os tempos em que um rapaz de 14 anos viajava de Portugal para o Brasil para começar uma vida nova. Mas Joaquim Marques dos Reis não era um rapaz qualquer. “Eu costumo dizer que quando desembarcou em Belém [do Pará, na Amazónia] trazia uma fortuna enorme com ele”, conta o filho, João. “Trazia a noite, o dia, a maleta da roupa e uma cabeça cheia de sonhos de um dia vir a ser alguém na vida.” Chegou no dia 26 de Novembro de 1936.

Joaquim tinha nascido na aldeia de Vilar Torpim, perto da Guarda. E desde pequeno sabia o que queria. Em Belém estava já um tio, irmão da sua mãe, que tinha uma filha, com a qual foi um dia passar umas férias a Portugal. “Quando o meu pai viu a prima, enlouqueceu. Ele tinha uns oito ou nove anos e ela uns 16, mas ele ficou alucinado”, continua João. “Quis dar um mimo à prima, e como adorava perninhas de rã foi fazer uma grande caçada de rãs e mandou preparar para ela. Quando chegou com as rãs, ela deu-lhe um tapa na mão e foi rã para tudo quanto é lado. Ela disse-lhe que não comia sapo, e o meu pai ficou injuriado e foi dizer para a avó que a prima era maluca e que tinha chamado as rãs de sapos.”

Apesar deste início atribulado, nasceu uma história de amor, e aos 14 anos Joaquim atravessava o Atlântico e ia viver para a cidade da prima: Belém do Pará. Começou por trabalhar como balconista numa empresa de materiais de construção, cujos donos tinham também um banco. O jovem Marques dos Reis rapidamente chamou a atenção de um dos directores, que quis que ele trabalhasse no banco, tinha 16 anos.

“O responsável pela carteira de câmbio do banco ia numa viagem a Portugal e naquele tempo ninguém ia para ficar lá um mês, ia um ano no mínimo.” Foi assim, graças à longa ausência do superior, que Marques dos Reis se viu à frente do departamento cambial.

“Nessa altura, a primeiríssima carteira era a do Banco do Brasil, depois havia a do Banco Nacional Ultramarino e a terceira era a do Moreira Gomes, o banco do meu pai. Era o tempo da guerra e o aeroporto de Belém começou como uma base militar americana. O meu pai ia com uma mesinha para o aeroporto fazer câmbios para os soldados, e fez uma tal movimentação que a Moreira Gomes ficou a número um.”

Ao mesmo tempo, o rapaz vindo da Beira Alta ia conquistando a numerosa comunidade portuguesa do Pará. “Naquele tempo havia muitos portugueses que eram carroceiros”, recorda João. “Não havia empresas de mudanças, então eram os carroceiros que as faziam e, coitados, eram portugueses que tinham vindo para o Brasil sem saber ler nem escrever. Chegavam ao banco de camiseta, tamancos, um pouco simplórios e o meu pai tratava-os como doutores, ó seu fulano, venha cá, sente-se aqui, do que é que o senhor precisa?” Geralmente, eles queriam mandar dinheiro para Portugal e, quando faltavam alguns cêntimos, Marques dos Reis arredondava com o seu próprio dinheiro. E ainda se disponibilizava para escrever as cartas que os homens não sabiam escrever e para ler as que eles recebiam.

Havia na época no Pará um jornal chamado Folha do Norte (mais tarde O Liberal). “Um belo dia, saiu uma notícia: ‘Camião atropelou a carroça do português. Salvou-se o burro’”. Marques dos Reis, então com 19 anos, indignado, dirigiu-se à redacção do jornal para protestar. “Que aquilo não eram maneiras de se falar dos portugueses, que o dono do jornal devia ter mais cuidado e que devia abrir até um espaço para mostrar o Portugal que as pessoas não conheciam.” Foi de tal maneira convincente que o dono do jornal convidou-o a escrever sobre Portugal. “Os leitores começaram a procurar o meu pai, ‘pôxa que maravilha, não sabia que Portugal era assim’.”

Nasceu assim a página dominical Terras de Portugal, que começou em 1955 e foi escrita por Joaquim Marques dos Reis até 1998, altura em que passou essa incumbência ao filho, que continuou a assinar com o nome do pai. “O meu pai escrevia o manuscrito, passava à máquina, depois ia para o jornal, à noite, mas antes passava pela padaria, comprava uns dez pães-cacete, mandava passar manteiga, nuns punha queijo, noutros salame, levava garrafas térmicas de café e dava ao pessoal da oficina do jornal.”

Os textos sobre as terras de Portugal eram um sucesso tão grande que as pessoas começaram a perguntar: “Quando é que você nos vai levar a ver essas maravilhas que você escreve aí no jornal?” Marques dos Reis não era homem para ficar a pensar. Estávamos em 1960 e Portugal ia comemorar o centenário do Infante D. Henrique. Marques dos Reis, que era grande amigo de Salazar — “ninguém é perfeito”, diz o filho, rindo —, tomou uma decisão. “Fretou um Constellation à Panair do Brasil, pagou do bolso dele — tenho o recibo até hoje — e começou a divulgar a viagem no jornal.”

Em Maio de 1960, levanta voo de Belém um avião cheio de portugueses e brasileiros com destino a Portugal — foi a primeira Viagem da Primavera. Em Portugal foram recebidos em grande estilo, por políticos, deputados, e, claro, Salazar, e com direito a notícias nos jornais e na RTP. Ao fim de três viagens destas, o comendador Marques dos Reis foi avisado de que, não sendo agente de viagens, não poderia continuar.

“O meu pai sempre viajou muito, e perguntava-se porque é que não existia uma agência de viagens em Belém”. Mas como Marques dos Reis “fazia as coisas acontecer”, a sequência lógica dessa pergunta foi a criação da Lusotur, a agência de viagens que continua na família, dirigida actualmente por João Marques dos Reis. Hoje, numa altura em que a TAP se prepara para lançar, em Junho, o voo directo para Belém, João lembra que o pai foi o grande pioneiro, em 1966. “Nesse ano, a TAP ia fazer o primeiro voo de um Boeing para o Brasil. O prestígio do meu pai já era tão grande que conseguiu trazer o avião a Belém em Maio, um mês antes do voo inaugural. O avião voou de Belém a Lisboa com uma excursão da Lusotur.” João dá uma gargalhada. “Costumo dizer que quando fez a viagem inaugural em Junho era a noiva desvirginada.”

Durante as décadas seguintes, sucederam-se, em aviões fretados à Varig ou à TAP, as viagens para Portugal, vários países da Europa, Japão, Terra Santa, México, Estados Unidos e outros destinos. A melhor sociedade paraense aproveitava os voos para Portugal para levar as meninas a fazer o baile de debutantes no Casino do Estoril.

Entretanto, Marques dos Reis investiu também num hotel, o Equatorial Palace Hotel (hoje, com outro conceito, chamado Belém Soft Hotel), teve uma loja de materiais de construção, a Constrular, e continuou a promover Portugal no Pará até ao dia em que morreu. Foi em Novembro de 2001, na terra onde chegara 65 anos antes, com 14 anos, uma maleta de roupa, a cabeça cheia de sonhos e a paixão por uma certa morena que não gostava de comer rãs — mas que ainda assim quis casar com ele. A.P.C.

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A cidade de Belém do Pará. O promeiro voo directo para Portugal fez-se em 1960 Nelson Garrido

José Azevedo tem duas pátrias

O sotaque é brasileiro mas tem algo subtilmente português. José Azevedo, 80 anos, cabelo penteado para trás, recebe-nos numa loja de electrodomésticos no centro de Manaus, a poucos quarteirões da bela praça do Teatro Amazonas. Rodeado de televisões, aparelhos de som e frigoríficos, pergunta por Portugal, de onde os pais o levaram ainda bebé. Sabe das dificuldades do país onde nasceu e a que nunca quis voltar definitivamente, porque foi no Brasil que construiu uma vida de sucesso, como tantos outros emigrantes.

Subimos de elevador para o escritório de uma casa, transformada em sede de empresa. O ar condicionado afasta-nos do calor húmido de Manaus, uma cidade a dois passos da selva. Na parede, está a foto de uma mulher de ar simples. Quando fala dela, a avó Maria que foi mais mãe do que avó, José Azevedo emociona-se. Os olhos humedecem, a voz foge-lhe, o coração aperta, como um sinal de saudade e reconhecimento. Mas é sempre por ela que este emigrante português gosta de contar a sua história. Como se a vida dele não tivesse começado no dia em que nasceu, mas sim quando a avó foi para o Brasil, à procura de uma vida melhor.

“Os meus avós, ambos portugueses, vieram para Manaus mais ou menos em 1880. Era a época áurea da borracha, que atraiu muitos emigrantes”, conta pausadamente, como quem tem um guião do qual não se pode desviar. A Amazónia era então a única produtora de borracha, extraída das seringueiras à custa de trabalho quase desumano no meio da selva — a herança desse tempo são os prédios faustosos da cidade, o Teatro Amazonas à cabeça.

Com Manaus em expansão económica, os avós de José casaram no Brasil e tiveram um único filho. O pai de José também fez vida na Amazónia, como carpinteiro, mas acabaria por casar em Portugal com a filha de um agricultor de Albergaria-a-Velha. Foi lá que José nasceu em 1934 e viveu durante pouco mais de um ano.

“A vida do meu pai era aqui e a minha mãe teve de vir com ele”, conta o empresário. “Há uns anos, umas senhoras portuguesas, vizinhas dos meus avós, contaram-me que ainda se lembravam da minha mãe, comigo ao colo, a chorar na véspera de partir para o Brasil, dizendo que nunca mais voltava a Portugal.” E não voltou mesmo. Viajou de barco, grávida do segundo filho. Pouco tempo depois, engravidou pela terceira vez. Morreria no parto, tal como a menina a que deram o nome de Rosa.

Como o pai voltou a casar, e foi para o interior do Amazonas, José e a irmã ficaram aos cuidados da avó Maria, numa época em que Manaus já tinha perdido o exclusivo da borracha e entrara em declínio. “Para nos sustentar, a minha avó tinha de lavar roupa”, conta, apontando para a foto da avó. “Ela nunca admitiu que os netos fossem para um colégio público. Desde o primeiro ano básico, sempre estudámos em colégios pagos”, diz José, que haveria de se formar em contabilidade. “Fui criado num ambiente de muita severidade, sempre procurando estudar muito. A minha avó nos dizia: ‘meus filhos, vejam o sacrifício que eu faço para poder manter vocês na escola’”. Aos 16 anos, José começou a estudar à noite e a trabalhar de dia, porque era urgente tirar à avó o “sacrifício” de lavar a roupa dos outros.

“Comecei a trabalhar no dia 2 de Janeiro de 1950, aos 16 anos. Trabalhava numa oficina de conserto de rádios Phillips”, prossegue o guião de José, cuja vida já está descrita numa biografia: A Saga de um Emigrante Português, escrita por um jornalista amazonense. Conseguido o objectivo de ser ele a manter a família, começou a juntar dinheiro, seguindo uma das máximas que aprendeu com a avó. “Ganha-se três vinténs, gasta-se dois e guarda-se um para o dia de amanhã.”

Sete anos depois, o patrão fechou a oficina. José viu ali uma oportunidade. Recusou a indemnização e preferiu receber o equipamento, para montar a sua própria oficina. “Nunca mais fui empregado de ninguém.” Entretanto, casou com uma brasileira e começaram a nascer os filhos. Era hora de expandir o negócio. Em 1964 — fez 50 anos a 6 de Fevereiro — criou a empresa (TV Lar), que deu origem à cadeia de electrodomésticos que detém. “Eu sonhava com o advento da televisão”, diz o empresário, que hoje emprega 950 funcionários. Tem 28 lojas em Manaus, uma metrópole de dois milhões de habitantes, um mar de cimento no meio do verde amazónico.

A vida de José foi feita de trabalho e família. Tem quatro filhos e sete netos. Nos tempos livres, fazia teatro e chegou a actuar no Teatro Amazonas. “Fiz muitas muitas peças sacras. Fui criado na igreja”, diz, enquanto folheia a sua biografia, mostrando fotos do tempo em que tinha bigode e participava em peças como O Milagre do Calvário ou O Segredo do Padre Jeremias. Ao ouvir-se a história desta vida, é inevitável pensar como é que de uma pequena oficina nasceu um império de electrodomésticos. “Sabe como é o português”, diz José, sem hesitar na resposta: “Eu trabalhava muito e à noite leccionava electrónica. Recrutava os melhores alunos e, durante muitos anos, monopolizei toda a assistência técnica da cidade”, explica o empresário, que também beneficiou das condições da zona franca de Manaus, que hoje se aplicam apenas a algumas indústrias mas que durante décadas também vigoravam para o comércio.

Durante a conversa, no seu escritório, no centro de Manaus — onde ainda há muitos prédios de traço europeu —, José faz algumas referências à portugalidade. Como se sente alguém que nasceu num país, mas viveu quase toda a vida noutro? “Sou cidadão de duas pátrias, português por nascimento e brasileiro por opção. Presto serviço a duas pátrias”, diz o também cônsul honorário de Portugal, garantindo que a comunidade portuguesa, quase toda formada por luso-descendentes, na cidade é unida. Juntam-se de vez em quando em almoços de convívio e prometem uma festa especial para Junho, quando a selecção portuguesa de futebol for a Manaus defrontar os Estados Unidos.

Aos 80 anos, José continua a trabalhar, porque “um homem precisa de motivação, senão morre”. Os ensinamentos que recebeu da avó estão sempre presentes. “A minha avó dizia que dívida a gente paga nem que tenha de comer palha. Por isso, aqui na empresa, quando a gente não paga o vencimento no dia, a gente paga na véspera”, brinca José, orgulhoso pelo que construiu e por ter conseguido que todos os filhos trabalhem na empresa. “E já tenho uma neta a trabalhar cá”, acrescenta o empresário, cujo maior desejo é que a sua seja empresa seja “imortal” e escape à sina de ser destruída pelas gerações seguintes: “Trabalhei para isso”. H.D.S.

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Manaus, uma metrópole de dois milhões de habitantes, é um mar de cimento no meio do verde amazónico Nelson Garrido

“O meu negócio é fazer”

No dia em que chegou a São Paulo, Armindo Dias foi comer uma feijoada. A primeira coisa que provou foi uma caipirinha. “Nossa, este negócio é bom” — lembra-se de ter dito. Da mesa do bar viu uma jovem passar várias vezes seguidas, por todo o lado. “Não é possível — eu me perguntava — como ela está passando novamente, será que está atrás de mim? Era uma japonesa, melhor várias, eu é que nunca tinha visto um japonês na vida.”

O ano era 1956. Tinha 24 anos e acabara de deixar para trás Lagarteira, uma aldeia próxima a Ansião. O pai era contra. Queria que trabalhasse na agricultura. Precisava de 250 dólares para pagar o bilhete de navio. O pai chamou-o de “vagabundo”. Ele pediu o dinheiro a um amigo. “Meu pai não entendia, a gente brigava, eu dizia: ‘Eu não tenho essa vocação. O senhor pode não gostar, mas eu não vou para a lavoura porque serei um fracassado. Eu quero fazer algo que eu possa [me fazer] crescer e crescer feliz’. Eu gostava era de comércio”, conta com sotaque mais brasileiro do que português. “Cheguei aqui como todos os emigrantes que vinham de Portugal, Espanha, Itália e países árabes: com uma mão na frente e outra atrás.”

Hoje Armindo Dias comanda um império de redes de hotéis, concessionárias de carros e o mercado imobiliário de Campinas, interior de São Paulo, uma das cidades mais ricas do Brasil. É o proprietário do The Palms, o hotel-boutique que faz parte do resort Royal Palm onde a selecção nacional ficará sediada durante o Mundial.

Não há sítio da cidade de mais de um milhão de habitantes em que o nome do português não seja mencionado. “Já conhece o seu Armindo?”; “Ele é o homem mais rico daqui, diz que a fortuna é de mais de mil milhões de reais, mas eu desconfiou que é mais”; “Vocês vão adorá-lo, ele é sensacional”; “E imaginar que ele começou vendendo chocolate nas ruas da Bahia”.

Foi logo no início. Foi revendedor de chocolate de uma grande empresa durante cinco anos. “A única coisa que sei fazer é vender.” Na altura, o carregamento de chocolate saía do Porto de Santos, em São Paulo, e chegava dois meses depois à Bahia. Ficava no porão do navio a uma temperatura de 40 graus. “Quando chegava, já tinha a companhia de seguros à espera, o chocolate estava todo estragado. Aquilo me revoltava. Eu nasci num lugar que formiga não tinha espaço, morria de fome. Minha mãe guardava até as migalhas da broa para colocar numa tigela. Era o pós-guerra. Nunca passei fome, mas tinha gente que passava.” Pediu um empréstimo, comprou um camião para pagar em 24 meses sem juros. O camião ia de São Paulo à Bahia. Armindo saía às três horas da manhã para desbravar o sertão, e voltava às dez da noite. “Se você quiser vencer na vida, no começo, tem de se esforçar muito. Naquela época, não havia estradas, mas caminhos de passagem, era tudo buraco. Lembro que achava incrível chegar naqueles lugarejos e ver que as famílias tinham 14 filhos.”

Começou a ganhar dinheiro. Tornou-se sócio de uma fábrica de doces e bolachas em Campinas. Não demorou muito até se tornar no único proprietário. “A cada três meses queriam dividir tudo [lucros] entre os sócios. Esse sistema é bom para padaria, não para indústria. Na indústria você tem que investir o tempo todo”.

Durante 18 anos, levantava-se todos os dias às cinco da manhã e só voltava às dez da noite. Depois, passou a acordar às seis. Passaram-se assim 33 anos, sem sequer parar aos domingos. “Mudei tudo na Campineira. Eles contratavam menores de idade que quando completavam 18 anos eram demitidos. Não era justo. De dois mil metros de área passámos para 38 mil. A nossa produção diária era de 300 toneladas de biscoito [bolachas].” Em 1992, a Campineira era o líder do mercado de bolachas no Brasil (fabricava as bolachas Triunfo). Cresceu tanto que a Danone tornou-se sócia. “Era monsieur Dias para cá, monsieur Dias para lá. Eles não entendiam que não estavam na França, aqui é diferente”. Cansou-se de ter que dar explicações aos franceses. Vendeu a sua parte à multinacional. E, com 65 anos e 370 milhões de dólares, decidiu entrar no ramo da hotelaria. O hotel era um antigo Holiday Inn, com 120 quartos e oito mil metros de área construída. Reconstruiu tudo sem nunca fechar o hotel. Hoje, é um resort de cinco estrelas com 500 quartos e 60 mil metros de área.

“Quando me perguntam como é a minha terra, eu digo que é igual a Nova Iorque”, ri da própria piada. Tenta viajar uma vez por ano para Portugal. Vai a Paris primeiro. Depois passa em Lisboa e fica um dia em Ansião. “Chego de manhã, visito o cemitério onde estão enterrados meus pais, a igreja onde fui baptizado, almoço com minhas irmãs e volto para Lisboa. A minha aldeia tinha 300 casas, agora deve ter menos. Eu a rigor sou brasileiro porque sou naturalizado, mas o lugar que a gente nasce não se esquece. Quando estou aqui nem me lembro de Portugal, mas quando chego lá até os campos têm um cheiro diferente para mim.” Ainda se lembra do sr. José, que lhe emprestou os 250 dólares que lhe permitiram chegar ao Brasil. O primeiro dinheiro que recebeu serviu para saldar a dívida.

Agora, aos 82 anos, com a direcção dos vários ramos de negócios dividida entre as filhas e o único filho, vai construir um centro de convenções com mais de 130 mil metros quadrados, mais dois hotéis e duas torres de apartamentos ou salas comerciais. “Quando dizem: ‘Armindo, tá na hora de descansar.’ Eu respondo: ‘Tá louco?’ Nem com 100 anos eu paro. O meu negócio é fazer.” S.D.

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Armindo Dias saiu de Portugal com 24 anos e hoje tem Campinas aos seus pés (em cima, o heliporto do seu hotel, onde ficará instalada a selecção nacional) Nelson Garrido

O pastel de nata que vem da favela

Rodrigo Castelão envia-nos um email com a morada do local onde nos vamos encontrar no Rio de Janeiro: Rua Paulo de Frontin, 461, Rio Comprido. Rio Comprido? Então a Arte Conventual, projecto de dois portugueses e dois brasileiros, não fica na favela Complexo do Alemão?

Batemos à porta de uma casa que nos parece em obras e, de facto, quando Adailto Fonseca, um dos sócios, nos abre a porta, o que vemos é um cenário de sacos de cimento e latas de tinta. Rodrigo explica: em breve (a nossa visita foi em Janeiro), toda a produção de doces da Arte Conventual vai mudar-se para aqui, uma zona mais central e, sobretudo, com mais espaço do que a apertada casa onde nasceram, no Complexo do Alemão.

Aqui vai funcionar a cozinha de onde saem os pastéis de nata, os queijinhos de figo do Algarve, os pastéis de Santa Clara, os de Tentúgal, as queijadas de Sinta, o toucinho-do-céu; e também os escritórios, e ainda vai haver espaço para uma zona onde os clientes podem ser recebidos e provar as especialidades de origem portuguesa que a Arte Conventual vende para vários hotéis do Rio. A ideia de uma loja para venda directa não está excluída, mas não será para já.

Mas nós insistimos: gostávamos mesmo de conhecer o espaço onde tudo começou, no Alemão. E no dia seguinte lá vamos — encontro marcado para o Prisunic da Itaoca, onde os quatro sócios nos vão buscar: Rodrigo e Luís Santos são os dois portugueses, Adailto e Diego Dias, os dois brasileiros.

É quase hora de almoço e está um calor a roçar os 40 graus. Subimos umas escadas estreitas da casa de Adailto no Complexo, transformada em base da Arte Conventual, e chegamos à cozinha, num pequeno anexo na parte de cima. Aqui sim, conhecemos os outros parceiros desta aventura, jovens do Complexo recrutados por Adailto.

Gerson, por exemplo, está com a Arte Conventual desde Outubro de 2012 e já domina com à-vontade as técnicas da cozinha. Está a separar gemas e claras, para fazer algumas fornadas de bolos. Já Lucas é um recém-chegado — só há duas semanas é que começou a trabalhar aqui, e por isso cabem-lhe tarefas mais simples, como a de cozer e tirar a casca às batatas-doces que vão ser usadas para os pães de hambúrguer que a empresa começou a fornecer para um projecto novo no Rio: a hamburgueria Reserva TT Burguer, do chef Thomas Troisgros.

“Quando fomos sondados por eles, não propusemos o pão de hambúrguer tradicional, apresentámos quatro ou cinco ideias, desde um pão de milho a um com açaí, um de abóbora e um de batata-doce. O melhor caminho para nos tornarmos competitivos é a inovação”, conta Rodrigo. O artista do grupo é Adailto. É este chef de pastelaria, que conheceu Luís e Rodrigo quando todos trabalhavam num hotel do grupo Pestana, no Rio, e que fez formação em doçaria conventual nas Pousadas de Portugal, o responsável pela parte criativa. “No caso do açaí, por exemplo, peguei numa receita tradicional de pão de hambúrguer, tirei o leite e substituí-o pelo açaí”, explica, sempre calmo, e inexplicavelmente sem suor a escorrer-lhe pela cara, como nesse momento acontece com todos nós.

É com a mesma calma, e como se a temperatura fosse perfeitamente aceitável, que Adailto prepara tabuleiros com pastéis de nata e os coloca no forno industrial, de onde, daí a muito pouco tempo, saem fumegantes. “Sem o Adailto, não montávamos a Arte Conventual”, garantem os outros sócios.

O cenário é inusitado. Encostamo-nos ao muro do pátio no cimo do edifício, de onde se vê, a perder de vista, o Complexo do Alemão. Construções clandestinas, ruas íngremes, fios de electricidade que se cruzam e entrelaçam. Porque é que um projecto de doces conventuais nasce aqui? “Sempre quisemos que o Arte Conventual tivesse uma componente social”, conta Rodrigo. “Como o Adailto é residente do Alemão há mais de 15 anos, decidimos aproveitar a mão-de-obra local e ao mesmo tempo ajudar o contexto social aqui.”

“Já tínhamos percebido que no Rio a questão da mão-de-obra é complexa”, continua Luís. “Seria uma mais-valia podermos formar as pessoas a partir do zero.” Complexa como? “O mais difícil é conseguir uma equipa sólida. Sobretudo no que diz respeito ao nível de compromisso e de respeito das pessoas para com o trabalho”, explica. “Todos os dias tem de se antecipar os problemas todos que podem acontecer. Às vezes, temos dificuldade em conseguir coisas simples.” Há fornecedores que não entregam na altura combinada, empregados que não aparecem para trabalhar. “Pede-se farinha para entregar na quarta e temos de começar a ligar na terça para garantir que vem”, acrescenta Adailto.

Daí a aposta em pessoal formado por eles. “Estamos a tentar recuperar algumas pessoas. Temos um rapaz que cumpriu três anos de prisão e que trabalha muito bem. São pessoas que se desenvolvem muito cedo e que aprendem rápido”, diz Luís.

Sem dinheiro para alugar um espaço na Zona Sul do Rio, voltaram-se para o Alemão. “A estrutura residencial do Adailto tem um sobrado, que era a área de que precisámos para a fase inicial do projecto.” O facto de estarem agora a mudar para Rio Comprido, onde começam a funcionar após o Carnaval, significa que a aposta está a correr bem. “Vimos que havia uma oportunidade de negócio nesta ideia de os hotéis comprarem fora os produtos de padaria e confeitaria.” Rodrigo explica que existem muitas padarias locais e que cada vez mais “os hotéis vão à procura de um plano B” para o abastecimento e que algumas dessas padarias não conseguem dar uma resposta satisfatória.

Avançaram. Hoje fornecem diariamente dez hotéis e, se a parte de padaria, salgados e doces clássicos de hotel é a maior área de negócio, a doçaria conventual é a que dá a imagem do projecto e o diferencia. “Percebemos que o carioca é um admirador dos doces portugueses e, embora haja algumas pastelarias que produzem pastéis de nata, não têm nada a ver com o nosso pastel de nata.”

A mudança de instalações representa “um passo de gigante”. A equipa vai-se manter e, se calhar, crescer, mas a ideia é continuar a trabalhar com moradores do Alemão ou de outras comunidades. Se no início, no Alemão, as carrinhas cheias de doces saíam só de madrugada, com o aumento dos clientes passaram a sair a todas as horas do dia. A partir de agora, com a nova localização em Rio Comprido, podem garantir entregas também na Barra da Tijuca e já não apenas no Centro e na Zona Sul.

E é fácil ter sucesso no Brasil? Luís: “Está muita coisa por fazer, o mercado do dia-a-dia é muito competitivo e está tudo a acontecer muito depressa. Mas este é um dos locais do mundo para se estar neste momento.” Rodrigo chama a atenção para uma diferença fundamental entre a história deles e a de outros portugueses que foram para o Brasil e encontraram dificuldades. “Nós não escolhemos o Rio para montar a Arte Conventual. O projecto foi uma consequência do nosso percurso.” Quando avançaram, já tinham um bom conhecimento da realidade, da mentalidade brasileira e do mercado na área em que queriam apostar. Quando ao Mundial de Futebol deste ano e aos Jogos Olímpicos de 2016, são “mais uma razão para continuar aqui”. Mas provavelmente estariam exactamente aqui mesmo sem esses dois mega-eventos que vão colocar o Rio no centro das atenções mundiais.

Os pastéis de nata que Adailton acabou de fazer estão agora a arrefecer no muro do terraço da casa. Rita, que trabalha com a Arte Conventual desde o início, que é também moradora no Alemão e que acaba de trazer cafezinho para todos, pergunta o que é que vamos fazer com os bolos. É que, para a reportagem da Revista 2, pedimos a toda a equipa que descesse a rua do Complexo do Alemão de pastel de nata na mão.

Mas estes estão ainda demasiado quentes e, enquanto esperamos, Luís pergunta a Rita se as coisas mudaram muito desde que a favela sofreu uma operação de “pacificação”. Ela sorri um sorriso aberto, limpa o suor do rosto e diz que sim, que agora os turistas vêm visitar sem problemas e que para os habitantes do Alemão é bom receber quem vem de fora. Mas, e estes jornalistas, querem o quê? Que a gente desça a rua com pastéis de nata na mão? Sim, é isso mesmo, vai ficar bem, prometemos, e obrigada pela paciência da equipa da Arte Conventual. A.P.C.

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A casa de Adailto no Complexo do Alemão foi transformada em base da Arte Conventual Nelson Garrido

“Portugal é péssimo a vender-se”, diz o chef

Vítor Sobral viaja para o Brasil há 24 anos. Conhece muito bem Portugal e conhece muito bem o Brasil — onde abriu a sua primeira Tasca da Esquina há três anos, em São Paulo, e está a agora a abrir a segunda, em João Pessoa. E tem uma coisa a dizer, de forma muito clara, até porque não é conhecido como homem de meias palavras: “Os brasileiros não têm a noção do que é Portugal e nós somos péssimos a vender-nos. Não é um problema de falta de escala, é de incompetência política para desbloquear os entraves que existem. Ponto. Fala-se muito de diplomacia comercial. Diplomacia comercial faço eu.”

Almoçamos na Tasca da Esquina, na zona dos Jardins, onde ficam todos os grandes restaurantes de São Paulo e, frente a um prato de pastelinhos de churrasco carioca, Sobral explica-nos que para se ter sucesso no Brasil hoje é fundamental perceber-se a mentalidade dos brasileiros. “O Brasil tem uma linguagem muito própria. Eu só à terceira tentativa é que consegui ter um restaurante em São Paulo. Vou dar um exemplo de como as coisas se passam. Uma pessoa chega a um restaurante e pede batatas fritas. O português diz ‘hoje não tenho batata frita, peço desculpa’. O brasileiro vira-se para si e diz ‘tem mas não há’. É isso o Brasil. Deparamo-nos muito com o ‘tem mas não há’. E o português não vem preparado para isso.”

Depois, é preciso os sócios certos e capital. “Percebi há muito tempo que havia um mercado para o produto português no Brasil, mas andei dez anos a tentar abrir um restaurante português aqui. Não tenho capitais próprios para arriscar. E não existe apoio ou financiamento para quem queira ser empreendedor. Vim por minha conta e risco.”

Quando se aprende a lidar com as especificidades, tudo se torna mais fácil. “Adoro o Brasil e lutei para ter a vida que tenho aqui hoje”, diz. E se é assim aqui, é assim também noutros países, como Angola, onde o chef português está também a abrir um restaurante, neste caso a Kitanda da Esquina, em Luanda. “A primeira coisa que fiz foi ler três ou quatro livros sobre a história de Angola e outros tantos para perceber como eles pensam. E tem de se fazer a mesma coisa relativamente ao Brasil.”

Quando fala do desconhecimento de muitos brasileiros em relação a Portugal, Sobral fala sobretudo de cozinha. “Já me levaram várias vezes a comer coisas como se fosse algo que eu nunca tivesse visto. Um dia levaram-me ao Recife para comer galinha ao molho pardo. O que é? Cabidela. A pessoa que me levou achava que era uma coisa da região dele.”

Vítor Sobral confessa que nem sempre é politicamente correcto e que, sobretudo, tem dificuldade “em ser um português coitadinho”. Por isso, gosta de explicar que, “quando os portugueses chegaram ao Brasil, a cozinha aqui fervia e assava, de resto, zero”. “Toda a cozinha regional brasileira, toda, sem excepção, tem uma matriz portuguesa — o refogado, o guisado, o estufado, tudo é português. Claro que incorporou muita coisa dos indígenas, muitas das matérias-primas que existiam aqui. Mas por exemplo o arroz. Ah, o arroz é muito comum no Brasil. Quem é que será que o trouxe? Não é preciso ser um génio para perceber. Como é que será que entrou aqui o coco? A manga? O ananás? O café? A cana-de-açúcar? Tal como fomos nós quem levou a mandioca para África.”

E mesmo assim, reforça, “nunca soubemos vender isto”. “Os chefs daqui ficam deslumbrados como os espanhóis, que souberam vender as coisas muito bem, investiram imenso na promoção da sua gastronomia, e em Espanha nascem estrelas Michelin como cogumelos.” A Tasca da Esquina, sublinha Sobral, é hoje uma montra de produtos e da gastronomia portuguesa — e não de uma “cozinha portuguesa tropicalizada”, como fazem outros, sublinha. Mas esse foi um trabalho solitário.

“No final do ano, vamos ter pelo menos 5 Esquinas, duas em Portugal, duas no Brasil e uma em Angola. Os copos e a louça são da Vista Alegre, os talheres, panelas, fogões, as toalhas, os guardanapos, é tudo português, depois há o azeite, o vinho.” Quando a Tasca abriu em São Paulo, abriram mais alguns restaurantes portugueses e, no conjunto “venderam-se mais dois milhões de garrafas de vinho”. Lamenta que “isto não seja aproveitado por ninguém, nem pelos produtores de vinho nem pelo turismo português”.

A comunicação social brasileira interessou-se pela abertura da Tasca da Esquina — o mesmo não aconteceu com a portuguesa, afirma. Mas o que o deixa realmente estupefacto é que, “quando precisamos tanto de exportar, ninguém aproveite a capacidade de venda que uma Tasca da Esquina tem dos produtos e da identidade portuguesa”.

O grande problema com que se debatem todos os que tentam trabalhar com produtos portugueses é “o facto de os brasileiros serem muito proteccionistas e serem precisas licenças para tudo”. É isso que torna muitíssimo difícil, por exemplo, que os queijos ou os enchidos portugueses cheguem aqui. “Os brasileiros adoram o nosso queijo, os nossos enchidos. Mas o que se vê por aí são enchidos espanhóis, italianos.” É por isso que fala em “incompetência política”.

E se no ano passado se organizou o Ano do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil, Sobral não viu resultados. “Estou farto de ver gastar dinheiro em projectos e subsídios para vender Portugal e não fazem nada de jeito. Há 24 anos que caminho para aqui e que vejo fazer imensas acções. Mas, para ser honesto, qual foi o retorno? São acções mal pensadas, e mal planeadas, e são coordenadas por pessoas que não têm a menor noção do que é o Brasil.”

As coisas acontecem, mas “não chegam às pessoas certas, nem sequer aos media”. Critica o facto de ter sido o Vila Joya, um restaurante que é propriedade de estrangeiros, a organizar a parte da gastronomia do Ano de Portugal no Brasil. “E um dos eventos aqui foi marcado para o dia em que a [revista] Veja dá os seus prémios dos melhores restaurantes, porque um responsável do Governo era para estar cá e à última hora não veio. Promovermos um lançamento no dia dos prémios da Veja não é um tiro nos pés, é nos pés, na cabeça, em todo o lado.”

Enquanto isso, os brasileiros continuam a pensar em Portugal e a ver apenas o bacalhau — e Vítor Sobral tem um livro com 100 receitas de bacalhau, que está publicado também no Brasil — e talvez o queijo da Serra, a farinheira, a alheira, o vinho e o azeite. “No início, alguns restaurantes daqui que se intitulam portugueses adulteraram as receitas, faziam por exemplo sericaia com leite condensado.” Na Tasca, isso não existe, garante. E o único produto que usa e que não se encontra com frequência em Portugal é o palmito, que acompanha as lulas (a versão na Tasca de Lisboa é com cogumelos).

O restaurante “destina-se sobretudo a brasileiros que hoje tenham já uma visão diferente de Portugal” e que aqui podem por exemplo petiscar uns ovos mexidos com bacalhau desfiado e espargos verdes, uma tiborna de presunto cru e tomates frescos, uma sardinha empanada com vinagrete, moelas fritas, bochecha de porco, alheira com grelos, farinheira com favas. Ou matar saudades de um pudim Abade de Priscos, um pastel de nata, uma encharcada (com limão siciliano) ou um toucinho-do-céu. “Há já uma parte significativa de brasileiros que conhecem bem Portugal. Dantes eles tinham aquela ideia que ir à Europa era ficar dois dias em Paris, dois dias em Londres, dois em Madrid e, no máximo, ir a Milão. Hoje, as coisas são diferentes e já somos vistos de outra maneira, mas por um grupo que ainda é restrito.”

É por tudo o que acabou de dizer sobre Portugal que Sobral não espera ajudas e avança, com um sócio português, para João Pessoa, que identificaram como uma terra de oportunidades neste momento. “É um projecto que vai passo a passo, como foi aqui, vamos ter de conquistar o nosso espaço pela qualidade, mas ao fim de um ano e pouco teremos o nosso lugar.”

Inicialmente pensaram no Recife, mas depois de um levantamento de mercado perceberam que o Recife “está congestionado e é extremamente caro”. Foram então a João Pessoa, capital do estado da Paraíba, situada entre dois grandes pólos que são o Recife e Natal, e perceberam que estão a surgir na região muitas indústrias (entre as quais a Fiat, que vai abrir uma grande fábrica) e que muitos dos funcionários destas indústrias vão viver para João Pessoa, onde a concorrência, em termos de restaurantes, não assusta.

No entanto, para quem pensa que o Brasil é o Eldorado, Vítor Sobral deixa um conselho: “Só acreditem quando as coisas estiverem mesmo firmes. Nós, portugueses, sentimo-nos bem aqui, somos bem recebidos, os brasileiros são muito mais fáceis do que nós nos primeiros contactos, nós somos mais cinzentos. Mas, atenção, traduzir isso numa situação que tenha de ser efectivada é mais complicado.”

Tem assistido à chegada de muitos portugueses a São Paulo nos últimos tempos. Alguns deles são clientes da Tasca. “É uma geração preparada, que vem para trabalhos qualificados e que são bem remunerados. Mas já encontrei alguns que vieram e tiveram de ir embora porque achavam que tudo era fácil. Agora, para quem gostar de trabalhar e for bom numa determinada área, esta ainda é a terra das oportunidades.” A.P.C.

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O chef Vitor Sobral abriu a sua primeira Tasca da Esquina há três anos, em São Paulo, e está a agora a abrir a segunda, em João Pessoa Vera Moutinho