No Dia Internacional da Língua Materna: o sustentável peso da língua, casa comum
Quem passar pelas bandas da Cidade Universitária, por exemplo para se dirigir à zona das piscinas ou à Faculdade de Ciências contornando pelo poente a Aula Magna e a Faculdade de Letras, deparará com um curioso letreiro adicionado ao conhecido sinal de trânsito proibido: “EXETO UNIVERSIDADE.” Que quererá dizer esta mensagem e a quem se destina ela? Talvez a estudantes inseridos no programa Erasmus ou a professores visitantes, que comunicam nas aulas na língua de Shakespeare e que agradecerão que lhes indiquem uma saída do labiríntico campus ao fim de um dia de aulas? Mesmo com uma letra trocada, em princípio entende-se.
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Quem passar pelas bandas da Cidade Universitária, por exemplo para se dirigir à zona das piscinas ou à Faculdade de Ciências contornando pelo poente a Aula Magna e a Faculdade de Letras, deparará com um curioso letreiro adicionado ao conhecido sinal de trânsito proibido: “EXETO UNIVERSIDADE.” Que quererá dizer esta mensagem e a quem se destina ela? Talvez a estudantes inseridos no programa Erasmus ou a professores visitantes, que comunicam nas aulas na língua de Shakespeare e que agradecerão que lhes indiquem uma saída do labiríntico campus ao fim de um dia de aulas? Mesmo com uma letra trocada, em princípio entende-se.
Ou haverá aqui outras razões e significações que toda a razoabilidade desconhece? Coloquemos algumas hipóteses absurdas. Por exemplo: talvez a confecção do letreiro tenha sido entregue a alguém que se excedeu na aplicação do programa Lince, austero depurador das facultatividades previstas no Acordo Ortográfico de 1990, ou, conspirativamente, a alguém empenhado em mostrar a absurdidade de um des-acordo que nunca cessará de dividir a população falante, escrevente e pensante, a menos que seja suspenso por decisão sensata, pragmática e soberana? Ou, ainda e algo simploriamente, terá porventura alguém mais lincesco que o Lince e, em dúvida quanto à pronúncia correcta da palavra EXCEPTO, resolvido cortar empiricamente o C e o P, por assim dizer deitando fora a criança com a água do banho?
Esta foto nada mais faz do que documentar a premente necessidade de dizer: alto e para o baile. Sim senhores, para e não pára. Entremos no baile porque se o quisermos parar até os acordistas serão levados a recorrer ao acento que o Acordo Ortográfico (AO) quer eliminar. Entremos no baile mandado das falácias dos defensores do AO, que têm vindo a desmoronar-se uma por uma mas que persistem em manter uma língua nada-morta e desacreditada no contexto das línguas-irmãs. Não só no âmbito da lusofonia, ela (o “acordês) vê-se ultrapassada pelo brasileiro de circulação ligeira e sensual, que goza de um maior número de falantes.
Entremos no baile dessa língua que se queria uniformizada; e que vemos? Uma pista vazia, comprovadamente abandonada pelos brasileiros desde a audiência dos linguistas Ernâni Pimentel e Pasquale Cipro Neto na AR em 27.11.2013. Uma pista onde nunca as outras comunidades lusófonas, africanas, asiáticas e oceânicas puseram os pés. Uma pista onde alguns acordistas desesperados tentam acertar um passo manco, tropeçando nos buracos deixados pelas letras que deixam a descoberto, como num espaço sem letreiros nem bússolas, a falta de orientação que é dada por séculos de história e geografia. E é assim que nos damos conta, nesse descampado linguístico, do absurdo de um “porquessinismo” que manda escrever “Egito” e egípcios, “exceto” e mentecapto, “caráter” e característica. Facultatividades? O contexto decide? Ah mas não era suposto que o AO acabasse com os alegados elitismos das pessoas que pretendem simplesmente transmitir toda a herança linguística greco-latina, dos docentes que encaram de peito firme a complexidade de todas as línguas porque se enquadram numa família etimológica? Aos alegados desfavorecidos é então servido um grafolecto que faz cada aluno pensar duas vezes como pronuncia para escrever, se não tem um computador à mão – e que faz aos aprendentes de uma língua estrangeira dar erros atrás de erros, como “diretion”, “concetion”, “excetion”? A leveza do “acordês”, com que somos confrontados todos os dias, tornou-se num estendal de horrores que nos entram pela casa dentro. Que fazer, se quiseremos manter as boas práticas comunicacionais que estabelecem uma ponte harmoniosa com as outras línguas europeias, que têm como um livre-trânsito na casa comum greco-latina?
No passado mês de Setembro, a Assembleia Geral do PEN Internacional aprovou por unanimidade, em Reiquejavique, uma segunda resolução sobre a Língua Portuguesa, apresentada pelo Comité de Tradução e Direitos Linguísticos e apelando às autoridades competentes no sentido de (e passo a citar)
— Tomarem medidas imediatas para permitir a reposição do Português Europeu nos documentos e trâmites oficiais e nas escolas. Esta herança cultural comum deveria ser respeitada de acordo com a Constituição Portuguesa, com inteira liberdade face a qualquer interferência política;
— Terem em conta, ao longo deste processo, as opiniões de especialistas da língua, bem como as opções de escrita de escritores e tradutores portugueses, e garantirem que os editores renunciam a impor condições que são abusivas e restritivas face à criação literária.
O resultado da votação pode ser considerado uma vitória de Pirro. Pela segunda vez (face ao ano anterior), colegas anglófonos, francófonos e hispanófonos vieram perguntar como tinham os escritores e a população em geral permitido que tais mutilações da língua não só tivessem ocorrido mas que se mantivessem para além de um tempo limitado de experimentação e sem obrigatoriedade. Ainda tenho presentes as palavras da colega do centro belga francófono: “J’aimerais signer avec les deux mains!”
Fica a pergunta: até quando permitiremos que tal violência sobre o uso da nossa língua se mantenha, rotulando com uma inadmissível menoridade mental os jovens que teriam alegadamente a lucrar com a “simplificação” da grafia e a quem é roubada a pertença à família linguística geográfica e histórica? Até quando seremos confrontados com “exetos” – como convites a abandonar a nossa casa comum?
Professora da FLUL e presidente do PEN Clube Português