O homem que vendeu a alma ao teatro

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Rogério de Carvalho chegou ao teatro por casualidade: o café onde costumava estudar era ponto de encontro dos alunos do Conservatório: um dia perguntaram-lhe se não queria assistir a umas aulas... João Cordeiro

Ao longo dos últimos 50 anos, Rogério de Carvalho (Gabela, 1936) trouxe aos palcos portugueses uma exigência e um rigor que tornaram da mesma família autores tão contrastantes como Howard Barker, Molière, Tchékhov, Strindberg, Schnitzler, Koltès ou Fassbinder — oferecendo a todos eles os corpos de actores das mais diversas companhias. Nas suas encenações, soube fazer conviver as sucessivas mutações do texto teatral, e assim se transformou numa figura ex machina sem a qual é impossível compreender o passado, o presente e o futuro do teatro em Portugal. O Tartufo que hoje estreia com a Companhia de Teatro de Almada no Teatro Municipal Joaquim Benite (até dia 30) é uma revisitação de um desses dramaturgos que para ele não têm tempo — é a terceira vez que encena a peça (depois de a ter trabalhado em 1987 com o Teatro Experimental de Cascais e em 1990 com Os Comediantes/TEAR), mas é sempre como se fosse a primeira. De pessoas assim costuma dizer-se que ganharam todos os prémios (o último foi o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, há um ano, pelas encenações de Devagar, de Howard Barker, e O Doente Imaginário, de Molière), que viveram todas as vidas, que nunca envelhecem — eis Rogério de Carvalho, o homem que vendeu a alma ao teatro.

É a sua terceira encenação do Tartufo. Porque volta às peças?

Quem me dera voltar sempre. Tenho com os textos uma relação de não abandono. Porque vou fazendo outras peças, o tempo vai-me dando experiências que me permitem evoluir na abordagem das peças que já fiz. Ao mesmo tempo, é uma tentação. O Tartufo vai perseguir-me para toda a vida, como o Tchékhov...

O que lhe dão autores assim?

Não são só autores, são continentes nos quais me enraízo. Tenho o continente do Tchékhov, do [Howard] Barker, do Molière, do Fassbinder. Estes autores vão-me perseguindo, ou eu a eles [risos]. Com o tempo e a idade, parece que as peças se transformam. Acho que percebo melhor o mecanismo de construção. A última encenação que fiz do Molière, O Doente Imaginário [com o Ensemble, em 2013], foi a última peça que o Molière escreveu. Muitas das personagens dessa peça estão já nesta — os amantes, Dorina, Cleanto. Este mecanismo de construção que está por detrás do discurso e da narrativa, das peripécias do texto, é uma espécie de relógio preciso. E quanto mais leio, melhor o compreendo. É como diz o Richard Foreman [pioneiro do teatro avant-guarde norte-americano]: parte-se um relógio e depois tentamos montar os pedaços de forma a que consigamos novamente ter o relógio. Às vezes basta-me acreditar nessa procura para ter a sensação de que não só percebi como se relacionam essas diversas partes como de que é possível montar o relógio.

É igual com os autores contemporâneos, como Barker?

No Barker a inspiração vem da tragédia. Ele próprio também se diz seduzido pelo mecanismo que Molière usa nas suas peças. O teatro, nas suas leis — que não digo que sejam objectivas —, aproxima os autores, de espectáculo para espectáculo, de texto para texto. E se há qualquer coisa que os define, e me definará também a mim, será a procura de uma estética e de uma forma de trabalho que proceda à passagem do texto para o espectáculo.

Há autores que sente que não consegue abordar?

Isso não, nunca fiz um autor de que não gostasse. Mas já tive alguns espectáculos falhados [risos]. 

Certamente que a abordagem se altera conforme o autor, ou mesmo conforme a companhia para a qual trabalha.

Os espectáculos podem ser diferentes, porque as companhias são diferentes, mas a minha forma — enfim! — de resolver os problemas não varia de um autor para outro. Sou uma pessoa modesta, talvez não muito culta, mas as leituras que vou fazendo informam-me sobre a contemporaneidade e ajudam-me a resolver os espectáculos. Essas leituras, que fazem parte de um armazém de memória e dos meus instrumentos pessoais, subjectivos e criativos, são aplicadas comummente aos diversos autores e também à minha relação com os actores. Mas a procura pelo desconhecido, e a construção que é o espectáculo, são diferentes. Muitas vezes parto para um texto sem uma construção teórica consistente. À medida que vou encarando o texto com os actores, vamos descobrindo, colectivamente, directrizes que nos governam e permitem chegar a uma realidade que [no final] caracterizará cada companhia. O resultado é diferente com As Boas Raparigas, o Ensemble ou a Companhia de Teatro de Almada, mas eu acabo por estar no mesmo lugar. Indirectamente é isso que faz a minha identidade.

Que identidade, ou assinatura, é essa? 

Eu trabalho muito na incerteza. Não trabalho na ideia absoluta de que há uma perspectiva inicial que se vai fazer cumprir. O espectáculo vai-se construindo porque trabalhamos com pessoas que precisam de falar e de ser ouvidas. Como eu preciso. Até que há uma realidade que se impõe a partir do universo comum que construímos mas que não é ainda nem a estrutura final nem o espectáculo. Isso acontece normalmente passados 15 dias de trabalho em conjunto. Serve apenas para preparar e facilitar a memória do texto pelos actores. Só depois começamos a fazer um trabalho mais compacto, mais concentrado. 

Várias vezes falou no espaço que o actor precisa de encontrar para as palavras que tem para dizer. Que espaço é esse?

É um espaço onde o actor se realize como criador, onde faça as suas propostas e apresente o seu projecto. Razão pela qual, muitas vezes, se coloca um problema: o que entende o actor por estar a representar? Nós temos o texto mas também temos o texto absorvido pelo actor. Numa primeira fase o texto, lido e congelado, é o mais importante, depois passa a ser mais importante o texto através do actor. Mas voltamos ao texto inicial até chegarmos a um ponto em que já não precisamos da realidade do autor porque já temos a realidade do actor. Esse é o momento das grandes decisões. Eu abordo os textos, mas não venho da Literatura...

Precisamente. É economista de formação e percebe-se no seu discurso um modo de conciliação entre a macro e a micro-estrutura.

Sim, é possível, porque quando começo um trabalho há um conjunto de leituras feitas sem qualquer perspectiva que me vinculam a uma maneira de ver as coisas e o mundo. Começo a encontrar termos teóricos e um espaço onde os aplicar, se não aquilo que leio deixa de ter qualquer sentido. E eu gosto muito de ler [risos]. 

Mas como é que torna as coisas desafiantes para si?

Tornam-se desafiantes na medida em que parto para uma coisa desconhecida sem saber qual vai ser o resultado, que só surge num trabalho feito por camadas. Eu tenho uma paixão pelo texto e pela enunciação. Estou a trabalhar com o Luís Madureira, que me deixa de boca aberta com técnicas que aprofundam a enunciação e que são, para mim, uma descoberta. O que é muito interessante porque, quando eu comecei, abominava o texto [risos]. Mas isso era num tempo revolucionário. 

É verdade que veio para Portugal para jogar à bola?

[risos] Jogava à bola em Angola, mas vim para cá estudar Economia para o Instituto Comercial porque em Angola não havia universidades. Vim em 1954, tinha uns 20 anos

Já tinha feito teatro?

Não, o teatro só me apareceu aos 20 e tal anos. E a primeira vez que fui fartei-me de dormir [risos]. Não era grande coisa como espectador. Felizmente que passei a gostar, porque não o trocava pela Economia nem por nada. Hoje estaria reformado do banco ou de qualquer outra coisa que não me interessaria nada. O teatro foi uma santa casualidade. 

Aconteceu-lhe como?

O Instituto Comercial era ao pé da Caixa Geral de Depósitos [no Calhariz, ao Bairro Alto] e no café para onde eu ia estudar, o Castanheira, juntavam-se os alunos do Conservatório [actual Escola Superior de Teatro e Cinema], que era atrás. Estava cá sozinho, numa solidão terrível, e achava piada às conversas que eles tinham. Comecei a ir a umas festas, depois perguntaram-me se não queria ir assistir a umas aulas, e lá fui assistir à aula de Arte de Dizer [que hoje seria representação].

Quis logo encenar?

Não. Ainda fui trabalhar para um banco, onde estive seis meses. Odiei tanto que fui dar aulas. E foi aí que comecei a trabalhar com os alunos. Tive muita sorte, porque em Almada o director da escola [secundária Anselmo de Andrade] era anti-sistema e deixava-nos fazer as coisas que eram proibidas. Eu e os alunos acordávamos às quatro da manhã para ensaiar até às seis porque as mulheres da limpeza entravam às sete. Fazíamos o Brecht que era proibido, fazíamos os textos do Living Theater [colectivo radical norte-americano de Julian Beck e Judith Malina]. 

Onde é que os tinha visto?

Não tinha visto, comprava revistas estrangeiras, como a [espanhola] ADE. Depois apareceram uns livros com fotografias de espectáculos do [Jerzy] Grotowski e do Living Theater, mas eram em inglês e eu não sabia inglês, por isso copiava as fotografias. O [crítico] Carlos Porto veio ver uma encenação minha da Antígona, do Brecht, que achou muito interessante, mas era tudo copiado dos Living [risos]. Púnhamos umas cadeiras de lado, ou o público ficava de pé, e andávamos ali no meio, à Living [risos]. Depois começámos a fazer espectáculos mais interessantes, como uma peça do Peter Weiss [Uma Forma de, 1965], que demorava cinco horas e que fizemos nas paróquias. Tinha 150 alunos e só a entrada deles em palco demorava uma hora. São coisas que marcam. 

Foi aí que percebeu que queria mesmo encenar? 

Não. Só depois de me reformar é que comecei a pensar nisso. Apareceu uma proposta para fazer As Três Irmãs [com o Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria, em 1977]. E eu inconscientemente aceitei. Se tivesse pensado, talvez não aceitasse, mas foi aí que conheci o [cenógrafo] José Manuel Castanheira. Havia um défice de Tchékhov em Portugal. Quando era feito era sempre muito pesado. Fomos convidados, pelo Luís Miguel Cintra e pelo Jorge Silva Melo a apresentar-nos no Teatro da Cornucópia [em 1978]. Foi um sucesso. Estivemos cheios todos os dias. E a partir daí... Agora tenho uma vontade louca de fazer Tchékhov, nomeadamente A Gaivota e O Cerejal.

É o Rogério de Carvalho a dialogar com o seu próprio passado?

Sim, completamente. E também com os espectáculos de outros encenadores. Eu já não vou ver um espectáculo de forma inocente. Estou sempre a ver o fantasma do encenador. Tenho muitas saudades de ser um espectador limpo. O que nem sempre é gratificante. Às vezes vemos coisas tão extraordinárias e ficamos com pena de não termos sido nós a fazer [risos].

É a procura da perfeição? 

A perfeição é algo que se persegue mas nunca se atinge. E é por isso que me permito revisitar os textos. Se encontrasse a perfeição, arrumava a casa e não pensava mais nisso. À medida que o tempo vai passando, não é que eu ache que o que foi feito seja mau, mas é um outro objecto, criado por uma outra realidade temporal. Por exemplo: quando fiz Os Negros [de Jean Genet] em Angola, o resultado foi superior à versão que tinha feito antes [Teatro Nacional São João, 2006].

O Nuno Carinhas dizia-me que a visão enraizadamente europeia que emprestou ao texto de Jean Genet só era possível, paradoxalmente, porque era assinada por alguém que olhava para a Europa de fora. 

Sim, isso faço. O Bernard-Marie Koltès, por exemplo [cujo Na Solidão dos Campos de Algodão acaba de encenar para o Teatro Oficina e a Útero], tem um olhar sobre a Europa que mostra ser uma injustiça aquilo que a civilização ocidental pratica em relação as outras civilizações. Não sou cego. Mas ao estar na Europa, em Portugal, encontro condições para viver do teatro que não encontro em Angola. O teatro que está a aparecer em Angola é diferente, é marginal, funciona de outra forma. 

Isso dá-lhe vontade de voltar? 

Penso nisso cada vez mais. O sítio onde uma pessoa nasce nunca se esquece. Vivi até aos 20 anos em Gabela, próximo de Benguela. O que dói, e cria uma certa angústia, é ver as coisas a evoluirem e não estar a participar. Mas não não há condições para fazer um teatro contemporâneo como aquele que faço em Portugal. Como é que é possível que alguém como eu, vindo de África, tenha feito a abordagem que fiz a Tchékhov? 

Compreenderia o que era o exílio pessoal, ser-se estrangeiro em casa...

São questões muito complicadas. E essa é a razão pela qual me refugiei no teatro. O teatro conseguiu transformar-me em diferentes frentes. Se eu fosse economista seria simplesmente economista e teria uma visão relativa deste lado humano que o teatro dá às coisas. Nunca fui do regime e, por isso, houve vários problemas políticos. Dizia-se, no início da guerra pela independência angolana, que aqueles que aqui estavam deviam regressar e ensinar o que haviam aprendido. Em 1968 pensei em dar o salto para França ou Marrocos, mas foi o teatro que me permitiu encontrar formas de sobreviver. Tenho 77 anos, faço 78. E cada vez me apetece mais trabalhar. O trabalho de teatro é muito gratificante. Eu não escrevo, não faço outra coisa. E não é agora que o vou fazer.

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Ao longo dos últimos 50 anos, Rogério de Carvalho (Gabela, 1936) trouxe aos palcos portugueses uma exigência e um rigor que tornaram da mesma família autores tão contrastantes como Howard Barker, Molière, Tchékhov, Strindberg, Schnitzler, Koltès ou Fassbinder — oferecendo a todos eles os corpos de actores das mais diversas companhias. Nas suas encenações, soube fazer conviver as sucessivas mutações do texto teatral, e assim se transformou numa figura ex machina sem a qual é impossível compreender o passado, o presente e o futuro do teatro em Portugal. O Tartufo que hoje estreia com a Companhia de Teatro de Almada no Teatro Municipal Joaquim Benite (até dia 30) é uma revisitação de um desses dramaturgos que para ele não têm tempo — é a terceira vez que encena a peça (depois de a ter trabalhado em 1987 com o Teatro Experimental de Cascais e em 1990 com Os Comediantes/TEAR), mas é sempre como se fosse a primeira. De pessoas assim costuma dizer-se que ganharam todos os prémios (o último foi o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, há um ano, pelas encenações de Devagar, de Howard Barker, e O Doente Imaginário, de Molière), que viveram todas as vidas, que nunca envelhecem — eis Rogério de Carvalho, o homem que vendeu a alma ao teatro.

É a sua terceira encenação do Tartufo. Porque volta às peças?

Quem me dera voltar sempre. Tenho com os textos uma relação de não abandono. Porque vou fazendo outras peças, o tempo vai-me dando experiências que me permitem evoluir na abordagem das peças que já fiz. Ao mesmo tempo, é uma tentação. O Tartufo vai perseguir-me para toda a vida, como o Tchékhov...

O que lhe dão autores assim?

Não são só autores, são continentes nos quais me enraízo. Tenho o continente do Tchékhov, do [Howard] Barker, do Molière, do Fassbinder. Estes autores vão-me perseguindo, ou eu a eles [risos]. Com o tempo e a idade, parece que as peças se transformam. Acho que percebo melhor o mecanismo de construção. A última encenação que fiz do Molière, O Doente Imaginário [com o Ensemble, em 2013], foi a última peça que o Molière escreveu. Muitas das personagens dessa peça estão já nesta — os amantes, Dorina, Cleanto. Este mecanismo de construção que está por detrás do discurso e da narrativa, das peripécias do texto, é uma espécie de relógio preciso. E quanto mais leio, melhor o compreendo. É como diz o Richard Foreman [pioneiro do teatro avant-guarde norte-americano]: parte-se um relógio e depois tentamos montar os pedaços de forma a que consigamos novamente ter o relógio. Às vezes basta-me acreditar nessa procura para ter a sensação de que não só percebi como se relacionam essas diversas partes como de que é possível montar o relógio.

É igual com os autores contemporâneos, como Barker?

No Barker a inspiração vem da tragédia. Ele próprio também se diz seduzido pelo mecanismo que Molière usa nas suas peças. O teatro, nas suas leis — que não digo que sejam objectivas —, aproxima os autores, de espectáculo para espectáculo, de texto para texto. E se há qualquer coisa que os define, e me definará também a mim, será a procura de uma estética e de uma forma de trabalho que proceda à passagem do texto para o espectáculo.

Há autores que sente que não consegue abordar?

Isso não, nunca fiz um autor de que não gostasse. Mas já tive alguns espectáculos falhados [risos]. 

Certamente que a abordagem se altera conforme o autor, ou mesmo conforme a companhia para a qual trabalha.

Os espectáculos podem ser diferentes, porque as companhias são diferentes, mas a minha forma — enfim! — de resolver os problemas não varia de um autor para outro. Sou uma pessoa modesta, talvez não muito culta, mas as leituras que vou fazendo informam-me sobre a contemporaneidade e ajudam-me a resolver os espectáculos. Essas leituras, que fazem parte de um armazém de memória e dos meus instrumentos pessoais, subjectivos e criativos, são aplicadas comummente aos diversos autores e também à minha relação com os actores. Mas a procura pelo desconhecido, e a construção que é o espectáculo, são diferentes. Muitas vezes parto para um texto sem uma construção teórica consistente. À medida que vou encarando o texto com os actores, vamos descobrindo, colectivamente, directrizes que nos governam e permitem chegar a uma realidade que [no final] caracterizará cada companhia. O resultado é diferente com As Boas Raparigas, o Ensemble ou a Companhia de Teatro de Almada, mas eu acabo por estar no mesmo lugar. Indirectamente é isso que faz a minha identidade.

Que identidade, ou assinatura, é essa? 

Eu trabalho muito na incerteza. Não trabalho na ideia absoluta de que há uma perspectiva inicial que se vai fazer cumprir. O espectáculo vai-se construindo porque trabalhamos com pessoas que precisam de falar e de ser ouvidas. Como eu preciso. Até que há uma realidade que se impõe a partir do universo comum que construímos mas que não é ainda nem a estrutura final nem o espectáculo. Isso acontece normalmente passados 15 dias de trabalho em conjunto. Serve apenas para preparar e facilitar a memória do texto pelos actores. Só depois começamos a fazer um trabalho mais compacto, mais concentrado. 

Várias vezes falou no espaço que o actor precisa de encontrar para as palavras que tem para dizer. Que espaço é esse?

É um espaço onde o actor se realize como criador, onde faça as suas propostas e apresente o seu projecto. Razão pela qual, muitas vezes, se coloca um problema: o que entende o actor por estar a representar? Nós temos o texto mas também temos o texto absorvido pelo actor. Numa primeira fase o texto, lido e congelado, é o mais importante, depois passa a ser mais importante o texto através do actor. Mas voltamos ao texto inicial até chegarmos a um ponto em que já não precisamos da realidade do autor porque já temos a realidade do actor. Esse é o momento das grandes decisões. Eu abordo os textos, mas não venho da Literatura...

Precisamente. É economista de formação e percebe-se no seu discurso um modo de conciliação entre a macro e a micro-estrutura.

Sim, é possível, porque quando começo um trabalho há um conjunto de leituras feitas sem qualquer perspectiva que me vinculam a uma maneira de ver as coisas e o mundo. Começo a encontrar termos teóricos e um espaço onde os aplicar, se não aquilo que leio deixa de ter qualquer sentido. E eu gosto muito de ler [risos]. 

Mas como é que torna as coisas desafiantes para si?

Tornam-se desafiantes na medida em que parto para uma coisa desconhecida sem saber qual vai ser o resultado, que só surge num trabalho feito por camadas. Eu tenho uma paixão pelo texto e pela enunciação. Estou a trabalhar com o Luís Madureira, que me deixa de boca aberta com técnicas que aprofundam a enunciação e que são, para mim, uma descoberta. O que é muito interessante porque, quando eu comecei, abominava o texto [risos]. Mas isso era num tempo revolucionário. 

É verdade que veio para Portugal para jogar à bola?

[risos] Jogava à bola em Angola, mas vim para cá estudar Economia para o Instituto Comercial porque em Angola não havia universidades. Vim em 1954, tinha uns 20 anos

Já tinha feito teatro?

Não, o teatro só me apareceu aos 20 e tal anos. E a primeira vez que fui fartei-me de dormir [risos]. Não era grande coisa como espectador. Felizmente que passei a gostar, porque não o trocava pela Economia nem por nada. Hoje estaria reformado do banco ou de qualquer outra coisa que não me interessaria nada. O teatro foi uma santa casualidade. 

Aconteceu-lhe como?

O Instituto Comercial era ao pé da Caixa Geral de Depósitos [no Calhariz, ao Bairro Alto] e no café para onde eu ia estudar, o Castanheira, juntavam-se os alunos do Conservatório [actual Escola Superior de Teatro e Cinema], que era atrás. Estava cá sozinho, numa solidão terrível, e achava piada às conversas que eles tinham. Comecei a ir a umas festas, depois perguntaram-me se não queria ir assistir a umas aulas, e lá fui assistir à aula de Arte de Dizer [que hoje seria representação].

Quis logo encenar?

Não. Ainda fui trabalhar para um banco, onde estive seis meses. Odiei tanto que fui dar aulas. E foi aí que comecei a trabalhar com os alunos. Tive muita sorte, porque em Almada o director da escola [secundária Anselmo de Andrade] era anti-sistema e deixava-nos fazer as coisas que eram proibidas. Eu e os alunos acordávamos às quatro da manhã para ensaiar até às seis porque as mulheres da limpeza entravam às sete. Fazíamos o Brecht que era proibido, fazíamos os textos do Living Theater [colectivo radical norte-americano de Julian Beck e Judith Malina]. 

Onde é que os tinha visto?

Não tinha visto, comprava revistas estrangeiras, como a [espanhola] ADE. Depois apareceram uns livros com fotografias de espectáculos do [Jerzy] Grotowski e do Living Theater, mas eram em inglês e eu não sabia inglês, por isso copiava as fotografias. O [crítico] Carlos Porto veio ver uma encenação minha da Antígona, do Brecht, que achou muito interessante, mas era tudo copiado dos Living [risos]. Púnhamos umas cadeiras de lado, ou o público ficava de pé, e andávamos ali no meio, à Living [risos]. Depois começámos a fazer espectáculos mais interessantes, como uma peça do Peter Weiss [Uma Forma de, 1965], que demorava cinco horas e que fizemos nas paróquias. Tinha 150 alunos e só a entrada deles em palco demorava uma hora. São coisas que marcam. 

Foi aí que percebeu que queria mesmo encenar? 

Não. Só depois de me reformar é que comecei a pensar nisso. Apareceu uma proposta para fazer As Três Irmãs [com o Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria, em 1977]. E eu inconscientemente aceitei. Se tivesse pensado, talvez não aceitasse, mas foi aí que conheci o [cenógrafo] José Manuel Castanheira. Havia um défice de Tchékhov em Portugal. Quando era feito era sempre muito pesado. Fomos convidados, pelo Luís Miguel Cintra e pelo Jorge Silva Melo a apresentar-nos no Teatro da Cornucópia [em 1978]. Foi um sucesso. Estivemos cheios todos os dias. E a partir daí... Agora tenho uma vontade louca de fazer Tchékhov, nomeadamente A Gaivota e O Cerejal.

É o Rogério de Carvalho a dialogar com o seu próprio passado?

Sim, completamente. E também com os espectáculos de outros encenadores. Eu já não vou ver um espectáculo de forma inocente. Estou sempre a ver o fantasma do encenador. Tenho muitas saudades de ser um espectador limpo. O que nem sempre é gratificante. Às vezes vemos coisas tão extraordinárias e ficamos com pena de não termos sido nós a fazer [risos].

É a procura da perfeição? 

A perfeição é algo que se persegue mas nunca se atinge. E é por isso que me permito revisitar os textos. Se encontrasse a perfeição, arrumava a casa e não pensava mais nisso. À medida que o tempo vai passando, não é que eu ache que o que foi feito seja mau, mas é um outro objecto, criado por uma outra realidade temporal. Por exemplo: quando fiz Os Negros [de Jean Genet] em Angola, o resultado foi superior à versão que tinha feito antes [Teatro Nacional São João, 2006].

O Nuno Carinhas dizia-me que a visão enraizadamente europeia que emprestou ao texto de Jean Genet só era possível, paradoxalmente, porque era assinada por alguém que olhava para a Europa de fora. 

Sim, isso faço. O Bernard-Marie Koltès, por exemplo [cujo Na Solidão dos Campos de Algodão acaba de encenar para o Teatro Oficina e a Útero], tem um olhar sobre a Europa que mostra ser uma injustiça aquilo que a civilização ocidental pratica em relação as outras civilizações. Não sou cego. Mas ao estar na Europa, em Portugal, encontro condições para viver do teatro que não encontro em Angola. O teatro que está a aparecer em Angola é diferente, é marginal, funciona de outra forma. 

Isso dá-lhe vontade de voltar? 

Penso nisso cada vez mais. O sítio onde uma pessoa nasce nunca se esquece. Vivi até aos 20 anos em Gabela, próximo de Benguela. O que dói, e cria uma certa angústia, é ver as coisas a evoluirem e não estar a participar. Mas não não há condições para fazer um teatro contemporâneo como aquele que faço em Portugal. Como é que é possível que alguém como eu, vindo de África, tenha feito a abordagem que fiz a Tchékhov? 

Compreenderia o que era o exílio pessoal, ser-se estrangeiro em casa...

São questões muito complicadas. E essa é a razão pela qual me refugiei no teatro. O teatro conseguiu transformar-me em diferentes frentes. Se eu fosse economista seria simplesmente economista e teria uma visão relativa deste lado humano que o teatro dá às coisas. Nunca fui do regime e, por isso, houve vários problemas políticos. Dizia-se, no início da guerra pela independência angolana, que aqueles que aqui estavam deviam regressar e ensinar o que haviam aprendido. Em 1968 pensei em dar o salto para França ou Marrocos, mas foi o teatro que me permitiu encontrar formas de sobreviver. Tenho 77 anos, faço 78. E cada vez me apetece mais trabalhar. O trabalho de teatro é muito gratificante. Eu não escrevo, não faço outra coisa. E não é agora que o vou fazer.