De onde veio o homem do chapéu que atravessa as passadeiras?
Em Portugal, tem havido a preocupação de tornar os sinais de trânsito mais neutros do ponto de vista do género, diz a Autoridade de Segurança Rodoviária. As figuras nos sinais de passagem de peões, por exemplo, perderam o chapéu e tornaram-se mais geométricas. Mas esta é, por excelência, uma área que resiste às mudanças.
Na verdade, não só os sinais femininos vieram para ficar em Fuenlabrada, como também alguns semáforos passaram a alternar figuras femininas com masculinas. E ainda no ano passado o município assistia à inauguração de mais um “semáforo no sexista”, como lhe chamou a imprensa local.
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Na verdade, não só os sinais femininos vieram para ficar em Fuenlabrada, como também alguns semáforos passaram a alternar figuras femininas com masculinas. E ainda no ano passado o município assistia à inauguração de mais um “semáforo no sexista”, como lhe chamou a imprensa local.
Pedro Bessa explica que não só noutros países já se tinha tentado usar a sinalética para questionar estereótipos de género (algumas cidades da Alemanha, por exemplo, acrescentaram ao famoso Ampelmann, o homem do chapéu dos sinais luminosos, originário do Leste, a Ampelfrau, a mulher das tranças), como as directrizes internacionais não vão ao pormenor de detalhar como deve ser desenhada cada figura dos sinais de trânsito.
As regras internacionais são precisas sobre as medidas dos sinais, as cores, as formas, a distâncias a que devem ser colocados da berma, ou da curva, ou... mas nada dizem sobre se uma figura deve usar saias, calças, calções. Ou chapéu.
“Estas figuras sempre variaram bastante, do Reino Unido à Alemanha, passando pela Bélgica, França, Espanha, etc. Em vários países, como Portugal, houve vários designs presentes em simultâneo, uns mais antigos do que outros, uns importados de uns países, outros de outros (dependendo da empresa que fornecia os sinais)”, explica ao PÚBLICO o professor do Departamento de Comunicação e Arte de Aveiro. “No Gerês, por exemplo, ainda hoje se vêem sinais pintados à mão.”
Um chapéu português?
A pictografia sinalética trabalha, essencialmente, com estereótipos e caricaturas. É conservadora por excelência. E a sinalização rodoviária, em particular, é-o ainda mais — até porque há sempre o argumento da segurança. Se se mudarem os sinais estes perdem eficácia, os condutores podem ficar confusos.
Este conservadorismo ajudará a explicar que em Portugal — como ilustra o professor de Aveiro na sua tese de doutoramento — “os pictogramas relativos a ‘travessia de peões’ (grupo dos sinais de perigo) e ‘passagem para peões’ (grupo dos sinais de informação) mantivessem durante muito tempo (e ainda mantêm, nalguns casos) o característico chapéu, uma peça do vestuário masculino caída em desuso desde finais de 60”.
O homem com chapéu é “um anacronismo” — paradigmático, de resto, do domínio das figuras masculinas na sinalização, na que regula o trânsito e não só. Mas já voltamos a este ponto. Centremo-nos, para já, no homem com o chapéu que atravessa a passadeira desde o século passado. Será uma coisa portuguesa?
O primeiro regulamento sobre a circulação de automóveis em Portugal é de 1901 e não contém nenhum sinal de trânsito. Tem antes orientações genéricas, como esta: “É proibido o trânsito a automóveis nos passeios destinados a peões ou a cavaleiros.”
Já o primeiro “Código da Estrada”, com esse nome, é de 1928, quando havia, no país, menos de 5000 automóveis registados. Estabelece a obrigatoriedade de circular pela direita da faixa de rodagem e fixa meia-dúzia de sinais, como o que alerta para a aproximação de passagem de nível sem guarda. Não contém nenhum sinal que ilustre peões.
Após o fim da II Guerra Mundial, a Comissão de Transportes e Comunicações das Nações Unidas propõe a assinatura de um protocolo que fixe definitivamente as formas, cores e condições de implantação não só de todos sinais existentes mas também dos futuros. Fica conhecido como “protocolo de Genebra”. Assinado em 1949, destina-se a “garantir a segurança da circulação rodoviária” e a “facilitar a circulação rodoviária internacional”.
Um chapéu internacional
Portugal aderiu sete anos depois ao protocolo e o texto foi publicado, na íntegra, no Diário do Governo, numa versão em português e noutra em francês. E é aqui que, finalmente, encontramos o chapéu: o sinal I.17 apresenta a figura de um homem a atravessar a passadeira para indicar a “proximidade das passagens de peões”. Leva um chapéu na cabeça.
As figuras que constam dos sinais desse protocolo são todas masculinas — a excepção é uma menina de rabo de cavalo representada no sinal que indica a aproximação de locais frequentados por crianças.
Ainda assim, o chapéu não é uma presença constante nos peões dos regulamentos portugueses que vão sendo publicados ao longo dos anos no Diário da República (as figuras masculinas, sim). Do regulamento do Código da Estrada de 1954, por exemplo, não consta. Mas do Código da Estada publicado pela Polícia de Viação e Trânsito, já alterado por diplomas de 1955 e 1966, sim. E na portaria de 68, as figuras dos sinais de “trânsito proibido a peões” e de “caminho obrigatório para peões” também trazem um chapeuzinho.
A norma internacional ainda hoje aplicável aos sinais de trânsito é a Convenção de Sinalização Rodoviária adoptada em Viena em 1968 — aprovada por Resolução da Assembleia da República portuguesa em 2009, como informa Pedro Miguel Silva, assessor da presidência da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR).
A convenção de Viena começa por ser uma tentativa da ONU de uma total unificação internacional dos sinais de trânsito, mas sem resultados conclusivos. A versão consolidada da mesma, com emendas já dos anos 2000, incluindo as específicas para o continente europeu, mostra o seguinte: imperam as figuras masculinas, uma vez mais. De chapéu.
Apesar disso, nos decretos regulamentares de 1994 e de 1998, que fixam os sinais de trânsito em Portugal, os peões dos sinais voltam a aparecer todos de cabeça descoberta. E são, frequentemente, mais geométricos.
O chapéu e a locomotiva
Nos últimos anos, várias organizações internacionais têm forçado os países a adoptar orientações para que os documentos oficiais, como leis e formulários, sejam redigidos com uma “linguagem inclusiva”, onde ambos os sexos sejam referidos de forma igual (nada de escrever “os doentes”, por exemplo, deve escrever-se antes “os/as doentes”). Não há notícia de preocupação equivalente para a sinalética.
Para a sua tese de doutoramento, Pedro Bessa analisou 49 programas de sinalética (perfazendo um total de 2848 pictogramas e sinais), oriundos de diversos países e representando quase meio século de sistemas pictográficos. Seleccionou 767 que envolviam alguma representação humana — na sinalética de eventos desportivos, exposições e instituições públicas, aeroportos e sinais de trânsito...
“Encontramos para as décadas de 60 a 80, 229 pictogramas masculinos, contra 61 femininos e 48 mistos [que representam homens e mulheres]; para as décadas de 90 e 2000, 131 pictogramas masculinos contra 26 femininos e 12 mistos”, concluiu. Os dados revelam uma “geral invisibilidade das mulheres” — apesar da “pretensa ‘naturalidade’ e ‘universalidade’ da linguagem sinalética”.
Nos sinais de trânsito, especificamente, e apesar das experiências de alguns países, as mudanças são particularmente ténues. “De facto, não só o chapéu — caído em desuso há quase meio século — subsiste nos pictogramas dos sinais de trânsito. Também aí se mantém, desde há meio século, a ausência de figuras femininas.”
Em suma: “O contexto muda, os costumes evoluem, suavizam-se as oposições de género, mas as velhas formas demoram em acompanhar o evoluir dos tempos.”
A quase imutabilidade dos sinais de trânsito não se reflecte apenas na representação do feminino e do masculino: ainda hoje o sinal que alerta para uma passagem de nível sem guarda é representado por... uma locomotiva a fumegar.
Apesar de tudo isto, em Portugal, onde o desenho dos sinais de trânsito tem sido da responsabilidade de desenhadores que faziam parte das extintas Direcção-Geral de Viação e Junta Autónoma de Estradas, Pedro Miguel Silva, da ANSR, garante que tem havido o cuidado “de tornar os sinais mais neutros do ponto de vista do género”. Talvez por isso já seja tão difícil encontrar nas ruas portuguesas o sinal do homem de chapéu a atravessar uma zebra.
Fontes:
José Pedro Barbosa Gonçalves de Bessa, “Representações do masculino e do feminino na sinalética”, Universidade de Aveiro; José Pedro Barbosa Gonçalves de Bessa, “Um problema de saias: dificuldades da representação do género na linguagem pictográfica”, ex aequo; Luís Miguel Pereira Farinha, “O código da Estrada de 1928”, ANSR; João Vasco Matos Neves , “O sistema de sinalização vertical em Portugal”; Diário da República electrónico