Juárez – autópsia a uma cidade mortal

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Ruas vazias à noite, carros que não param nos vermelhos em pleno dia, portas e janelas gradeadas, paredes e árvores com buracos de bala, adultos, jovens e crianças que não jantam fora, não dançam nas discotecas, não brincam nos jardins, todos sempre a olhar por cima do ombro, a sentir-se em perigo. São milhares de assassinatos, sequestros, violações, espancamentos e roubos, milhões a circular em tráfico de drogas, armas, pessoas, órgãos…

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Ruas vazias à noite, carros que não param nos vermelhos em pleno dia, portas e janelas gradeadas, paredes e árvores com buracos de bala, adultos, jovens e crianças que não jantam fora, não dançam nas discotecas, não brincam nos jardins, todos sempre a olhar por cima do ombro, a sentir-se em perigo. São milhares de assassinatos, sequestros, violações, espancamentos e roubos, milhões a circular em tráfico de drogas, armas, pessoas, órgãos…

El Paso fica logo ali – mas do lado de lá da fronteira norte-americana, no Texas. Aqui, do lado mexicano, Juárez é uma das cidades mais perigosas do mundo. Morre-se mais e às vezes pior do que em muitas zonas de guerra.
As estatísticas de 2013 apontam para cerca de 124 mil focos habitacionais abandonados – os testemunhos silenciosos da fuga da população; 250 mil pessoas que partiram, se imaginarmos um casal por casa – serão mais…

“20 mortos no primeiro fim-de-semana”, lê-se na manchete de 4 de Janeiro de 2010 do PM, o jornal local com que Teresa Margolles forrou toda uma sala da exposição que tem no Centro de Artes Dos de Mayo, em Móstoles, nos arredores de Madrid.

Os títulos são a vermelho: “Executam outro estudante”, “Voltam a mutilar executados”, “Matam 32 no fim-de-semana”, “Massacrados no hospital”, “Estudantes voltam em caixões”, “Jornada sangrenta: mais 22 ontem”, “Três mulheres esta manhã, 6 em 24 horas”, “Matam 3 polícias em 10 horas”, “Foram 131 polícias este ano” …
É isto. E as variações mais optimistas: “Ontem só houve dois homicídios”, lê-se na manchete de 14 de Janeiro de 2010 do PM.

Estima-se que 2010 tenha sido o ano mais violento de Juárez – 3700 assassinatos, segundo dados oficiais; quer dizer que podem ter sido mais… Agora, quatro anos volvidos, supostamente as coisas melhoraram. Mas o passado não pára de se fazer presente. Como num fantasmático loop em que três crianças do pior bairro de Juárez espalmam o rosto contra a câmara de Margolles e perguntam uma e outra vez: “Cómo salimos de aquí?”

“Como saímos daqui?”, querem elas saber. E nesta exposição isso é tanto sobre um mundo de corrupção e violência como sobre o ecrã dentro do qual estas crianças não passam de assombrações a tentar atravessar do mundo dos mortos que não contam nada para o mundo dos vivos que visitam museus na Europa e nos Estados Unidos.  

No último parágrafo de um dos textos do catálogo, a comissária María Inês Rodriguez resume o arrepio que nos percorre: “Esta exposição confronta-nos com a responsabilidade daquele que vê, com o papel que este joga na escrita da história e, ainda mais, na busca colectiva da verdade.”

É o ponto a partir do qual a prática artística de Teresa Margolles se estrutura: o confronto – com a morte, a violência, a degradação do valor da vida, dos corpos… Isto a partir de um levantamento da realidade no norte do México. A zona onde ela própria nasceu – em 1963, em Culiacán, a maior cidade do estado de Sinaloa.

Ao contrário do que acontece no estado de Chihuahua, onde fica Juárez, o estado de Sinaloa não faz fronteira com os Estados Unidos. No entanto, Culiacán é a cidade-sede do mais poderoso cartel mexicano: o Cartel de Sinaloa, presente em 17 estados mexicanos (para não falar nos norte-americanos…). Acredita-se que sejam os “narcos” e sicários desta Aliança de Sangue a dominar Juárez. E há cerca de 10 anos que Margolles visita regularmente a cidade para trabalhar a partir da sua realidade.  

Num dos trabalhos com que abre a sua exposição do Centro Dos de Mayo, a artista apresenta entrevistas realizadas entre 2010 e 2013 a moradores da cidade com diferentes idades e estratos sociais. Falam sobre as suas casas.
O casal Cruz, de 60 anos, recorda como, um dia, 12 ou 14 homens encapuzados entraram e os espancaram, humilharam e roubaram – acabaram por descobrir ter sido um grupo de agentes federais. Doña Lola, de 65 anos, explica como quer ainda visitar o apartamento onde mataram a filha, uma noite, quando ela tinha acabado de deitar os cinco filhos menores. Alondra, de 14 anos, que vive com a avó, fala sobre como não consegue entrar na sua primeira casa – onde vivia com a mãe quando esta foi assassinada e ela própria espancada.
Libertad, de 19 anos, Carla, de 60… Todos os testemunhos são sobre perda.

Dentro do corpo

Toda a gente perde qualquer coisa em Juárez – familiares, amigos, dinheiro, propriedades, liberdade, auto-estima, coragem, esperança, a vida… -  e o que Margolles tem para nos dizer é que isso é também responsabilidade nossa. Afinal quem compra as drogas e tudo o mais que sai de Juárez? Isso não está na exposição, mas nós sabemos… E há um momento em que essa responsabilidade se torna gesto – um gesto nosso: em Juárez, Margolles mandou desmontar uma casa, peça por peça; no Centro Dos de Mayo os seus componentes surgem amalgamados na forma de um longo bloco rectangular arenoso e húmido a atravessar toda uma sala.

Podemos tocar-lhe – é suposto que o toquemos, como num memorial às vítimas. E quando o tocamos esse longo bloco que em tempos foi a casa de alguém vai-se desfazendo aos poucos, com o cheiro vago a qualquer coisa insalubre a espalhar-se pelo ar e a entrar-nos nos pulmões.

A vida e morte de outros a tornar-se parte do ar que respiramos – ou seja, de nós.
Foi esta também a estratégia uma das peças mais conhecidas de Margolles (uma das peças que ajudou a torná-la numa das mais conhecidas artistas plásticas mexicanas da sua geração).
En el Aire (2003) é um espaço que atravessamos rodeados por delicadas bolas de sabão iridescentes – uma fantasia onírica que guarda o horror para o fim: a informação de que as mesmas bolas de sabão que estiveram a nascer e rebentar à nossa volta foram feitas com água antes usada para lavar corpos na morgue da Cidade do México.
No momento em que ficamos a saber isso, tanto faz se a água foi ou não purificada. Sabemos que esteve em contacto com a morte. E, no Ocidente, (quase) todos temos horror à morte.

En el Aire não está no Centro Dos de Mayo. O seu fundo, porém, acompanha constantemente a obra de Margolles, que, nos anos 1990, no princípio da sua carreira, foi fundadora do colectivo artístico SEMEFO (Serviço Médico Forense).
Enquanto membro deste colectivo, assinou trabalhos como Dérmis (1995) – a partir de lençóis de um hospital público, com as impressões sangrentas de corpos – e  Estudio de la ropa de cadáveres (1997) – a partir de camisas de crianças mortas em acidentes.

Foi a linha que seguiu também a solo. Por exemplo em trabalhos como Lengua (2000) – a língua de uma jovem heroinómana conservada em formol (Margolles terá dado à família da jovem dinheiro para enterrar o resto do corpo) – ou em Vaporización (2001) a instalação que antecedeu En el Aire e em que o público era simplesmente aspergido com água usada na morgue da Cidade do México em que Margolles mergulhou a fundo, estudando, inclusivamente medicina forense.

Hoje, como numa autópsia, cada uma das suas obras resulta de uma dissecação. E é testemunha de uma realidade específica. Uma realidade que no caso da exposição do Dos de Mayo tem uma morada: Juárez – uma cidade mortal.

 


El Testigo
de Teresa Margolles
MÓSTOLES Centro Dos de Mayo. Av. Constitución 23, Madrid Tel: 00 34 91 2760221. Até 25 de Maio.