“O pior inimigo da cozinha brasileira chama-se Alex Atala”

Foi eleito uma das 100 personalidades mais influentes do mundo em 2013 pela revista Time. O que se passa na cabeça do chef brasileiro Alex Atala?

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Este é o tempo de Alex Atala.

E o que faz um cozinheiro quando chega ao topo? Quando é admirado e invejado, quando se torna um dos grandes do seu país, é considerado uma das pessoas mais influentes do mundo e todos querem saber o que ele pensa? O que lhe passa pela cabeça? O desejo de voltar apenas a cozinhar? A ideia de deixar tudo e sair de cena? A vontade de salvar o mundo? A angústia do futuro?

O brasileiro Atala faz, com o espanhol Ferran Adrià e o dinamarquês René Redzepi, parte de uma geração de homens que usaram a cozinha para transformar os seus países — e o mundo. Quando atravessa o seu restaurante, o D.O.M., em São Paulo, sente-se uma ligeira emoção a percorrer a sala, os olhares seguem-no discretamente quando entra na cozinha. É um homem grande, imponente, cabelo grisalho, muito curto, barba ruiva a ficar grisalha, hoje mais comprida do que há uns anos, braços tatuados, sorriso simpático, olhar penetrante.

Aproxima-se das mesas para cumprimentar alguns clientes. Um deles, sentado sozinho a uma mesa, termina a refeição e aguarda o momento de poder falar com o chef na cozinha. Atala autografa-lhe o livro que acabou de lançar — D.O.M. – Redescobrindo o Ingrediente Brasileiro — e deixa-se fotografar com ele.

Daí a pouco está sentado à nossa frente numa mesa na sala superior do D.O.M. Já tem mais pessoas à espera lá em baixo. É mais “um dia corrido”. E, sim, o futuro preocupa-o.

“Já disse e vou continuar a repetir: o maior inimigo da cozinha brasileira chama-se Alex Atala. É verdade. Se a gente não criar uma nova geração, a cozinha brasileira vai sumir. Ela não pode ser mais minha. A cozinha brasileira só vai existir se ela não for minha, se for do povo, se for de outros chefs; senão, ela morre.”

A fama tem destas coisas. Ao princípio, no Brasil, ninguém parecia acreditar muito no rebelde tatuado que cozinhava com ingredientes exóticos com nomes que ninguém, pelo menos em São Paulo ou no Rio, conseguia pronunciar. “Muitas pessoas conseguiram ficar famosas no Brasil depois de fazerem sucesso fora, porque o Brasil nunca acreditou na semente, sempre acreditou na flor. Mas a flor, para crescer, tem de nascer de uma semente”, diz. “A minha reputação foi toda construída fora do Brasil para depois ser reconhecida cá dentro. Se eu dependesse desse reconhecimento do Brasil, talvez nunca tivesse chegado onde cheguei.”

O Brasil esqueceu-se do Brasil

Com o tempo, o mundo primeiro, e o Brasil depois, foi reconhecendo esse trabalho que Atala fez, de recuperação de ingredientes, e, cada vez mais, dizer Atala era dizer Amazónia. O que é que o chef procurou na Amazónia? Uma cozinha brasileira original, pura, indígena? Os ingredientes que representam o Brasil antes da colonização pelos portugueses? Uma Amazónia idealizada?

“Uma das palavras mais conhecidas do mundo é Coca-Cola. O mundo inteiro conhece a garrafa, o mundo inteiro tem a memória de um sabor. Palavra tão conhecida como essa é Amazónia. O mundo inteiro tem uma imagem, ninguém conhece o sabor. Eu tinha um elemento internacional para trabalhar e usei. O Brasil, mais uma vez, pegou e olhou só lá de fora, e depois trouxe aqui para dentro. Foi o Brasil que se esqueceu de falar do próprio Brasil.”

Mas Amazónia, sendo uma palavra tão forte, colou-se a Atala, e ficou mais difícil explicar que o seu trabalho passa por outros ingredientes que existem no Brasil e que não vêm necessariamente da Amazónia. “Uma das primeiras frutas que trabalhei neste restaurante, e que ficaram famosas, chama-se ‘cambuci’. As pessoas falavam ‘nossa, essa é uma fruta da Amazónia’. Mas nós temos um largo em São Paulo que se chama Largo do Cambuci. Essa fruta é daqui, de São Paulo. Há é uma miopia colectiva, as pessoas acham que tudo é Amazónia e querem esquecer o resto do Brasil. É natural que o mundo ficasse fascinado pela Amazónia, como deveria ser natural o Brasil ser fascinado pelo Brasil, e não pelas notícias que vêm de fora.”

Alex cresceu, tornou-se grande, o mundo já fala da Amazónia, o Brasil também. E de repente todos querem ser iguais a ele. Como se faz?, perguntam-lhe. “Há chefs amigos que vêm aqui falar comigo: ‘Puxa, como é que ninguém me reconhece, você conseguiu tudo, eu não consigo nada.’ Só falta falar que ele cozinha melhor do que eu”, diz, soltando uma gargalhada. “E eu digo para ter calma, porque às vezes não é só cozinhar bem, é passar uma mensagem bem. É importante entender isso. É preciso uma mensagem que acrescente e que seja adequada ao momento que você está passando.”

Não há fórmulas. É preciso ter algo autêntico para dizer e fazê-lo no momento certo. “A Espanha enviou essa mensagem para o mundo na hora que o mundo estava cansado de ouvir falar da cozinha francesa. A cozinha francesa não estava em crise, o mundo estava era cansado de França, França, França. Aparece um espanhol [Ferran Adrià] e toda a atenção se vira para ele. O Brasil tinha muito boas cozinhas regionais, e tinha chefs que faziam boa cozinha francesa ou italiana, e então apareceu um cara fazendo cozinha brasileira. É natural que esse cara fosse chamar a atenção. Agora, se outro cara quer chamar a atenção no Brasil e vai fazer a mesma coisa que eu, ele não vai conseguir a mesma atenção, vai conseguir metade. Mas se ele fizer outro trabalho que seja autêntico ele vai ganhar essa atenção.”

E é preciso que apareçam (como já estão a aparecer) essas outras vozes da cozinha brasileira — até para garantir que Atala não se torna o pior inimigo desta, e que tudo não começou e não acaba com ele. O problema é que hoje toda a gente tem muita pressa, ninguém quer esperar. “A gente tem que conter as nossas ansiedades, principalmente quando falamos de tempo e de cozinha. A nouvelle cuisine foi uma moda passageira, durou uns 15 anos. O Ferran Adrià é um fenómeno, mas ele começou a existir para o mundo no ano 2000. As pessoas tendem a olhar a gastronomia com a velocidade que a Internet quer. Mas ela é orgânica, é humana, é natural, tem o tempo dela. Essas maturações vão acontecer.”

Muito aconteceu já no último meio século, diz. “Houve a nouvelle cuisine, a onda da Espanha, o locavorismo [comer os produtos que existem na região em redor, princípio defendido, por exemplo, pelo Noma, de Redzepi, em Copenhaga]. Cinquenta anos, só? São 50 anos de revoluções. Se nós conseguirmos só pegar na essência desses 50 anos, sem evoluir, mas aplicando-a nos próximos 50, a cozinha vai ser sensacional. Só que ela tem a possibilidade de continuar a evoluir. Eu vou repetir: as pessoas têm miopias, tendem a olhar para estas coisas como um ano, dois. ‘Ah, o Ferran Adrià já acabou, não tem mais nada para falar.’ Vamos entender que estes movimentos são longos.”

Já ninguém é diferente por fazer espuma

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Rubens Kato

É altura de introduzir uma pequena provocação. Dias antes tínhamos almoçado com Carlos Alberto Dória, gastrónomo, crítico, estudioso, pensador e autor, juntamente com Atala, do livro Com Unhas, Dentes & Cuca – Prática Culinária e Papo-Cabeça ao Alcance de Todos (editora Senac). E o que diz Dória? “Este movimento de renovação gastronómica é pendular. Tem um momento de técnica e um momento de ingrediente. Desde que fechou o elBulli [o restaurante de Adrià], vejo uma orfandade internacional de chefs. Mas por que fechou? Porque cumpriu o seu papel. Qualquer chef sabe hoje as técnicas que o Ferran usava. Ninguém se diferencia mais por fazer espuma, isso morreu. Então, a competição desloca-se para outro terreno e, depois do fenómeno Noma, desloca-se para os ingredientes. Então você assiste a essa peregrinação pelo Brasil de chefs como o Alex Atala, a Ana Luísa Trajano [do restaurante Brasil a Gosto, também em São Paulo] e tantos outros, em busca de coisas diferentes. Acho que é uma coisa que terá o seu momento e passará. Não é possível você sustentar uma culinária à base de uma descoberta por dia.”

Concorda, Atala? “Discordo, discordo, discordo. Historicamente, a cozinha é evolutiva, nunca de maneira ordenada, mas sempre evolutiva. A gastronomia nunca descartou nenhuma das fases por que passou, nem de Carême [França, 1783-1833], nem de Escoffier [França, 1846-1935], nem de Point [França, 1897-1955], nem de Bocuse [França, 1926], nem de toda a nouvelle cuisine, e seguirá não descartando nada nem ninguém. Pelo contrário, nós vivemos hoje um momento mundial onde a gastronomia é cada vez mais generosa, menos competitiva e mais aberta a receber informações da tecnologia ou da antropologia, das ciências exactas e das ciências humanas, e isso faz com que a gente viva uma cozinha de paz, de alegria, de sublimação, de prazer. As pessoas tentam categorizar muito. É impossível.”

Mas este é, pelo menos no Brasil, um momento em que os ingredientes se sobrepõem às técnicas. “Porque nós no Brasil temos essa riqueza. Como cada time de futebol, cada literatura, cada filosofia, nas suas regiões ganha os contornos dessa região. Hoje, na América do Sul, a gente tem uma efervescência de novos chefs trabalhando, todos com muito boa técnica, mas todos muito debruçados no ingrediente, que é a nossa maior riqueza. Diferente talvez da Europa, onde os ingredientes já são todos conhecidos e a técnica é o caminho evolutivo.”

A diferença é grande. “Se pensarmos nesta ideia de ir ao mato e encontrar os seus próprios produtos, a Europa hoje conta, entre algas, verduras, legumes, flores, cogumelos, umas 400 espécies selvagens diferentes. Num primeiro levantamento que fizemos no Brasil, muito raso, sem grande estudo, achámos entre oito e dez mil variedades com grande potencial. Só de cogumelos talvez a gente consiga mais de mil. E estamos falando de um terreno que foi muito pouco estudado ainda, de uma área que tem muitas possibilidades. Os sul-americanos encontram hoje a sua melhor forma de expressão através do ingrediente, sim, mas acho que essa é uma solução para a América do Sul, não para o mundo.”

Carlos Alberto Dória vê algumas dificuldades nesta estratégia. O que é hoje um ingrediente “brasileiro”? “Os ingredientes têm uma história, são descobertos, são esquecidos, redescobertos, transformados. Muitos chefs acham que a mandioca brava, venenosa, é um produto natural. Não é. É um produto desenvolvido pelos índios como defensivo agrícola contra os predadores. Você pega os feijões, por exemplo. São brasileiros? Tinha brasileiros, mas há os que vieram de África, da Ásia. Os portugueses fizeram uma grande transacção internacional de ingredientes e as pessoas hoje consideram-nos afectivamente. A manga, que muita gente considera brasileira, é indiana.”

É por isso, defende o especialista, que a ideia de uma culinária nacional, indígena, “está fora do seu tempo, porque não existe mais nação”. “Claro que há uma tentativa de fazer uma cozinha étnica, mas duvido desse projecto. O [chef peruano] Gaston Acúrio, há dois ou três anos na feira San Sebastian Gastronomika, disse que ia fazer uma apresentação mas não trazia nada do Peru. Disse: ‘Os meus colegas vieram cheios de produtos, e eu do Peru trouxe o ceviche, mas o ceviche onde está? Não o trouxe na mala, ele está na minha cabeça. Vou pegar nos vossos peixes e fazer o ceviche’.”

Tucupi e arroz com feijão

No Brasil, a grande força tem sido a Amazónia — e agora, cada vez mais, o cerrado, que tem uma diversidade de produtos provavelmente mais do que a Amazónia. Mas há, segundo Dória, uma questão de “legitimidade” e de “legibilidade” desta nova cozinha brasileira. Para explicar esta ideia, o melhor é recorrer a um texto do próprio: “Legitimidade se refere a algo ‘brasileiro’, a exemplo o tucupi [líquido retirado da mandioca, usado em vários pratos da culinária amazónica], mesmo para quem jamais o tenha experimentado — o que é a maioria da população brasileira. Afinal, é nativo e suficientemente enraizado em parcela do nosso vasto território. Legibilidade diz respeito a algo que, nativo ou exótico aclimatado, é reconhecido claramente como ‘brasileiro’, a exemplo do arroz com feijão que todo o mundo conhece.”

No mesmo texto, intitulado Legitimidade e Legibilidade da Gastronomia Brasileira, no qual analisa estes dois caminhos seguidos por diferentes chefs (o da comida mais popular e o da mais exótica), Dória refere-se a Atala. “Alex Atala, há anos, tem feito um esforço hercúleo para se apropriar da ‘amazonidade’ em nossa culinária de ponta. Para tanto, lança mão do tucupi, jambu [uma erva que provoca uma dormência na boca], priprioca [erva parente do junco e do papiro], formigas. Sabemos identificar o quanto de simbólico há nisso tudo, mas só o tucupi é ‘popular’ na Amazónia, a priprioca nem sequer é comestível para os caboclos. A formiga — reminiscência das culinárias indígenas de norte a sul do país — hoje ocupa o papel de metonímia da culinária amazónica.”

Quando falamos de exotismo, estamos a falar de um nicho, explica Dória à Revista 2. “Se perguntar para as pessoas aqui em São Paulo, ninguém conhece tucupi — é um ingrediente que não tem uma legibilidade fácil. Só o pessoal de uma camada gourmet aceita experimentar essas coisas mais estranhas.” E mesmo assim as resistências são grandes, tanto à estranheza como à recuperação de comidas mais populares. Dória conta que Mara Sales, que recentemente transferiu o seu restaurante Tordesilhas, do outro lado da Avenida Paulista para a selecta zona dos Jardins (onde fica a maioria dos restaurantes mais in de São Paulo), se queixava que alguns dos clientes nesta nova localização achavam que “farinha de mandioca é comida de pobre”. “E ela tinha mudado apenas quatro ou cinco quadras [quarteirões]. Estamos a falar de um pedaço de cidade mínimo, mas o facto é que a maioria das pessoas não atravessa a Paulista.”

Falemos então de formigas.

Para Atala, elas são muito mais do que a apropriação simbólica da culinária indígena. Elas são “deliciosas”. E são uma forma de nos pôr a pensar em questões de sustentabilidade e do futuro da alimentação. “A reacção das pessoas é de fascínio”, conta o chef. “Eu só sirvo uma formiga, a saúva, e ela é realmente uma delícia. Vem uma por prato, com abacaxi gelado, a pessoa come e é uma explosão de sabor. Acho que quando se encontra um insecto que seja realmente delicioso é justo usá-lo, mas não é por isso que vou pegar em todos os insectos e colocá-los no meu restaurante.”

Quanto aos preconceitos que possam existir, tem argumentos para os derrubar. “Hoje o mundo tem fazendas dedicadas à produção de insectos, que são vendidos para fazer rações para animais. Porque é que animal pode comer e a gente não pode? Porque é que é aceite como ração e não como alimentação, quando alguns insectos têm dez vezes mais proteína que um pedaço de carne? O Food and Drug Administration norte-americana aceita 86 partes por milhão de insectos na manteiga de amendoim e 74 partes por milhão no chocolate. Nós comemos insectos.”

Percebe-se pela rapidez e entusiasmo com que fala que este é um argumento que já repetiu muitas vezes. “Mas vamos imaginar que comer insectos é uma porcaria. A gente não come merda, pois não? A gente não come vómito, pois não? O que é o mel? É vómito de abelha. Existe um exercício de abrir as nossas cabeças para olhar essas possibilidades de outra maneira. Nós comemos mel, e mel é secreção de insecto. Devia ser nojento para a gente, mas é delicioso. Existem possibilidades, sim, e elas não podem ser descartadas. Principalmente quando a gente fala do teor de proteína e do número de vidas que podem ser salvas por essa possibilidade.” Quanto ao aspecto dos insectos, “sim, é feio, tão feio quanto o do camarão ou do caranguejo”.

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Estávamos a falar de formigas, e agora estamos a falar de formas de ajudar o mundo. Porque é isso que se espera também hoje de um chef que uma revista como a Time colocou entre as 100 figuras mais influentes do ano passado. E Atala tem essa preocupação. O uso que faz dos ingredientes é também uma forma de ajudar produtores e populações. “Usando estes ingredientes hoje no Brasil e na América do Sul, e principalmente se os conseguirmos exportar para a Europa — porque há grandes produtos que já saíram das Américas —, podemos ajudar as pessoas, a cultura, pode existir um benefício social, económico, ambiental e cultural.”

"Ninguém acerta à primeira"

Mas há também o reverso da medalha. Como aconteceu com a quinoa peruana, o sucesso de um produto no mundo pode significar que o seu preço sobe e que as populações que o usavam como base da sua alimentação deixam de ter acesso a ele. “É facto. A alimentação é uma actividade vital, a maior rede social do mundo não é o Facebook, é a cozinha, e é natural que ela tenha defeitos. Mas a gente não pode fazer dos defeitos a razão da nossa vida. Sempre vai haver problemas. A Internet tem problemas. Vamos tirar a Internet das nossas vidas? Ninguém acerta à primeira. Eu nunca fiz uma receita e ela ficou pronta na primeira vez, nunca escrevi uma carta e ela ficou pronta logo. A gente vai construindo através dos erros, relendo, aprendendo.”

Reconhece os problemas. “Eu nunca discordaria que o nosso modelo de mercado é escolher uma quinoa, jogar para o mundo, e tudo o resto que ficou para trás, esquece. Mas acredito que uma nova filosofia de cozinha tem de ser imposta, que é a do extrair e devolver. Eu não posso ir só à Amazónia e tirar da Amazónia, isso foi feito a vida inteira. Está na hora de devolver para a Amazónia, e às vezes devolver não é só dar dinheiro. Às vezes, se você der dinheiro, estará só aumentando os problemas sociais. Você precisa de devolver tendo em atenção as necessidades de cada comunidade, tribo ou região.”

Mas acredita no futuro. “O mercado é um problema mas não podemos fazer dele o nosso vilão nem o nosso deus. Se o mercado fosse a maior força na minha vida, eu nunca faria cozinha brasileira. Comecei a fazer cozinha brasileira e as pessoas chamavam-me louco. Hoje o Brasil inteiro orgulha-se disso e sinto-me feliz. Então vale a pena. [Com os projectos sociais, de trabalho com produtores] a gente não mudou a vida de uma família ou de dez famílias, a gente mudou a vida de uma região inteira. Devolveu a alegria, deu um horizonte a quem já achava que não ia ter mais. Eu acredito que a cozinha bem exercida é uma ferramenta social muito importante e que a gente vai aprender a lidar com isso.”

Estamos ainda a aprender, e a geração seguinte — essa na qual Atala deposita a esperança de que continuará a trabalhar para manter a cozinha brasileira viva — vai ser melhor que a actual. “Sou cozinheiro há 27 anos e quando comecei a ser cozinheiro já não era só isso, já era preciso ter competências administrativas, saber gerir uma cozinha. Nesses anos, uma série de outras coisas aconteceram: começámos a dar aulas, a escrever livros, a falar na televisão, a usar o computador. Tudo isso era novo para a gente. Assim como a nova geração aprendeu a usar o computador melhor que nós, vai também aprender a usar os ingredientes melhor do que nós, e a geração a seguir melhor ainda. Esta é uma evolução que a cozinha pode ter: mais consciência, mais sabedoria, uma acção um pouco mais profunda no acto de não somente servir comida.”

A influência portuguesa

Estamos novamente a falar de um tempo longo, o tal tempo que não é o da Internet e o da pressa dos chefs que querem a fama de um dia para o outro. Mas há um tempo muito longo — mais de 500 anos — de que ainda não falámos. É altura de perguntar a Atala onde fica a influência portuguesa em toda esta história da renovação culinária brasileira.

Afinal, entre os ingredientes que os portugueses trouxeram e levaram de um lado para o outro do mundo, incluindo o Brasil, estão alguns dos que hoje enchem de orgulho os brasileiros. E entre as técnicas culinárias (quando os conquistadores chegaram, os índios usavam um número reduzido de técnicas) estão muitas introduzidas pelos portugueses. Nesta busca de uma Amazónia idealizada — o “discurso de sedução” que hoje os chefs têm de ter, segundo Dória — onde fica Portugal?

Ouvimos primeiro o escritor. “Num certo sentido, somos uma continuidade da cozinha portuguesa. A cebola, o alho, o refogado, são heranças portuguesas. No Nordeste, os embutidos [enchidos] são muito próximos dos dos portugueses e quando os chefs trabalham certo repertório aproximam-se mais de Portugal. Mas o diálogo com Portugal faz-se mais com a cozinha popular brasileira do que numa linguagem mais moderna. A ênfase é mais na tradição portuguesa do que na inovação portuguesa.”

Sim, mas e o passado, a história? De certa forma é injusto fazer esta pergunta a Atala, que tem continuamente reconhecido essa influência portuguesa (faz, inclusivamente, um “à Brás”, usando palmito). Mas o facto é que, para o mundo, o que fica é a palavra Amazónia. “Concordo em parte que o Brasil talvez não reconheça a influência portuguesa nas nossas cozinhas, sobretudo em algumas cozinhas regionais. Fazem-se doces em calda em Minas Gerais, está na cara que isso é uma influência portuguesa.”

Mas, quanto ao caminho que Portugal deve seguir se quiser ver a sua gastronomia reconhecida internacionalmente, defende que “os discursos devem ser amplos”. “Talvez nos últimos anos a Espanha tenha ofuscado muita coisa de Portugal. Mas, por exemplo, o ceviche não é peruano, vai do Chile ao México. Vamos brigar com o Peru, ou vamos agradecer ao Peru por ter levado o ceviche para o mundo porque todos nós seremos reconhecidos amanhã? Vamos brigar com a Espanha porque ela roubou o brilho a alguns ingredientes portugueses, ou vamos imaginar que esses ingredientes reconhecidos geram mercado para Portugal? Vamos ficar com raiva da Amazónia porque a Amazónia brilhou, ou vamos querer aproveitar isso, esse brilho que a Amazónia tem, e ajudar o cerrado brasileiro, o pantanal, o Sul?”

Que “é preciso dar brilho à cultura gastronómica portuguesa”, é uma ideia com que concorda. “Estou falando dos peixes, dos vinhos, de todo o universo que vocês têm. Portugal tem chefs excepcionais, sou grande fã, desde chefs mais jovens como José Avillez, até outros da minha geração, como Vítor Sobral, você vai encontrar uma diversidade de qualidade de cozinha incrível em Portugal. Ingredientes, eu não preciso nem falar. Acho que já é indubitável que um dos melhores peixes do mundo, se não o melhor, está na costa portuguesa. Os vinhos também, já ninguém mais duvida. É só um não se afligir com o brilho dos outros e estar seguro de que a qualidade do produto vai triunfar.”

Deixa um conselho: ser genuíno. “Se Portugal tentar fazer igual à Espanha, não consegue. Mas eu sou muito crente nessa cultura gastronómica e acho que vai vir o momento do reconhecimento. Tem de existir. Até porque a imprensa é curiosa, precisa de novidades. Se num momento mais ninguém quis ouvir falar da França e quis ouvir falar de Espanha, e se num momento cansou um bocadinho da Espanha e quis ouvir a Dinamarca, Portugal está na fila, não sei se em primeiro, segundo ou último, mas está na fila.”

Ele sabe, talvez melhor que ninguém, o que é a angústia de buscar o reconhecimento. Tal como sabe o que é a angústia de estar no topo e, no meio da constante pressão mediática, perguntar-se para onde seguir caminho. “Isso cria todo o tipo de angústia”, reconhece, sorrindo. “O Joel Robuchon chegou aos 50 anos e renunciou. Disse que não fazia mais comida, mas voltou, e mais admirável ainda. O Ferran Adrià também. Eu desconheço um chef que esteja hoje no auge da carreira e não flirte com essa ideia. Qual a maior diferença entre Pelé e Maradona? Os dois eram bons jogadores. O Pelé parou de jogar no melhor momento, o Maradona, o mundo assistiu à decadência dele. Então o Pelé parece melhor. Todos os chefs que eu conheço da minha geração… entre o fazer e o pensar, existe um mundo, mas todos nós flirtamos com essa ideia um dia. E isso é fruto de a gente achar que não vai ser capaz de manter o interesse dos outros. Todos nós.”

Mas o sofrimento faz parte da festa. “É duro, é duro. Brasil e Portugal nunca vão ser os melhores do mundo, mas temos de ter consciência de que nunca fomos e nunca seremos os piores. Vamos sofrer sempre, ou por razões económicas, ou porque Brasil é muito grande, ou porque o vizinho pegou… a gente vai sempre sofrer um pouquinho, mas acho que não é um trauma. Dá para ser feliz.”     

 

Série especial do PÚBLICO

Edição especial Brasil no dia 5 de Março com Adriana Calcanhotto como directora por um dia