Arguido no processo Remédio Santo diz que burla servia para atingir objectivos do laboratório
Ex-delegado de informação médica Rui Peixoto, o primeiro arguido a ser ouvido nesta quarta-feira no julgamento do processo Remédio Santo, que envolve burlas ao Serviço Nacional de Saúde no valor de quatro milhões de euros, confessou os crimes de falsificação de documentos e de burla qualificada, mas recusou a acusação de associação criminosa.
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Entre os 18 envolvidos estão seis médicos, dois farmacêuticos, sete delegados de informação médica, uma esteticista (ex-delegada de acção médica), um empresário brasileiro e um comerciante de pão. O médico Luiz Basile é o único arguido em prisão preventiva, nove outros elementos estão com pulseira electrónica e os restantes encontram-se em liberdade. Só a Luiz Basile são imputadas receitas no valor de 1,7 milhões de euros.
O ex-delegado admitiu que angariava receitas directamente junto de médicos ou através de outros delegados com o objectivo de aumentar as vendas e cumprir as metas impostas pelo laboratório onde trabalhava, mas negou sempre que quantificasse os pedidos ou que tivesse um grupo organizado, dizendo que havia apenas uma lista com os nomes dos fármacos que interessavam e que actuava de acordo com as "oportunidades". “Para se atingir os objectivos era necessário especular as vendas. Era uma prática comum e corrente nos laboratórios. Os que não compactuavam dificilmente conseguiam atingir os objectivos e deparavam-se com a realidade da perda de emprego”, justificou, falando numa “prática transversal a toda a indústria farmacêutica” e que “não é nenhum tabu”.
Apesar de referir que existiam orientações por email, disse que as chefias máximas desconheceriam o esquema que se espalhou em 2009 por os medicamentos genéricos estarem a ganhar terreno aos de marca. Rui Peixoto também admitiu que entregava receitas a outros arguidos para que eles as aviassem, mas assegurou que não houve um esquema pensado e que “este caso não tem a dimensão que lhe estamos a dar”, até porque foi “iludido” pela “forma tão light e tão simples de fazer” as coisas.
No esquema entravam apenas medicamentos com altas comparticipações por parte do Serviço Nacional de Saúde, sempre superiores a 69%. Assim, quem fosse à farmácia levantar as receitas pagava apenas o remanescente. Os medicamentos ficavam, na maior parte das situações, em casa dos arguidos que, mais tarde, deram seguimento ao esquema escoando os fármacos através de contactos com dois farmacêuticos que ou os reintroduziam no mercado nacional ou enviavam para outros países, obtendo aqui outro rendimento além dos prémios de vendas. O alerta para o esquema foi dado à Associação Nacional de Farmácias por um estabelecimento que estranhou o elevado número de receitas aviado pelo arguido e comerciante de pão Carlos Anjos.
No caso de Rui Peixoto a maior parte dos medicamentos eram encaminhados para o farmacêutico Daniel Ramos. Eram ainda feitas entregas a João Carlos Alexandre. Foi nas conversas interceptadas entre Peixoto e Alexandre que surgem as expressões “papo-secos” e “pães” para combinar entregas de caixas de medicamentos. A juíza que preside ao colectivo, Maria Joana Grácio, insistiu que as chamadas mostram que as necessidades de medicamentos eram transmitidas e quantificadas, mas o ex-delegado recusou a ideia.
Questionado pelo colectivo no sentido de saber quanto ganhou com o esquema, Rui Peixoto falou em 100 a 120 mil euros, sendo que na altura do facto anualmente recebia entre de 80 a 90 mil euros por ano. O colectivo instigou-o a explicar os motivos pelos quais entrou neste esquema quando ganhava acima da média, ao que o arguido respondeu que “foi por pura estupidez” e “para ganhar uns dinheirinhos a mais” mas que está “arrependido”.
Acordo sobre pena falhou
O processo Remédio Santo começou a ser julgado na semana passada no Tribunal de Monsanto, mas foi suspenso na sequência de uma proposta da defesa que quis chegar a um acordo de sentença de pena com o Ministério Público. O colectivo deu uma semana para que o procurador e os advogados dos arguidos chegassem a um acordo que, a ser viabilizado, seria apenas a terceira vez que era utilizado no ordenamento jurídico português. Em troca da confissão dos crimes, o Ministério Público e a defesa fariam um acordo em relação às indemnizações e às penas para cada um dos 18 arguidos. Porém, a solução não recebeu luz verde da Procuradoria-Geral da República e o julgamento retomou os trâmites normais.
A procuradora Joana Marques Vidal emitiu na sexta-feira uma directiva onde proibiu os procuradores de realizarem estes acordos, um dia depois de a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter já divulgado uma nota onde dizia que “o simbolismo do caso, as finalidades de política criminal envolvidas na sujeição dos arguidos a julgamento, bem assim como a circunstância de haver posições divergentes no seio desta magistratura quanto à questão dos acordos sobre a sentença” determinam que esse não deve ser o caminho”.
Em declarações aos jornalistas, o advogado Artur Marques, que representa o farmacêutico Daniel Ramos, considerou a recusa do acordo um "erro" e uma "decisão muito precipitada", lamentando que se esteja a querer "fazer deste caso um caso exemplar", fazendo, com isso, que se perca a "celeridade que o acordo permitia". Já o advogado João Nabais, que representa o médico Emanuel Manuel, disse que a decisão é “compreensível” e que revela que “no seu [da PGR] interior também há divergências”, mas salientou que “o ideal é que a justiça não seja exemplar”.
Além deste processo, há outros casos que estão a ser investigados por burlas ao SNS que rondarão os 230 milhões de euros.