Agora é bom ser do mal?

Hoje, ser do mal é ser charmoso. Penso nisso ao assistir a série “House Cards”, fenómeno mundial que nas suas duas temporadas apresenta as aventuras do deputado norte-americano Frank Underwood (Kevin Spacey)

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“Já? Já tentaste praticar o bem fazendo mal? Já tentaste praticar o mal fazendo bem? Já tentaste praticar o bem fazendo bem? Já tentaste praticar o mal fazendo mal? Já tentaste praticar o bem não fazendo nada? Já tentaste praticar o mal fazendo tudo? Já tentaste praticar tudo não fazendo nada? e o contrário, já tentaste? Já? Seja qual for a tua resposta, não sei que te diga”. (Alberto Pimenta)

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“Já? Já tentaste praticar o bem fazendo mal? Já tentaste praticar o mal fazendo bem? Já tentaste praticar o bem fazendo bem? Já tentaste praticar o mal fazendo mal? Já tentaste praticar o bem não fazendo nada? Já tentaste praticar o mal fazendo tudo? Já tentaste praticar tudo não fazendo nada? e o contrário, já tentaste? Já? Seja qual for a tua resposta, não sei que te diga”. (Alberto Pimenta)

Outrora, o mal tinha cara de mau. O mal era feio, fétido, funesto. O mal era bronco, brusco, bárbaro. Mas isso era antes, era em outrora, quando o ar era limpo, os políticos não eram sujos e ainda usávamos palavras como polainas, anáguas e, claro, “outrora”.

Hoje, ser do mal é ser charmoso. Penso nisso ao assistir a série “House Cards”, fenómeno mundial que nas suas duas temporadas apresenta as aventuras do deputado norte-americano Frank Underwood (Kevin Spacey).

Frank, além de ser grande mau caráter, é de um carisma ímpar. Como um Otelo, um Ricardo III, um Macbeth, a sua saga é em tudo shakespeariana, provocando em quem assiste afiadas reflexões sobre a forma como a espécie humana se comporta em sociedade. E o certo é que ela não se comporta lá muito bem.

Frank é a ponta mas o “iceberg” é imenso: da Carminha da novela “Avenida Brasil” ao capitalista “junkie” aloprado Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio em “O Lobo de Wall Street”), o que não faltam são vilões (ou malfeitores) a cativar plateias.

Os heróis, coitados, estão cada vez mais em desuso. Até os super-heróis têm de demonstrar defeitos, lados negros, fraquezas morais. Que o fulano use cuecas à mostra e voe pelos céus da cidade, tudo bem. Agora, isso de ser bonzinho a 100% é que não, nisso é que ninguém acredita.

O caso, na verdade, não é de crença, é de identificação. A ficção consumida por uma sociedade é sempre reflexo do seu tempo. Se não nos vemos como santos, se não cremos que santos podemos ser, claro está que olharemos com desinteresse as jornadas narrativas de personagens fundamentalmente bons. Olhamos no espelho e queremos ver Tony Soprano e não Pocahontas.

A culpa não é dos personagens, nem dos escritores. Estou a fazer uma análise, não uma pregação sobre os malefícios da ficção politicamente incorreta. Histórias sem vilões são chatas. Livros e filmes não devem ser confundidos com aulas de catequese. Apenas estou a sublinhar que o nosso século está a ser aquele em que amamos os personagens odiosos.

Mesmo assim, deixo uma nota: “A realidade é sempre igual à percepção”, lembra-me o meu Tio Olavo. E o que é percebido é replicado, completo eu. Nesse ciclo viciado de maus modos, conceitos como os de “tolerância”, “cortesia”, “honestidade”, “solidariedade” podem ir caindo em desuso até desaparecem. Assim como desapareceram as polainas e as anáguas no tempo de outrora.