Um golo falhado por Pelé foi a chave para um romance de futebol

Brasileiro Sérgio Rodrigues entrou no difícil terreno da literatura sobre futebol. E saiu-se bem. O romance ainda não tem publicação prevista em Portugal.

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Sérgio Rodrigues, fotografado em casa, no Rio de Janeiro Nélson Garrido

Dezoito anos foi o tempo que o jornalista e escritor brasileiro demorou até encontrar o caminho certo para a história maior que queria contar. O desafio, que lhe deu trabalho como nenhum outro (“De certa forma, é o livro da minha vida”), chegou ao fim em 2013, quando Sérgio Rodrigues publicou O Drible (Companhia das Letras), aclamado no Brasil como um dos melhores livros do ano.

A porta de entrada no romance foi um lance falhado por Pelé no Mundial de 1970 (na meia-final contra o Uruguai), que no Brasil é quase tão famoso como os golos do craque nesse campeonato que consagrou a melhor selecção brasileira de sempre.

A descrição do lance abre o livro e agarra o leitor. Quem viu a jogada no YouTube, não mais de dez segundos, descobre que afinal há ali muito por contar. São seis páginas de relato pela voz de Murilo Filho, o grande cronista desportivo, personagem principal do livro, que há-de sentenciar que naquele dia “Pelé desafiou Deus e perdeu”. “Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais a humanidade dormia descansada.”



Sérgio Rodrigues explica a ideia, com um brilho nos olhos, sentado numa esplanada do Rio de Janeiro, com vista para o Corcovado: “Queria que aquele lance saísse da história e fosse projectado num tempo mítico, em que o tempo é eterno, circular, não vai parar de se repetir. Que é o tempo onde esse lance chegou, porque virou um dos mais famosos de todas as Copas do Mundo.” Muitas vezes, predomina a história do vencedor, mas neste caso o autor escolheu o momento em que o habitual vencedor perde. “É curioso, mas, até pelo facto de o Pelé não ter feito golo, a frustração contribui para que aquele lance fique a ressoar ainda mais.”

O Drible é a história de Murilo Filho, que tenta usar o futebol para se reaproximar do seu único filho, com quem está desavindo há 26 anos, depois da morte da mãe e de o pai lhe ter feito uma maldade. As estórias de Pelé e de outros craques do passado cruzam todo o livro, sendo tema de inúmeros diálogos e monólogos. E há um livro dentro do livro, a história de Peralvo, o craque com poderes sobrenaturais.

Mesmo não sendo exactamente um livro sobre futebol, este é um romance cheio de futebol. E essa é uma das razões para ter demorado quase 20 anos a ser escrito, entre a ideia inicial e a publicação. É claro que não foi um trabalho contínuo, porque nesse período Sérgio Rodrigues publicou artigos em jornais e escreveu seis livros. Mas um prazo tão dilatado tem significado. “É um tema notoriamente complicado. É muito comum ouvir-se críticos literários dizendo que a literatura brasileira não está à altura do futebol, porque não consegue abordar o futebol brasileiro”, responde Sérgio Rodrigues.

“É um livro muito ambicioso, no sentido em que cobre 50 ou 60 anos da história brasileira. Procura traçar um painel histórico não só apenas do futebol, mas também político e cultural. A ambição desse livro contribuiu para esse trabalho todo que tive. Quando comecei, não estava pronto. Era novo e inexperiente de mais. Precisei de escrever outras coisas”, acrescenta o autor, de 52 anos, que tem dois livros publicados em Portugal (What Língua Is Esta, da Gradiva, e Elza, a Garota, da Quetzal) — para já, nenhuma editora portuguesa mostrou interesse em publicar O Drible, que será lançado em Espanha, França e Dinamarca.

Um pouco por todo o mundo, e em particular no Brasil, há vários bons livros sobre futebol. Especialmente biografias ou crónicas, registos em que a literatura sobre futebol tem atingido a excelência. A biografia de Garrincha, por Ruy Castro, as crónicas de Nelson Rodrigues ou Futebol, Sol e Sombra, de Eduardo Galeano, são apenas alguns exemplos. Já escrever bons romances futebolísticos tem sido uma tarefa bem mais complicada, a ponto de se falar mesmo de uma certa incompatibilidade entre literatura e futebol.

Sérgio Rodrigues concorda que é difícil encontrar bons romances sobre futebol. “O Febre de Bola [Febre no Estádio], do Nick Hornby, é muito legal. É mais um romance sobre o torcedor, o acto de torcer, do que sobre futebol”, explica, acrescentando que as tentativas de romance futebolístico no Brasil foram muito marcadas por uma “lógica não desportiva, uma lógica social”: “Falava-se do jogador, mas o jogador dominado pelo clube era uma metáfora do operário dominado pelo capitalista. O futebol acabava não sendo muito respeitado na sua lógica própria, de paixão.”

Para este choque entre o futebol, ou o desporto, em geral, e a literatura já foram dadas várias explicações. Do desinteresse dos intelectuais pelo desporto — fácil de desmentir — a uma riqueza dramática do futebol, que torna difícil a criação em cima deste universo. “Nenhuma invenção, nenhuma narrativa ficcional, nada do que se tem criado, carrega em si a dimensão humana das histórias reais vividas dentro e fora dos estádios”, disse um dia o jornalista brasileiro João Máximo.

Romancear o futebol-arte
Sérgio Rodrigues acha que já lá vai o tempo em que as elites não gostavam de futebol: “Desde criança vejo que os intelectuais brasileiros adoram futebol e escrevem artigos sobre isso.” E não vê incompatibilidade entre literatura e futebol, “mas com certeza não é fácil, talvez por causa da linguagem muito cristalizada que cerca o jornalismo e a narração desportiva”. “Um dos grandes problemas da literatura ao abordar o futebol é que este já é uma narrativa pronta. A história de uma partida já está escrita, já chegou ao final, já provocou a emoção de vitória ou de derrota. Como é uma linguagem muito fechada, é difícil trabalhar em cima disso”, diz o escritor, que vive no Rio de Janeiro e nasceu em Minas Gerais.?O desejo de fazer um bom romance sobre futebol “nunca foi embora e começou a virar uma obsessão” para o autor. “Devo ter escrito umas mil páginas, que joguei fora. Mas de cada uma dessas tentativas alguma coisa ficava e o romance foi-se sedimentando”, conta Sérgio Rodrigues, que desbloqueou o livro numas férias em Outubro de 2012, em que impôs um ultimato a si próprio: ou “encaminhava” o livro, ou desistia da ideia. Encaminhou, abrindo com mítico lance de Pelé.

Será que a dimensão artística que o desporto atinge, por vezes, dificulta que a literatura se aventure por esses caminhos? Sérgio Rodrigues abana a cabeça: “Pelo contrário. Acho que isso é a porta de entrada. Pelo menos para mim foi. Esse lance do Pelé é um momento de arte e é ali que tento entrar nesse universo.” E termina a resposta de forma assertiva: “Há bons romances sobre música, pintura, por que não futebol? É mais fácil romancear sobre o futebol arte do que sobre o futebol jogo.”

Ao escrever este romance, Sérgio Rodrigues não quis alienar os leitores que não gostam de futebol, “a minoria silenciosa”, como lhe chama. O enredo sobrevive sem o futebol, mas é óbvio que o gosto pelo desporto-rei permite outra grelha de leitura, até porque, como disse Luís Fernando Veríssimo, neste livro o futebol é como se fosse uma personagem. Numa das conversas de Murilo com o filho, o velho cronista passa dez minutos de um jogo do Mundial de 1958 em que a equipa brasileira falha passes e joga tão mal que Pelé e Garrincha parecem “perebas” (jogadores sem habilidade).

“É o segredo mais bem guardado da história do futebol”, diz Murilo, deixando o filho incrédulo. “Não aconteceu nada”, responde Neto, antes de ouvir o pai explicar que só houve golos (o Brasil venceu a França por 5-2) na segunda parte. “O futebol é cheio de planícies imensas, horas mortas, como a que nós acabámos de ver (...). Nas horas mortas pode acontecer tudo. Tudo mesmo, não é força de expressão. E quando acontece é de repente, um raio que cai e muda a paisagem por completo.”

A personagem principal e o próprio romance são também uma homenagem a Mário Filho, o cronista desportivo que deu o nome ao estádio Maracanã e que é uma das referências de Sérgio Rodrigues. Quem ler O Drible e gostar de futebol há-de ter curiosidade de ler O Negro no Futebol Brasileiro, um “belo livro”, de Mário Filho que Sérgio Rodrigues tomou a missão de divulgar: “É um livro de repórter, que conta o desenvolvimento do futebol brasileiro desde que os primeiros ingleses chegaram aqui.”

A narrativa de O Drible e admiração por O Negro no Futebol Brasileiro demonstram também um certo desejo de destacar o papel dos negros na história do Brasil. Sérgio Rodrigues não tem dúvidas de que o futebol ajudou na integração racial, assim como a música. “O Brasil é um país racista, não abertamente racista, mas subtilmente racista. O futebol e a música se tornaram espaços em que essas relações raciais são muito mais equilibradas do que em qualquer área de actividade”, diz o escritor, para quem o facto de Pelé se ter tornado, nos anos 1950 e 1960, uma figura tão vitoriosa e tão exaltada em todo o mundo fez muito pela auto-estima da população brasileira negra.”

Sucesso e preocupação
Nascido em 1962 em Muriaé (Minas Gerais), Sérgio Rodrigues foi um pouco de tudo no jornalismo brasileiro. Correspondente do Jornal do Brasil em Londres, repórter desportivo no Mundial de 1986 e na Fórmula 1, repórter da Folha de São Paulo, editor da revista Veja e do Segundo Caderno, do jornal O Globo e chefe de redacção da TV Globo. Agora, acumula a literatura com artigos nos jornais e o blogue Todo Prosa.

Por agora, curte o sucesso de O Drible, ao mesmo tempo que não esquece a sua grande preocupação. O seu romance tem sido bem recebido no país. Tostão, jogador da selecção de 1970, disse que é o livro que gostaria de ter escrito e o jornalista João Máximo qualificou-o como “o melhor [romance] já escrito sobre futebol em qualquer idioma”. “É uma opinião em que a amizade conta um pouco”, diz, satisfeito, Sérgio Rodrigues, cujo terceiro romance, e sétimo livro, já vendeu cerca de seis mil exemplares e está na terceira edição em cinco meses, um valor assinalável no mercado brasileiro – e o dado suscita uma reacção indignada do escritor. “Num país de 200 milhões de pessoas, você considerar um sucesso um livro que vende dez mil exemplares é ridículo. Mas é assim”, lamenta.

“Há um desinteresse pela nossa cultura, porque livros como Os Cinquenta Tons de Cinza [edição brasileira de As Cinquenta Sombras de Grey] vendem centenas de milhares. Mas o facto de um livro ser brasileiro não interessa a quase ninguém”, argumenta Sérgio, antes de revelar que a sua grande preocupação não é o Mundial, nem o acordo ortográfico, nem qualquer outra coisa. “Me preocupa muito o facto de a educação pública de qualidade não ser uma prioridade. Se existe uma ameaça ao português no Brasil, é a educação. A educação pública é uma calamidade, uma vergonha.”
 

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Dezoito anos foi o tempo que o jornalista e escritor brasileiro demorou até encontrar o caminho certo para a história maior que queria contar. O desafio, que lhe deu trabalho como nenhum outro (“De certa forma, é o livro da minha vida”), chegou ao fim em 2013, quando Sérgio Rodrigues publicou O Drible (Companhia das Letras), aclamado no Brasil como um dos melhores livros do ano.

A porta de entrada no romance foi um lance falhado por Pelé no Mundial de 1970 (na meia-final contra o Uruguai), que no Brasil é quase tão famoso como os golos do craque nesse campeonato que consagrou a melhor selecção brasileira de sempre.

A descrição do lance abre o livro e agarra o leitor. Quem viu a jogada no YouTube, não mais de dez segundos, descobre que afinal há ali muito por contar. São seis páginas de relato pela voz de Murilo Filho, o grande cronista desportivo, personagem principal do livro, que há-de sentenciar que naquele dia “Pelé desafiou Deus e perdeu”. “Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais a humanidade dormia descansada.”



Sérgio Rodrigues explica a ideia, com um brilho nos olhos, sentado numa esplanada do Rio de Janeiro, com vista para o Corcovado: “Queria que aquele lance saísse da história e fosse projectado num tempo mítico, em que o tempo é eterno, circular, não vai parar de se repetir. Que é o tempo onde esse lance chegou, porque virou um dos mais famosos de todas as Copas do Mundo.” Muitas vezes, predomina a história do vencedor, mas neste caso o autor escolheu o momento em que o habitual vencedor perde. “É curioso, mas, até pelo facto de o Pelé não ter feito golo, a frustração contribui para que aquele lance fique a ressoar ainda mais.”

O Drible é a história de Murilo Filho, que tenta usar o futebol para se reaproximar do seu único filho, com quem está desavindo há 26 anos, depois da morte da mãe e de o pai lhe ter feito uma maldade. As estórias de Pelé e de outros craques do passado cruzam todo o livro, sendo tema de inúmeros diálogos e monólogos. E há um livro dentro do livro, a história de Peralvo, o craque com poderes sobrenaturais.

Mesmo não sendo exactamente um livro sobre futebol, este é um romance cheio de futebol. E essa é uma das razões para ter demorado quase 20 anos a ser escrito, entre a ideia inicial e a publicação. É claro que não foi um trabalho contínuo, porque nesse período Sérgio Rodrigues publicou artigos em jornais e escreveu seis livros. Mas um prazo tão dilatado tem significado. “É um tema notoriamente complicado. É muito comum ouvir-se críticos literários dizendo que a literatura brasileira não está à altura do futebol, porque não consegue abordar o futebol brasileiro”, responde Sérgio Rodrigues.

“É um livro muito ambicioso, no sentido em que cobre 50 ou 60 anos da história brasileira. Procura traçar um painel histórico não só apenas do futebol, mas também político e cultural. A ambição desse livro contribuiu para esse trabalho todo que tive. Quando comecei, não estava pronto. Era novo e inexperiente de mais. Precisei de escrever outras coisas”, acrescenta o autor, de 52 anos, que tem dois livros publicados em Portugal (What Língua Is Esta, da Gradiva, e Elza, a Garota, da Quetzal) — para já, nenhuma editora portuguesa mostrou interesse em publicar O Drible, que será lançado em Espanha, França e Dinamarca.

Um pouco por todo o mundo, e em particular no Brasil, há vários bons livros sobre futebol. Especialmente biografias ou crónicas, registos em que a literatura sobre futebol tem atingido a excelência. A biografia de Garrincha, por Ruy Castro, as crónicas de Nelson Rodrigues ou Futebol, Sol e Sombra, de Eduardo Galeano, são apenas alguns exemplos. Já escrever bons romances futebolísticos tem sido uma tarefa bem mais complicada, a ponto de se falar mesmo de uma certa incompatibilidade entre literatura e futebol.

Sérgio Rodrigues concorda que é difícil encontrar bons romances sobre futebol. “O Febre de Bola [Febre no Estádio], do Nick Hornby, é muito legal. É mais um romance sobre o torcedor, o acto de torcer, do que sobre futebol”, explica, acrescentando que as tentativas de romance futebolístico no Brasil foram muito marcadas por uma “lógica não desportiva, uma lógica social”: “Falava-se do jogador, mas o jogador dominado pelo clube era uma metáfora do operário dominado pelo capitalista. O futebol acabava não sendo muito respeitado na sua lógica própria, de paixão.”

Para este choque entre o futebol, ou o desporto, em geral, e a literatura já foram dadas várias explicações. Do desinteresse dos intelectuais pelo desporto — fácil de desmentir — a uma riqueza dramática do futebol, que torna difícil a criação em cima deste universo. “Nenhuma invenção, nenhuma narrativa ficcional, nada do que se tem criado, carrega em si a dimensão humana das histórias reais vividas dentro e fora dos estádios”, disse um dia o jornalista brasileiro João Máximo.

Romancear o futebol-arte
Sérgio Rodrigues acha que já lá vai o tempo em que as elites não gostavam de futebol: “Desde criança vejo que os intelectuais brasileiros adoram futebol e escrevem artigos sobre isso.” E não vê incompatibilidade entre literatura e futebol, “mas com certeza não é fácil, talvez por causa da linguagem muito cristalizada que cerca o jornalismo e a narração desportiva”. “Um dos grandes problemas da literatura ao abordar o futebol é que este já é uma narrativa pronta. A história de uma partida já está escrita, já chegou ao final, já provocou a emoção de vitória ou de derrota. Como é uma linguagem muito fechada, é difícil trabalhar em cima disso”, diz o escritor, que vive no Rio de Janeiro e nasceu em Minas Gerais.?O desejo de fazer um bom romance sobre futebol “nunca foi embora e começou a virar uma obsessão” para o autor. “Devo ter escrito umas mil páginas, que joguei fora. Mas de cada uma dessas tentativas alguma coisa ficava e o romance foi-se sedimentando”, conta Sérgio Rodrigues, que desbloqueou o livro numas férias em Outubro de 2012, em que impôs um ultimato a si próprio: ou “encaminhava” o livro, ou desistia da ideia. Encaminhou, abrindo com mítico lance de Pelé.

Será que a dimensão artística que o desporto atinge, por vezes, dificulta que a literatura se aventure por esses caminhos? Sérgio Rodrigues abana a cabeça: “Pelo contrário. Acho que isso é a porta de entrada. Pelo menos para mim foi. Esse lance do Pelé é um momento de arte e é ali que tento entrar nesse universo.” E termina a resposta de forma assertiva: “Há bons romances sobre música, pintura, por que não futebol? É mais fácil romancear sobre o futebol arte do que sobre o futebol jogo.”

Ao escrever este romance, Sérgio Rodrigues não quis alienar os leitores que não gostam de futebol, “a minoria silenciosa”, como lhe chama. O enredo sobrevive sem o futebol, mas é óbvio que o gosto pelo desporto-rei permite outra grelha de leitura, até porque, como disse Luís Fernando Veríssimo, neste livro o futebol é como se fosse uma personagem. Numa das conversas de Murilo com o filho, o velho cronista passa dez minutos de um jogo do Mundial de 1958 em que a equipa brasileira falha passes e joga tão mal que Pelé e Garrincha parecem “perebas” (jogadores sem habilidade).

“É o segredo mais bem guardado da história do futebol”, diz Murilo, deixando o filho incrédulo. “Não aconteceu nada”, responde Neto, antes de ouvir o pai explicar que só houve golos (o Brasil venceu a França por 5-2) na segunda parte. “O futebol é cheio de planícies imensas, horas mortas, como a que nós acabámos de ver (...). Nas horas mortas pode acontecer tudo. Tudo mesmo, não é força de expressão. E quando acontece é de repente, um raio que cai e muda a paisagem por completo.”

A personagem principal e o próprio romance são também uma homenagem a Mário Filho, o cronista desportivo que deu o nome ao estádio Maracanã e que é uma das referências de Sérgio Rodrigues. Quem ler O Drible e gostar de futebol há-de ter curiosidade de ler O Negro no Futebol Brasileiro, um “belo livro”, de Mário Filho que Sérgio Rodrigues tomou a missão de divulgar: “É um livro de repórter, que conta o desenvolvimento do futebol brasileiro desde que os primeiros ingleses chegaram aqui.”

A narrativa de O Drible e admiração por O Negro no Futebol Brasileiro demonstram também um certo desejo de destacar o papel dos negros na história do Brasil. Sérgio Rodrigues não tem dúvidas de que o futebol ajudou na integração racial, assim como a música. “O Brasil é um país racista, não abertamente racista, mas subtilmente racista. O futebol e a música se tornaram espaços em que essas relações raciais são muito mais equilibradas do que em qualquer área de actividade”, diz o escritor, para quem o facto de Pelé se ter tornado, nos anos 1950 e 1960, uma figura tão vitoriosa e tão exaltada em todo o mundo fez muito pela auto-estima da população brasileira negra.”

Sucesso e preocupação
Nascido em 1962 em Muriaé (Minas Gerais), Sérgio Rodrigues foi um pouco de tudo no jornalismo brasileiro. Correspondente do Jornal do Brasil em Londres, repórter desportivo no Mundial de 1986 e na Fórmula 1, repórter da Folha de São Paulo, editor da revista Veja e do Segundo Caderno, do jornal O Globo e chefe de redacção da TV Globo. Agora, acumula a literatura com artigos nos jornais e o blogue Todo Prosa.

Por agora, curte o sucesso de O Drible, ao mesmo tempo que não esquece a sua grande preocupação. O seu romance tem sido bem recebido no país. Tostão, jogador da selecção de 1970, disse que é o livro que gostaria de ter escrito e o jornalista João Máximo qualificou-o como “o melhor [romance] já escrito sobre futebol em qualquer idioma”. “É uma opinião em que a amizade conta um pouco”, diz, satisfeito, Sérgio Rodrigues, cujo terceiro romance, e sétimo livro, já vendeu cerca de seis mil exemplares e está na terceira edição em cinco meses, um valor assinalável no mercado brasileiro – e o dado suscita uma reacção indignada do escritor. “Num país de 200 milhões de pessoas, você considerar um sucesso um livro que vende dez mil exemplares é ridículo. Mas é assim”, lamenta.

“Há um desinteresse pela nossa cultura, porque livros como Os Cinquenta Tons de Cinza [edição brasileira de As Cinquenta Sombras de Grey] vendem centenas de milhares. Mas o facto de um livro ser brasileiro não interessa a quase ninguém”, argumenta Sérgio, antes de revelar que a sua grande preocupação não é o Mundial, nem o acordo ortográfico, nem qualquer outra coisa. “Me preocupa muito o facto de a educação pública de qualidade não ser uma prioridade. Se existe uma ameaça ao português no Brasil, é a educação. A educação pública é uma calamidade, uma vergonha.”