Ucranianos da Crimeia vão boicotar referendo e estão prontos para lutar
“A Crimeia é ucraniana, e a Ucrânia é a minha pátria”, diz Alexei, um dos que esta sexta-feira se manifestaram contra a “invasão” russa em Simferopol.
Não havia palco nem microfones, e não houve discursos. Apenas uma canção, com versos da Bíblia, entoada por três padres ortodoxos trajados a preceito.
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Não havia palco nem microfones, e não houve discursos. Apenas uma canção, com versos da Bíblia, entoada por três padres ortodoxos trajados a preceito.
Um dia depois de as novas autoridades da Crimeia terem votado a anexação da península à Rússia, os ucranianos, que representam cerca de 25% da população, decidiram manifestar-se. Receiam perder direitos, e até a possibilidade de viver na Crimeia, quando a Rússia assumir o Governo da região.
“Eu não tenho casa em mais lado nenhum. Não tenho para onde ir”, disse Olga Chennigov, 29 anos, designer de publicidade. “Eu não me vou embora, mas quero que a Crimeia permaneça na Ucrânia”. Para a população etnicamente ucraniana, a decisão do Parlamento significou perder a nacionalidade e a pátria de um dia para o outro. Ficar de repente a viver num país estrangeiro e, ao que tudo indica, hostil, que os vê como inimigos. E tudo isto sem lhes terem perguntado nada.
É verdade que foi agendado um referendo, para o próximo dia 16. “Mas é um referendo ilegal”, disse Olga. “Não há nenhuma base legal para anexar a Crimeia à Rússia”. Por isso Olga não vai votar. A generalidade dos ucranianos tem a mesma posição, já assumida pelos seus representantes. Os tártaros, que constituem 12% da população, decidiram também boicotar o referendo. Só os russos irão votar.
“Dantes, a Crimeia era como uma grande Babilónia. As pessoas usavam orgulhosamente símbolos das suas etnias, as suas cores no vestuário, e não havia problemas. Agora ninguém faz isso. Agora todos têm medo”.
Olga vê a situação a evoluir perigosamente, mas recusa-se a imaginar um conflito. “As pessoas, que até aqui viviam juntas, vizinhos, amigos, ou até familiares, começarem agora a combater-se, com armas? Simplesmente não consigo formar uma imagem mental disso. É impossível”.
Olga tem amigos de todas as etnias. Até teve um namorado tártaro. Com ele, aprendeu algumas palavras da sua língua, aquelas que lhe pareceram necessárias. “Mien seni servian”, disse Olga com doçura. “Significa ‘Eu amo-te’, em tártaro”.
Iulia Chaika, 21 anos, estudante de Contabilidade, já entrou noutra fase. “Estou disposta a lutar”, disse ela. “Eu nasci numa Crimeia autónoma, integrada na Ucrânia. Não me podem roubar isso. Temos de nos defender da agressão”. Foi a Kiev, para participar nas manifestações da Maidan, integrada numa organização de activistas ucranianos. “Temos um grupo, somos o euromaidan da Crimeia”, explicou. “O nosso objectivo agora é mostrar aos russos o que é verdadeiramente a Rússia. Se eles não entenderem, partimos para a resistência armada”.
Chovia torrencialmente, e a manifestação concentrou-se cada vez mais junto à estátua de Shevchenko, onde os padres cantavam. Um dos sacerdotes tinha numa mão um crucifixo e noutra um cartaz com uma foice e um martelo e a frase “Isto é o símbolo da morte”.
“Quem quer ser russo pode ir para a Rússia”, disse ao PÚBLICO, terminada a cantoria, o padre Aleksander, da Igreja Ortodoxa Ucraniana. “As pessoas aqui falam da Rússia, mas não sabem nada da Rússia. Hoje podemos vir aqui manifestar-nos. Mas quando a Rússia assumir mesmo o poder, nunca mais o poderemos fazer livremente. É certo que os russos vão fechar a Igreja Ucraniana”, disse o padre, cuja igreja obedece ao patriarcado de Kiev. A igreja ortodoxa russa da Ucrânia obedece ao patriarcado de Moscovo.
Interrogado sobre o seu papel na manifestação, onde não houve nenhum discurso político, Aleksander, que veio enviado especialmente para a ocasião desde Poltava, no centro da Ucrânia, disse: "A Igreja tem o poder até de unir os anjos. Talvez consiga alguma coisa aqui. E se for preciso lutar, também lutaremos."
Os padres são importantes para “dar às pessoas um sentido de unidade, de pertença a uma comunidade”, explicou Irina, de 17 anos, estudante. Ela própria nunca entendeu muito bem o significado de ser-se ucraniano. Despertou para a questão agora, por causa da crise. “Fui a Kiev, participar na Maidan. E foi lá que entendi o que é a identidade ucraniana. Antes, nunca tinha pensado nisso”. Quando Irina nasceu, a Ucrânia era um país independente há cinco anos.
“O patriotismo ucraniano é coisa que não existe”, disse H, um estrangeiro do Norte de África que vive na Crimeia há dez anos, veio à manifestação, mas não quer identificado. “Eles só pensam em dinheiro. Fazem qualquer coisa por dinheiro. Nada mais os motiva. É um país recente, que nasceu sem identidade, dividido entre russos e polacos, numa euforia capitalista. Não consigo imaginá-los a lutar pela Ucrânia”.
H. vive na Ucrânia por uma razão: as mulheres. Conhece-as de todas as regiões, de todas etnias. Fisicamente, não há qualquer diferença entre uma ucraniana e uma russa, têm o mesmo ADN. Mas ele distingue-as pelo olhar. “Quando me fixam nos olhos eu sei logo. As russas são confiantes e altivas. As ucranianas têm um olhar triste. Acho que é por causa da sua História”.
Alexei Guzie, 67 anos e longa barba branca, nasceu no Turquemenistão, filho de pais ucranianos. Foi carpinteiro, sempre pobre, perdeu dois dedos da mão no trabalho. Nunca gostou dos comunistas. “Eles não respeitavam os cidadãos, a sua liberdade individual. Eu sempre fui diferente de todos, não gostava de grupos”.
Como não participava os eventos do partido, nem nas grandes comemorações colectivas, foi perseguido pelo KGB, diz ele. “Ameaçaram-me, vigiavam-me. Sofri muito. A Rússia é um país cruel”. Quando a União Soviética foi extinta e a Ucrânia se tornou independente, veio para cá. Agora considera-se nacionalista ucraniano. “Sou contra a ocupação da Crimeia pelos russos. A Crimeia é ucraniana, e a Ucrânia é a minha pátria. Os que estão agora a controlar o parlamento são da mafia russa. Já estou velho, mas se me derem uma arma para a mão, ainda mato alguns”. Para ele, amar a Ucrânia é o mesmo que odiar os comunistas.
Para outros, é a memória do mundo seguro e pacífico da URSS que os faz desprezar a Ucrânia. “As pessoas viveram na União Soviética, e continuam com a mesma mentalidade”, diz Dmitri Pritulenjo, 28 anos, activista numa ONG chamada Educatio. “E continuam muito próximas da Rússia, e muito longe do Ocidente. Precisariam de viajar, para conhecer outras coisas”.
Dmitri, cujos pais, ucranianos, vivem e trabalham na Rússia, esteve na Maidan de Kiev, e agora monitoriza cursos para “treinar líderes”, entre os ucranianos. “Na Educatio tentamos criar pessoas activas na sociedade. Pessoas capazes de se organizar, e de agir. Para que não aconteça o mesmo outra vez. Quando começou a Maidan, as pessoas aqui não entendiam o que se estava a passar. Ficaram com medo, reagiram negativamente”.
Dmitri prefere os meios pacíficos de acção aos usados por grupos como o Sector Direito, em Kiev. Mas admite que a violência pode ser necessária. “Tivemos dois meses de manifestações pacíficas, e ninguém nos ouviu, nada aconteceu. Até que surgiu o Sector Direito. Não apoio a violência, mas o que poderíamos ter feito?”
Dmitri receia que haja uma guerra na Crimeia. Se acontecer, terá vários amigos do outro lado da barricada. Até os seus pais, que há muito assumiram a identidade russa. “Falo com a minha mãe ao telefone, mas não discutimos a situação. Falamos de tudo menos do que se passa. Ela não sofre por eu estar aqui, porque não tem a noção. Em Moscovo, vê a televisão russa e pensa que está tudo pacífico. Ainda bem”.