“Estamos dando o peixe, ensinando a pescar e vamos dar o que tiver que ser para mudar o Brasil”
A ministra Tereza Campello está à frente de uma das pastas que mais dá votos a Dilma Rousseff: o Bolsa Família. Nesta entrevista responde a críticas e defende a relevância de um programa que reduziu 89% da extrema pobreza.
Nascida em 1952, em Descalvado (São Paulo), Tereza Campello esteve no grupo de trabalho que criou o Bolsa Família (BF) durante o governo do ex-Presidente Lula da Silva. Na conversa, antecipa críticas, usa frases que poderiam servir de soundbytes em campanha eleitoral.
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Nascida em 1952, em Descalvado (São Paulo), Tereza Campello esteve no grupo de trabalho que criou o Bolsa Família (BF) durante o governo do ex-Presidente Lula da Silva. Na conversa, antecipa críticas, usa frases que poderiam servir de soundbytes em campanha eleitoral.
O seu maior trunfo, porém, são os números: o BF atingiu os 50 milhões de beneficiários em 2013, o que corresponde a quase 14 milhões de famílias; com o lançamento do Plano Brasil Sem Miséria em 2011, 22 milhões de pessoas saíram da situação de miséria, superando o patamar de 70 reais (menos de 25 euros) per capita por mês; o valor médio do benefício do BF passou de 73,70 reais em 2003 para 152,54 reais em Novembro de 2013… No ano passado, o orçamento do Bolsa Família foi de 24 mil milhões.
Os resultados, defende a ministra, são “robustos” pois o ministério não trabalha com amostras, mas com dados totais. Começámos a conversa a pedir que a ministra escolhesse três aspectos positivos do programa. O primeiro é a redução da mortalidade infantil – “hoje a gente tem como provar que o BF reduziu em 58% a mortalidade das crianças devido a desnutrição e em quase 50% a mortalidade por conta de diarreia”. O segundo é o impacto na educação, que leva a ministra a dizer que “pela primeira vez na história do Brasil há indicadores entre os mais pobres que são melhores que os indicadores dos demais”: “92% das crianças no Brasil têm a frequência esperada, no caso das 'crianças Bolsa Família' é de 94%”; “82% dos jovens do BF passam de ano, contra 72% da média nacional dos que não são BF”; em 2002, apenas 32% dos jovens de 15 anos estavam na escola na idade certa, hoje são 53% dos jovens, ou seja, “a chance de ele ir para a universidade é muito maior”. Finalmente, o terceiro é a redução da extrema pobreza em 89%.
Quanto a aspectos negativos, a ministra não reconhece que existam. “Daria para perguntar o que ainda temos para fazer? Temos um desafio grande que é encontrar pessoas e incluí-las no cadastro único. Entrando no Bolsa Família as pessoas deixam de ser extremamente pobres.”
Apesar dos resultados positivos, há críticos que dizem que o programa é assistencialista e não dá às pessoas os instrumentos para que elas se autonomizem, não lhes dá a cana para pescar. Isso é um problema?
Essa é uma premissa errada, achar que as pessoas se tornariam dependentes e deixariam de procurar trabalho com o Bolsa Família. Não aconteceu. Hoje temos como provar que as pessoas não mudaram de atitude e procuram melhor vida. 48% das pessoas do BF têm menos de 17 anos, não trabalham. E nós não queremos que elas trabalhem. Tirar-lhes o BF seria tirar esse ganho, que é ensinar a pescar, porque só tem um jeito de superar a situação histórica de exclusão que essas pessoas viveram – educação. Para metade do Bolsa Família está sendo dada a cana, está-se ensinando a pescar, está sendo construída uma estratégia.
O nosso objectivo é que as pessoas saiam da pobreza. Metade das crianças estão saindo da pobreza por causa do Bolsa Família, para nós isso é indiscutível.
Os adultos trabalham. Não é verdade que não trabalhem. As pessoas diziam: eles vão receber o BF e não vão querer trabalhar. Nós não estamos discutindo em tese, estamos discutindo dados da realidade: 75% dos adultos em idade activa no Brasil trabalham, sabe quantas pessoas do BF trabalham? 75%. Não é verdade que o BF induziu essas pessoas a trabalhar mais ou menos – trabalham tanto como os de mais. A nossa avaliação é que eles trabalham mais, porque trabalham em actividades mais árduas, em actividades mais difíceis, muitas vezes trabalham de sol a sol; tem gente que trabalha com carta assinada [contrato], trabalho formal, mas mesmo assim não recebe o suficiente para sustentar a sua família.
Mesmo trabalhando com o salário mínimo, e dividindo o salário pelo número de pessoas da sua família, ele recebe menos de 70 reais, menos de 1,25 dólares por dia. A teoria é de que essa pessoa é pobre porque não trabalha. Só que isso não é verdade. Essa pessoa é pobre mesmo trabalhando. Porque é que essa pessoa é pobre mesmo trabalhando? Por vários motivos. Principalmente, porque a gente tem um passivo no Brasil de falta de oportunidades. Tem o exemplo da pessoa pobre que vem de um histórico de família sem acesso à educação. E ele trabalha no pior emprego que sobrou, é o último a ser contratado.
O Brasil vive hoje numa situação que nunca viveu na sua história: estamos com nível de desemprego de perto de 5%. Tendo emprego as pessoas trabalham. Por exemplo, hoje falta mão-de-obra qualificada, faltam pedreiros. O nosso adulto do Bolsa Família que não teve escola, não assinou contrato, acaba empregado na construção civil, só que naquela empresa que trabalha ilegalmente, que está fugindo dos impostos, e aceita trabalhar por um salário baixo. Essa pessoa é vulnerável porque aceitou trabalhar sem contrato, por um salário indigno.
No Brasil a gente tem preconceitos contra os pobres: tivemos preconceitos contra os indígenas, contra os escravos, e contra os negros, e continuamos herdando dessa cultura escravocrata. O BF tem ajudado a que a gente possa trazer para a sociedade esse dado (de que os pobres trabalham). Há vários estudos em todas as áreas, independentes do governo, que provam que o Bolsa Família não leva à preguiça; e não faz com que as pessoas busquem a informalidade – não assinar contrato para esconder do BF – porque ela já trabalhava na informalidade.
Se forem a Salvador, vão ver centenas de pessoas aproveitando esse período com muitos turistas vendendo coisas na praia – bronzeadores, pastéis, biquínis, chapéus. As pessoas não têm contrato, mas vão ver como esse trabalho é duro. Elas estão aproveitando esse período para ajudar a família. São pequenos empreendedores informais: é o que usa a cozinha de sua casa, é a costureira que usa a sua máquina… Nós estamos entrando pesadamente com qualificação profissional para esses empreendedores, alteramos a oferta de cursos de qualificação profissional no Brasil levando cursos para essa população pobre. Conseguimos levar 860 mil pessoas para cursos de qualificação – a meta era chegar a um milhão de pessoas do Bolsa Família até Dezembro de 2014, ninguém acreditava que isso ia acontecer, e está acontecendo. Abrimos linha de crédito para o micro-empreendedor investir. A costureira hoje tem acesso a taxas de juro baixas: já era costureira, trabalhava muito, conseguiu fazer o curso e hoje tem condições de aumentar a sua produção, comprar uma máquina nova…
Como é que a ministra define pobreza e extrema pobreza?
Sempre trabalhámos com um conceito multidimensional. A ideia era que o Bolsa Família fosse um rendimento, fosse inclusão na escola, acesso à educação. Há uma vertente a que a gente chama "programas complementares". Com o Brasil Sem Miséria [que existe desde 2011] conseguimos dar um salto nesse conceito levando serviços – saúde, educação, acesso a assistência social, acesso a água, acesso a energia eléctrica, acesso a um conjunto de direitos – e levando oportunidades de inclusão.
Estamos a querer enfrentar a pobreza de forma multidimensional. No Nordeste a pessoa é pobre por falta de renda, mas também por falta de água. Este conceito de falta de água não vale para o Sul do Brasil. Então não posso ter um conceito único.
Estamos usando o Bolsa Família como mapa para dizer que aqui não há médicos, que a escola sem água está aqui. Sei onde estão os pobres hoje no Brasil. Eu sei dizer o endereço deles, eu sei dizer quantas pessoas há na casa deles, qual é a escolaridade dos pais dessa criança extremamente pobre que não teve acesso ao médico. E eu sei dizer que os médicos têm de ir àquele bairro – e é isso que a presidente Dilma está fazendo com o Mais Médicos [programa de recrutamento de médicos estrangeiros e brasileiros para as zonas carenciadas no Brasil]. Nós sabemos onde essa população pobre está e sabemos que não tem acesso a médicos, que é um aspecto dramático da extrema pobreza: a falta de acesso à saúde básica, à orientação de como curar uma diarreia – tem gente que morre de diarreia no Brasil.
As pessoas são extremamente pobres por falta de rendimento e falta de água no Nordeste, por falta de assistência técnica, são extremamente pobres porque trabalham com sementes que geneticamente perderam o potencial há 200 anos e continuam trabalhando com essa semente, eles plantam e a semente não dá o suficiente.
Hoje o pobre que vive numa região inóspita, que sabe que não vai chover, tem acesso a água para beber – estamos universalizando o acesso a água para beber. [Há pessoas que dizem]: no dia que plantar melhor, então você come. Só que ele não vai resistir até lá; e até lá a criança nordestina vai continuar tendo uma baixa estatura, um baixo desenvolvimento intelectual, um baixo desenvolvimento cognitivo, um coração menor que ela tinha de ter… Nós não aceitamos isso! Nós não aceitamos a teoria confuciana de ensinar a pescar, enquanto essa criança continua reproduzindo essa tragédia. Nós estamos levando água, estamos levando comida, estamos levando médicos, escola, estamos dando o peixe, ensinando a pescar, dando a cana e vamos dar o que tiver que ser para mudar o Brasil.
Qual a diferença de um beneficiário do Bolsa Família em Santa Catarina, onde menos se recorre ao prograna, e no Maranhão, onde mais recorre?
São iguais. A diferença é que um está num estado, Santa Catarina, que tem mais oportunidade do que os outros. Mas está a receber a mesma coisa. Em Santa Catarina também estamos a fazer cisternas, o Mais Médicos está indo para Santa Catarina também. Não estamos a olhar o macro, estamos olhando o micro: não se combate a pobreza olhando o macro.
Não deveria existir um rendimento mais alto do Bolsa Família nos locais onde não há acesso a água potável e saneamento básico, onde não há hospitais próximos?
Esse Bolsa Família não conseguia pagar isso. O problema de água no Nordeste não é pagamento, é acesso. Se não levarmos água, podemos continuar dando Bolsa Família que as pessoas vão continuar sem beber – não têm onde comprar. Aliás, a água é caríssima. Não queremos que ele vá comprar uma água sem qualidade, que não é controlada pelo sector público. Neste momento, está acontecendo a pior seca dos últimos 50 anos. Não tem salário que pague uma cisterna. Não queremos que ele pague por um médico, queremos que o médico vá até ele e é isso que estamos fazendo.
No ano passado construímos mil cisternas por dia; dois milhões de pessoas tiveram acesso a água em dois anos e meio. Antes, a mulher caminhava quatro horas por dia, enchia um balde com água suja e voltava caminhando com água suja nas costas. Perdia quatro horas do dia.
Como comenta as críticas da OCDE que, num relatório de 2013, disse que o Bolsa Família seria mais eficaz se fosse aplicado em simultâneo com outras políticas de trabalho, e outras medidas como a melhoria de saneamento, de condições básicas de saúde?
Essas críticas são de quem não conhece o programa. O BF nunca foi um programa isolado. Estou dizendo: a gente fez 500 mil cisternas. Infelizmente, a gente não tem uma vara de condão. Você não consegue resolver um passivo de 500 anos em 10 anos. Agora o que estamos resolvendo desse passivo, num curtíssimo espaço de tempo, é impressionante: nunca se levou nada para essas pessoas e nós, em 10 anos, vamos universalizar a água para beber; 1,3 milhões de brasileiros, em um mandato, de um presidente, pessoas pobres, estão tendo acesso a qualificação profissional do mais alto nível; 500 anos sem acesso a nada e a gente consegue elevar a qualificação profissional num curto espaço de tempo; 500 anos sem nada e conseguimos levar crédito para essas pessoas, 500 anos sem nada e estamos dizendo que vamos levar médicos onde é preciso.
O BF hoje é o vector de oferta de serviços públicos no Brasil. O BF virou um mapa para nos ajudar a fazer o que é mais importante. Ao contrário de muitos países desenvolvidos que construíram a história de rede social e de protecção e que hoje abandonam essa rede, nós não vamos abandonar os nossos objectivos de educação e de universalizar a saúde.
Não existe mágica, só tem um jeito de fazer: fazendo. O Brasil está-se tornando menos pobre. O BF está complementando a rede de protecção social porque a população pobre que não era idosa, que não era inabilitada para o trabalho e não estava em situação de desemprego formalizado nunca foi protegida no Brasil. Agora é. Temos as quatro redes de protecção montadas, complementadas – coisa que outros países estão abandonando, nós estamos avançando, e com as outras coisas que é saúde, educação, acesso a qualificação profissional e criação do direito à universidade. Hoje o governo federal paga para que as pessoas possam ter acesso à universidade, pública e privada, hoje financiamos o jovem que quer trabalhar e estudar. Estamos a fechar o cerco. E estamos investindo em aeroportos, em estradas, em transposição de água para regiões onde falta água, em rede de saneamento.
O que está a ser feito em relação a programas de desenvolvimento económico para determinadas regiões que poderiam trazer mais emprego e tirar a população da pobreza?
Quando olhamos a história do investimento no Brasil, vemos que acontecia em regiões já ricas. Quando se estava para investir numa indústria de automóveis, era no sudeste. O Estado brasileiro, a partir do governo Lula, resolveu que esses investimentos se deveriam induzir no nordeste brasileiro. Onde estão acontecendo os grandes investimentos? No Nordeste. É por isso que o Nordeste cresce a taxas chinesas. Onde é que o emprego cresce mais no Brasil? Onde o Bolsa Família está, contrariando a tese e preconceito de que com Bolsa Família a população não ia trabalhar.
O Bolsa Família não é assistencialista, senão não estava alterando estruturalmente o Brasil. Como chamar de assistencialista um programa que está impedindo as crianças de morrer? Como chamar de assistencialista um programa que está levando qualificação profissional para o povo? Como chamar de assistencialista um programa que está induzindo a alteração do Estado, que sempre beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres?
Que análise faz de municípios que têm quase 70% da população dependente do BF?
Tem alguns lugares onde a dinâmica é muito baixa – antes do BF as pessoas passavam fome, agora não. O que perpetua a pobreza é a falta de oportunidades e de educação, e é isso que o BF está enfrentando. Essas cidades são pobres não porque estão a receber o BF, são pobres desde que o Brasil foi descoberto, nunca tiveram oportunidades – hoje dependem do BF, nos anos 1990 viviam na tragédia.
Havia uma teoria intelectual que dizia que os nordestinos eram geneticamente inferiores. Hoje está provado que essas pessoas tinham tido doenças na infância tão terríveis e tão bestas – lombrigas – por falta de acesso a um conjunto de coisas e que por isso não conseguiam crescer. Esse passivo – de ter pessoas que passaram décadas sem comer e a serem socialmente rejeitadas porque eram inferiores – nós não aceitamos. O Brasil não aceita mais ter nenhum cidadão que viva com menos de 1,25 dólares por dia e construiu uma política para garantir isso.
Quase 70% dos beneficiários do Bolsa Família são negros ou mulatos, o que é que isto diz sobre a relação entre pobreza e racismo?
Racismo é um dado cultural, da mesma forma que existe preconceito contra os pobres no Brasil. O negro é pobre no Brasil porque ele vem sendo excluído historicamente. Quando se olham os dados de inclusão, vê-se a inversão disso. Por exemplo, 92% dos que receberam o Bolsa Verde, que é um complemento do Bolsa Família, são negros; 65% dos que estão fazendo cursos de qualificação profissional são negros. O que é que esse dado revela? Que os pobres no Brasil são negros. Os pobres no Brasil são negros, crianças e mulheres: 67% dos que fazem cursos de qualificação profissional são mulheres, 65% são negros, metade das famílias são monoparentais – e compostas de mulheres. Essa mulher que cuida do idoso, da criança, que sustenta essa família, não teve acesso a um conjunto de bens.
O emprego no Brasil ainda não conseguiu chegar a salários bons para todo o mundo. Havia gente que achava que podia dar 30 reais, 1 real por dia, a uma empregada. Essa pessoa não aceita mais trabalhar por 30 reais por dia. Mas ela quer trabalhar por um salário digno. Tinha gente que dizia: mas a pessoa mora na minha casa, eu deixo ela comer na minha casa, porque é que precisa de um salário? Estamos mudando esse tipo de conceitos no Brasil.
Porque é que o Bolsa Família é entregue sobretudo às mulheres?
O Presidente Lula da Silva [que desenhou o programa, recriando outro criado pelo seu antecessor Fernando Henrique Cardoso] é filho de uma família que se superou graças ao poder da mãe e que não é excepção no Brasil. Não tendo dinheiro, o que faço com ele? Invisto nos meus filhos. Essa prioridade está presente nas mulheres. Então a chance que esse dinheiro seja gasto maioritariamente nas crianças é maior se for para a mulher. Dar à mulher significa que ela tem o direito de gastar onde quiser, mas a prioridade dela são os filhos, foi por isso que a gente tomou essa decisão.
No que é que as famílias gastam? Em comida, roupa, calçado, material escolar, medicamentos. Quando eles começam a melhorar de vida, começam a usar o Bolsa Família para consertar o telhado, para comprar uma coisa, uma televisão. Não pode comprar televisão? Pode. Achamos que ter acesso à informação também é direito deles. Qual é o problema? O povo tem direito de decidir onde vai gastar.
Veja a reportagem sobre o Bolsa Família na Bahia aqui