Os Kruslov, uma família russa cheia de dúvidas sobre o futuro e a revolução

A revolução da Maidan foi a semente envenenada que virou as pessoas umas contra os outras. Ucranianos contra russos, filhos contra pais.

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Os pais de Dima e de Lena são de etnia russa, e não têm dúvidas: querem a anexação da Crimeia à Rússia VASILY FEDOSENKO/reuters

“Eu não tenho medo dos russos”, diz Dima, contrariando a ideia de que as forças de Moscovo são agressivas e usurpadoras. “Eles esforçam-se por ser simpáticos”. Na conta twitter que abriram, as forças russas da Crimeia referem-se a si próprias por alcunhas carinhosas, como “gente verde”, numa referência à cor dos uniformes, ou uma expressão que pode ser traduzida como “gente carinhosa”.

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“Eu não tenho medo dos russos”, diz Dima, contrariando a ideia de que as forças de Moscovo são agressivas e usurpadoras. “Eles esforçam-se por ser simpáticos”. Na conta twitter que abriram, as forças russas da Crimeia referem-se a si próprias por alcunhas carinhosas, como “gente verde”, numa referência à cor dos uniformes, ou uma expressão que pode ser traduzida como “gente carinhosa”.

Dima não considerou completamente errada a presença das primeiras forças russas. “Mas quando vi o que fizeram no Parlamento, declarar a anexação à Rússia, nem queria acreditar”. E a ideia do referendo parece-lhe muito ambígua. “A pergunta que vão fazer não contém verdadeiras escolhas. O que perguntam é se queremos fazer parte da Rússia já hoje, ou amanhã”.

A família vive no sexto andar de um prédio degradado perto de um aeródromo militar, em Simferopol. Nos tempos soviéticos, todos estes apartamentos estavam atribuídos aos trabalhadores e militares em funções no aeródromo. Era o caso dos pais tanto de Dima como de Lena, ambos pilotos de helicópteros. Os dois jovens eram vizinhos, desde sempre. Conheceram-se no parque infantil do prédio. Hoje, os pais de Lena mudaram-se para uma casa melhor, e deram-lhe o apartamento, pelo qual também nunca tiveram de pagar nada.

Os pais de Dima e de Lena são de etnia russa, e não têm dúvidas: querem a anexação da Crimeia à Rússia. “Para eles, o Ocidente é a guerra, a Rússia é a paz”, diz Dima. Com os pais de Lena passa-se o mesmo. “Viveram na URSS. Um dia acordaram e estavam noutro país. De repente eram ucranianos”, diz ela. “Nunca se habituaram a essa realidade”.

Os filhos têm outra mentalidade, mais próxima da Europa. Viajam muito, porque ambos trabalham em ONGs que têm redes por todo o mundo. Contactam com muitas realidades, e sentem-se próximos do Ocidente. Mas com hesitações. De lá vem atracção, mas também medo. Quando começaram os protestos em Maidan, Lena foi para Kiev. Dima juntou-se-lhe depois. Tinham uma curiosidade imensa sobre o que se passava. Queriam ver, queriam aprender. Perceber como era possível mudar o mundo.

“Ao princípio, quando lá estive, tudo era pacífico”, conta Lena. “Mas os slogans já eram radicais, agressivos. Diziam ‘Ianukovitch para a prisão’, sem antes propor alguma mudança, alguma negociação. Além disso, em russo, a expressão ‘Ianukovitch pederast’ tanto significa ‘para a prisão’ como ‘é homossexual’. É um trocadilho, destinado a ofender”.

Para Dima, o grande erro da Maidan foi terem anulado o estatuto do russo como uma das línguas oficiais na Crimeia. “Foi isso que pôs de repente todos os russos contra a Maidan. Era inevitável. Sentiram-se ameaçados. Maidan passou a ser o inimigo”.

Dima é um entusiasta da democracia directa. Como especialista da internet, sabe que há tecnologia suficiente para se poder auscultar a opinião das pessoas a cada momento, e assim governar melhor, e no interesse de todos. “Tecnicamente, podemos fazê-lo. Porque não o fazemos?” Foi a Maidan para investigar esses processos, mas ficou desiludido. Achou que ninguém estava ali realmente a querer aperfeiçoar a política.

Lena faz pesquisa com outro tipo de metodologias. Trabalha numa ONG que usa o storyteling para aproximar as pessoas, resolver conflitos entre etnias e religões. “Abrir portas, construir pontes. É um projecto para a amizade entre os habitantes da Crimeia”. Trabalha com comunidades tártaras, ucranianas, russas, judaicas, arménias, na Crimeia. “Eu acredito que quando uma pessoa ouve a história particular de outra, em toda a sua profundidade, não pode deixar de aceitar o seu comportamento, por muito diferente que seja do seu”.

Em Maidan, achou que os métodos usados tinham tudo para dar errado. Nada se fazia para aproximar as pessoas, antes tudo para as demonizar e afastar. “Se vemos permanentemente imagens da Berkut (polícia especial de Ianukovitch) a bater nas pessoas, ficamos também com vontade de bater em alguém. Depois é só dizerem-nos quem é o inimigo”.

Dima e Lena voltaram de Kiev desapontados. “Esta revolução mostrou-me que não gosto de revoluções”, diz Lena. Foi uma das conclusões. A outra foi que não vale a pena fazer nada sem um bom líder. “É preciso ter um líder forte e bom. Como Ghandi. Ele tinha força e imaginação para criar métodos de luta. Não pagar impostos, ou deixar de comer. Sem um líder como Ghandi, mais vale não avançar”.

Os líderes da Ucrânia apenas conseguiram pôr as pessoas umas contra as outras. Lançaram uma semente envenenada que agora vai crescendo entre todos e dentro de cada um. “É interessante ver o que acontece no Facebook”, diz Dima. O Facebook que se tornou um meio poderoso de unir as pessoas, e que por isso tem representado um papel decisivo nas revoluções ou movimentos sociais dos últimos anos, pode ser também um motor de separação e de ódio.

“O Facebook é muito intenso, os comentários nunca param, e as coisas evoluem muito rapidamente”, explica Dima, para quem as redes sociais são uma das suas áreas de especialidade. “Numa situação destas, é impossível não estar sempre a falar disto. Uma pessoa sente-se esquisita a falar de outra coisa. Torna-se monotemático. E rapidamente as posições se extremam e surgem acusações e insultos. E as pessoas começam a bloquear os que têm posições diferentes. E ‘desamigar’ alguém é visto como uma agressão indesculpável”.

Lena culpa os políticos. “O que se passa no mundo é muito estúpido. Os políticos não resolvem nada. Deviam-nos ajudar a resolver os problemas entre nós. Deviam ser facilitadores. Mas fazem o contrário: põem-nos uns contra os outros. Como dizia Tolstoi, se odeias, não tens tempo para amar”.

Nikola está nu, suado e despenteado, com enormes olhos azuis, brincando no tapete no meio da sala. Lena pega-lhe, para lhe dar a mama, enquanto fala. “A minha mãe é muito activa no movimento pró-russo. Anda nas ruas, nos comícios. A nossa relação azedou por causa disso. Discutimos. Eu explico-lhe que na Rússia as pessoas não têm o direito de se manifestar. Vão presas por causa disso. Mas ela não quer saber. Acha que isso não é importante. O que interessa é a paz, a estabilidade. Eu não posso aceitar isso. Mas ao mesmo tempo compreendo-a. Não sei o que fazer. Diga-me, por favor: vai haver uma guerra mundial?”

Lena diz sentir-se culpada por não ter certezas. “As outras pessoas parecem saber o que fazer. Não têm dúvidas. Eu… Não consigo estar de um dos lados, contra o outro. Não gosto da anexação pela Rússia. Mas se é o que as pessoas querem, vou respeitar”.

Dima diz sentir-se culturalmente mais próximo da Europa, mas acha que, economicamente, a integração na Rússia será mais favorável à Crimeia. Votaria sim à anexação, se considerasse o referendo legal. Como não é o caso, vai boicotar.

Lena é contra a anexação, mas vê a segurança da família como mais importante do que os princípios políticos. “Tenho medo do que vai acontecer. O que este governo fez é errado, mas se os ucranianos vão reagir, então é mais seguro ficar com os russos. Ser parte da Ucrânia não é uma coisa muito importante. A paz, sim”.

Os Kruslov não vão lutar. Se houver guerra, tencionam fugir. Não sabem para onde, mas têm a mala meia feita, junto à porta de casa. Não sabem se devem partir já, porque depois pode já não ser possível.

“Sinto que a Ucrânia é o meu país”, diz Lena. “E Maidan era um impulso para mais liberdade, mais autonomia, mais responsabilidade. É isso que o Ocidente representa, para mim e muitos ucranianos. Mas agora ficámos com medo disso. É difícil ser livre e responsável. As pessoas talvez prefiram ser escravas. E estão no seu direito. Também deve haver o direito de ser escravo”.