Louise Erdrich tem a literatura colada à sua identidade
A dificuldade começa logo quando se pergunta-se a Louise Erdrich quem é ela. Uma índia, filha de uma mulher da tribo Ojibwa (umas das maiores da América do Norte), e de pai alemão; americana, escritora que alicerçou a sua literatura à sua condição nativa; livreira independente em Minneapolis, que edita e vende livros sobre a história e as comunidades índias na América; premiada, traduzida, a viver no interior de um imenso continente entre uma reserva e a contradição de dois modelos de vida em sociedade regidos por diferentes regras judiciais, onde uma, a federal, se sobrepõe, no limite, à da tribo. Erdrich construiu-se neste território. “Pode parecer muito confuso para a maioria das pessoas definir o que é ser índio na América actual, mas quando se está entre eles, entre nativos, tudo fica mais simples. Eu não sou só índia, tenho também uma herança alemã e sou essa mistura de passados ou de origens”, disse ao Ípsilon depois de digerido um sucesso que ajudou a colocar o seu nome entre os de “respeito” das letras norte-americanas e não apenas limitada à classificação de “escritora nativa”.
Autora de romance (14, no total), poesia, ensaio, contos, é a mais velha de sete irmãos e começou a escrever cedo, estimulada pelo pai que lhe pagava por cada história que escrevesse. Na faculdade, estudou inglês e conheceu o marido, o antropólogo e escritor Michael Dorris. Tiveram seis filhos, três adoptados. Casaram em 1981, separam-se em 1995 e Michael suicidou-se 1997. Um e outro estiveram sempre próximos das comunidades indígenas norte-americanas. O primeiro romance de Erdrich é de 1984, Love Medicine. Esta é a biografia base. E reformula-se agora a primeira questão, a da identidade, para tentar perceber o que está em causa quando Louise é apresentada como uma pós-moderna e uma escritora nativa. “Talvez por esse facto, sobretudo o de ser ‘nativa’, tivesse demorado mais a ser levada a sério. Eu, simplesmente, continuo a pôr uma palavra ao lado de outra. Não importa. Tudo o que consigo é um rasgo de sorte. Ainda que por vezes uma vida de escrita seja instável, inconstante, e que sinta que estou a caminhar em direcção a um precipício, não há nada que possa fazer que me dê tanto prazer (quando as coisas correm bem). Assim, todos os dias vou para o meu sótão e olho para a parede com um bloco de notas à minha frente.”
As ausências
Falar com Louise Erdrich, a mulher que nasceu em 1954 em Little Falls, Minnesota, e tem feito das suas origens a sua literatura, é nunca sair dessa fronteira entre tantas contradições e de uma geografia cujo centro se situa no Dakota do Norte e na herança da colonização americana. Como A Casa Redonda (Clube do Autor), romance vencedor do National Book Award em 2012, uma narrativa que conjuga os elementos do policial com a intimidade das histórias de família e onde se fala de duas justiças: o sistema judicial dos EUA e o modo como se transpõe para os tribunais, e uma forma mais antiga de justiça, anterior à Constituição americana, que é a justiça tradicional Ojibwe.
O modelo não é convencional. Geraldine, índia, mulher de um juiz, a viver numa reserva do Dakota do Norte, é violada e desde o crime vive uma vida silenciosa. Joe, o filho de 13 anos, movimenta-se entre o pai, Bazil, às voltas com a justiça que representa e com os sentimentos de revolta que sente, e o seu próprio sentido de justiça. Vingar aquele crime passa a ser o grande objectivo de Joe enquanto passa à idade adulta. “Não quis escrever um estereótipo do romance policial, por isso deixei o leitor saber muito cedo quem cometeu o crime. Foi então que coloquei uma questão ainda mais assustadora: a necessidade de Joe se vingar daquela injustiça. Além do crime, há um assunto por resolver até quase à última página.”
E o livro, sem que isso seja gritante (esse é um dos seus méritos), é um manifesto político de uma minoria que luta por manter a sua identidade. “Todos os povos indígenas estão a enfrentar agora o ataque final sobre o pequeno pedaço de território preservado como seu, enquanto os países procuram recursos naturais. A maior ameaça é a extracção de minério, de petróleo, como acontece nas minas a céu aberto de Alberta, no Canadá, onde vive uma grande comunidade de índios Ojibwa.”
É também um alerta para um fenómeno cuja dimensão se desconhece, e para o qual a Amnistia Internacional tem vindo a alertar: o da violação de mulheres indígenas. A personagem de Geraldine nasceu de uma história real. O silêncio em que se refugia já vem da literatura. Deu-lho Louise, mas bem que podia ser real e essa verosimilhança é outra qualidade a destacar. Que verdade há em Geraldine, a mulher a quem separaram o espírito do seu corpo? Está na sua vontade de ausência. “Foi a mais aterradora das formas traumáticas de que fui capaz. O silêncio e a recusa em participar na vida. Ela teve de se retirar da vida, tornar-se invisível, para conseguir sobreviver.”
Louise Erdrich é sucinta nas respostas. Economiza palavras, vai ao osso. Esta conversa é como um reflexo do que vai no livro. A história ganha contornos dramáticos pelas ausências, o que se vai adivinhando na economia de diálogos, no modo como usa o vocabulário para descrever uma emoção. Contenção e o silêncio de Geraldine a contaminar tudo. “A dimensão deste problema [a violação de mulheres indígenas] é enorme”, continua. Quer falar da graça e da tenacidade das mulheres a que se sente pertencer, da forma como resistem. No modo como educam os filhos nos valores que receberam, lutando contra preconceitos e quase sempre com a pobreza. E não se estranha, então, Joe. O protagonista de Erdrich ganha força no contexto que o vai revelando, “um rapaz apaparicado por mulheres”, lê-se, e a voz é a dele, é a primeira pessoa deste livro. E nas entrevistas Erderich só estranha que lhe coloquem tantas vezes a pergunta de como foi capaz de ser tão convincente no seu papel de um adolescente de 13 anos. Não é mais do que a capacidade do escritor se colocar no lugar do outro. Ela é mãe de seis e já foi adolescente. O resto é a literatura e “a literatura é tudo, o grande simulacro das emoções”, lugar onde o trágico e o irónico andam tão colados como o sagrado do profano. As leis dos homens vieram daí. A literatura também.
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A dificuldade começa logo quando se pergunta-se a Louise Erdrich quem é ela. Uma índia, filha de uma mulher da tribo Ojibwa (umas das maiores da América do Norte), e de pai alemão; americana, escritora que alicerçou a sua literatura à sua condição nativa; livreira independente em Minneapolis, que edita e vende livros sobre a história e as comunidades índias na América; premiada, traduzida, a viver no interior de um imenso continente entre uma reserva e a contradição de dois modelos de vida em sociedade regidos por diferentes regras judiciais, onde uma, a federal, se sobrepõe, no limite, à da tribo. Erdrich construiu-se neste território. “Pode parecer muito confuso para a maioria das pessoas definir o que é ser índio na América actual, mas quando se está entre eles, entre nativos, tudo fica mais simples. Eu não sou só índia, tenho também uma herança alemã e sou essa mistura de passados ou de origens”, disse ao Ípsilon depois de digerido um sucesso que ajudou a colocar o seu nome entre os de “respeito” das letras norte-americanas e não apenas limitada à classificação de “escritora nativa”.
Autora de romance (14, no total), poesia, ensaio, contos, é a mais velha de sete irmãos e começou a escrever cedo, estimulada pelo pai que lhe pagava por cada história que escrevesse. Na faculdade, estudou inglês e conheceu o marido, o antropólogo e escritor Michael Dorris. Tiveram seis filhos, três adoptados. Casaram em 1981, separam-se em 1995 e Michael suicidou-se 1997. Um e outro estiveram sempre próximos das comunidades indígenas norte-americanas. O primeiro romance de Erdrich é de 1984, Love Medicine. Esta é a biografia base. E reformula-se agora a primeira questão, a da identidade, para tentar perceber o que está em causa quando Louise é apresentada como uma pós-moderna e uma escritora nativa. “Talvez por esse facto, sobretudo o de ser ‘nativa’, tivesse demorado mais a ser levada a sério. Eu, simplesmente, continuo a pôr uma palavra ao lado de outra. Não importa. Tudo o que consigo é um rasgo de sorte. Ainda que por vezes uma vida de escrita seja instável, inconstante, e que sinta que estou a caminhar em direcção a um precipício, não há nada que possa fazer que me dê tanto prazer (quando as coisas correm bem). Assim, todos os dias vou para o meu sótão e olho para a parede com um bloco de notas à minha frente.”
As ausências
Falar com Louise Erdrich, a mulher que nasceu em 1954 em Little Falls, Minnesota, e tem feito das suas origens a sua literatura, é nunca sair dessa fronteira entre tantas contradições e de uma geografia cujo centro se situa no Dakota do Norte e na herança da colonização americana. Como A Casa Redonda (Clube do Autor), romance vencedor do National Book Award em 2012, uma narrativa que conjuga os elementos do policial com a intimidade das histórias de família e onde se fala de duas justiças: o sistema judicial dos EUA e o modo como se transpõe para os tribunais, e uma forma mais antiga de justiça, anterior à Constituição americana, que é a justiça tradicional Ojibwe.
O modelo não é convencional. Geraldine, índia, mulher de um juiz, a viver numa reserva do Dakota do Norte, é violada e desde o crime vive uma vida silenciosa. Joe, o filho de 13 anos, movimenta-se entre o pai, Bazil, às voltas com a justiça que representa e com os sentimentos de revolta que sente, e o seu próprio sentido de justiça. Vingar aquele crime passa a ser o grande objectivo de Joe enquanto passa à idade adulta. “Não quis escrever um estereótipo do romance policial, por isso deixei o leitor saber muito cedo quem cometeu o crime. Foi então que coloquei uma questão ainda mais assustadora: a necessidade de Joe se vingar daquela injustiça. Além do crime, há um assunto por resolver até quase à última página.”
E o livro, sem que isso seja gritante (esse é um dos seus méritos), é um manifesto político de uma minoria que luta por manter a sua identidade. “Todos os povos indígenas estão a enfrentar agora o ataque final sobre o pequeno pedaço de território preservado como seu, enquanto os países procuram recursos naturais. A maior ameaça é a extracção de minério, de petróleo, como acontece nas minas a céu aberto de Alberta, no Canadá, onde vive uma grande comunidade de índios Ojibwa.”
É também um alerta para um fenómeno cuja dimensão se desconhece, e para o qual a Amnistia Internacional tem vindo a alertar: o da violação de mulheres indígenas. A personagem de Geraldine nasceu de uma história real. O silêncio em que se refugia já vem da literatura. Deu-lho Louise, mas bem que podia ser real e essa verosimilhança é outra qualidade a destacar. Que verdade há em Geraldine, a mulher a quem separaram o espírito do seu corpo? Está na sua vontade de ausência. “Foi a mais aterradora das formas traumáticas de que fui capaz. O silêncio e a recusa em participar na vida. Ela teve de se retirar da vida, tornar-se invisível, para conseguir sobreviver.”
Louise Erdrich é sucinta nas respostas. Economiza palavras, vai ao osso. Esta conversa é como um reflexo do que vai no livro. A história ganha contornos dramáticos pelas ausências, o que se vai adivinhando na economia de diálogos, no modo como usa o vocabulário para descrever uma emoção. Contenção e o silêncio de Geraldine a contaminar tudo. “A dimensão deste problema [a violação de mulheres indígenas] é enorme”, continua. Quer falar da graça e da tenacidade das mulheres a que se sente pertencer, da forma como resistem. No modo como educam os filhos nos valores que receberam, lutando contra preconceitos e quase sempre com a pobreza. E não se estranha, então, Joe. O protagonista de Erdrich ganha força no contexto que o vai revelando, “um rapaz apaparicado por mulheres”, lê-se, e a voz é a dele, é a primeira pessoa deste livro. E nas entrevistas Erderich só estranha que lhe coloquem tantas vezes a pergunta de como foi capaz de ser tão convincente no seu papel de um adolescente de 13 anos. Não é mais do que a capacidade do escritor se colocar no lugar do outro. Ela é mãe de seis e já foi adolescente. O resto é a literatura e “a literatura é tudo, o grande simulacro das emoções”, lugar onde o trágico e o irónico andam tão colados como o sagrado do profano. As leis dos homens vieram daí. A literatura também.