Como o almofariz dos Rothschild veio parar a Lisboa

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O almofariz foi roubado pelos nazis durante a guerra e esteve guardada na mina de Altaussee, Áustria – um dos cenários do filme ENRIC VIVES-RUBIO

Logo que, no início de 1999, surgiram nos jornais as primeiras notícias de que parte da colecção da família Rothschild que tinha sido recuperada depois da II Guerra Mundial ia ser colocada em leilão, João Neto, director do Museu da Farmácia de Lisboa, ficou atento. “Fiquei logo a pensar o que é que poderia existir na área da farmácia ou da saúde”, conta. “Foi então que apareceu o catálogo com duas peças magníficas, um microscópio francês, que acabou por ser comprado pelo Governo francês, e um almofariz. Tentei comprar ambos, mas perante o Governo francês não tinha qualquer hipótese. Acabei por conseguir o almofariz.”

A peça de que fala está, no momento em que conversamos, em exposição no hall do edifício do Museu da Farmácia, dentro de uma vitrina. Por trás dela, um pedaço de caixa feita de tábuas de madeira com uma águia nazi, e um cartaz do filme The Monuments Men – Caçadores de Tesouros. Na estreia do filme foi exposta brevemente na entrada dos cinemas do El Corte Inglês.

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Logo que, no início de 1999, surgiram nos jornais as primeiras notícias de que parte da colecção da família Rothschild que tinha sido recuperada depois da II Guerra Mundial ia ser colocada em leilão, João Neto, director do Museu da Farmácia de Lisboa, ficou atento. “Fiquei logo a pensar o que é que poderia existir na área da farmácia ou da saúde”, conta. “Foi então que apareceu o catálogo com duas peças magníficas, um microscópio francês, que acabou por ser comprado pelo Governo francês, e um almofariz. Tentei comprar ambos, mas perante o Governo francês não tinha qualquer hipótese. Acabei por conseguir o almofariz.”

A peça de que fala está, no momento em que conversamos, em exposição no hall do edifício do Museu da Farmácia, dentro de uma vitrina. Por trás dela, um pedaço de caixa feita de tábuas de madeira com uma águia nazi, e um cartaz do filme The Monuments Men – Caçadores de Tesouros. Na estreia do filme foi exposta brevemente na entrada dos cinemas do El Corte Inglês.

O que tem o almofariz, em ágata e prata dourada, datado do século XVII, período do Sacro Império Romano-Germânico, a ver com o filme realizado por George Clooney? Tudo, afirma João Neto. A peça foi roubada pelos nazis durante a guerra e esteve guardada na mina de Altaussee, na Áustria – mina que é um dos cenários principais do filme, e da qual uma equipa de historiadores e figuras ligadas à arte, os Monuments Men, resgatam milhares de peças, entre pinturas, esculturas e outras, pertencentes aos grandes museus e colecções privadas de toda a Europa.

Os tesouros artísticos guardados pelos nazis em Altaussee e em várias outras minas destinavam-se a um grandioso museu que Hitler planeava construir em Linz, o Führermuseum, do qual ele próprio seria director. As peças podiam ter sido destruídas por ordem de algum chefe militar alemão, como aconteceu noutras grutas, mas as que estavam em Altaussee escaparam. Entre elas, o almofariz, que haveria de vir parar a Lisboa pela mão de João Neto.

“Para o Museu da Farmácia era importante, porque é um símbolo da nossa profissão. A ágata esteve sempre ligada ao desenvolvimento da química, é um material muito usado pelos boticários”, explica. “É feita no período do Sacro Império Romano Germânico e não tínhamos no museu nada daquela zona da Europa e daquele período. Do ponto de vista histórico-geográfico fazia todo o sentido. E além disso era uma peça ligada à história da II Guerra Mundial”.

A Europa a saque

João Neto já conhecia, em parte, esta história. “A obra central que conta o que aconteceu é de 1995 e chama-se The Rape of Europa, de Lynn H. Nicholas. aí percebe-se que todo este processo de selecção das peças [por parte dos nazis] não foi uma coisa improvisada, mas que houve um trabalho meticuloso e sistemático porque existia esse grande objectivo da construção de um museu colossal em Linz.” Projectado por Albert Speer, este incluía ainda um grande teatro, uma ópera e um Hotel Adolf Hitler.

“Hitler fez uma viagem a Florença logo em 1935 ou 1936 e é aí que decide que tem que criar um grande museu. Aliás, um dos grandes actos públicos dele logo que assume o poder, em 33, é a criação de um grande museu de arte em Munique. É o grande paradoxo. Claro que ele só queria preservar o que entendia importante, tinha uma determinada visão, mas o que é facto é que tinha uma política museológica que para ele era muito importante”, sublinha. “Hitler queria que o mundo ficasse com um legado que era o museu dele, a colecção que ele criou”.

Colecção criada inicialmente através de métodos mais ou menos legais. “Logo em 33, Hitler e os seus conselheiros começaram a estabelecer uma rede muito grande com negociadores de arte para que estes indicassem coleccionadores. Havia compras, havia certamente pressão para as pessoas venderem”. A partir de certa altura, com a guerra a avançar, as coisas mudaram e “começou o saque total”.

Ao roubo de obras de arte de museus e coleccionadores privados, somou-se a tentativa de destruição daquilo que Hitler via como “arte degenerada” – artistas como Max Ernst, Paul Klee, Pablo Picasso. Muitas acabaram por ser salvas da destruição graças a algum pragmatismo da parte dos alemães, refere o director do museu. “[Os nazis] levavam tudo, tudo. As pessoas ficavam só com as paredes. Mas por detrás deste saque havia um negócio de arte que funcionava muito bem para a estrutura nazi. Em 39, por exemplo acontece um grande leilão com obras de Munch, Picasso, Van Gogh.”

Muitos dos grandes coleccionadores de arte europeus eram judeus. Apercebendo-se do que estava a acontecer, vários tentam pôr as suas colecções a salvo. “Alguns negociadores de arte judeus conseguem enviar as peças para fora da Alemanha, e Lisboa é uma das áreas de envio. Muitas obras passam por aqui encaixotadas. Os ingleses sabiam o que estava a acontecer, sabiam dos caixotes que estavam a ser enviados para o Novo Mundo via Lisboa.”

Entre as grandes colecções privadas estavam, claro, as da família Rothschild, tanto do ramo francês como do austríaco. Quando a Alemanha nazi anexou a Áustria, em Março de 1938, as tropas de Hitler dirigiram-se imediatamente ao fabuloso Palácio Rothschild de Viena. “Um dos irmãos, Alphonse, conseguiu fugir, mas o outro, Louis não. No livro The Rape of Europa, Lynn H. Nicholas conta que quando o foram prender ele perguntou ‘desculpem, têm hora marcada?’, os soldados disseram que não e ele disse-lhes para virem mais tarde. Eles foram-se embora e à hora marcada voltaram para o prender”.

O barão Rothschild beneficiou de condições especiais durante a sua detenção – ficou alojado num quarto do Hotel Metropole de Viena, que foi transformado no quartel-general da Gestapo, e terá pago uma generosa quantia para conseguir a sua libertação. Mas isso não impediu que os seus bens, incluindo a sua fabulosa colecção de arte, fossem confiscados pelos nazis, nem que o seu palácio fosse destruído durante a guerra.

Mesmo após o final do conflito – e apesar de os Monuments Men terem recuperado grande parte das obras escondidas pelos nazis – a família Rothschild continuou a ver-se privada das suas obras, agora por decisão do Governo austríaco. João Neto conta que “os aliados recuperaram as peças, organizaram centros de recolha, mas sempre tiveram o cuidado de dizer que a questão da devolução não era com eles, mas com os respectivos países”. Seguiu-se uma longa batalha dos Rothschild com o Estado austríaco pela recuperação das peças, o que só viria a acontecer nos anos 90.

Em 98, a baronesa Bettina der Rothschild, então com 73 anos, sobrinha de Louis, contou ao The New York Times que tinha visitado museus austríacos e encontrara em exposição peças que tinham pertencido à sua família, sem sequer uma referência a esse facto. A política oficial mudou precisamente nesse ano de 98, e os Rothschild recuperaram então muito do que tinham perdido, acabando depois por organizar o leilão cuja notícia chamou a atenção de João Neto.

Esta é também a história do almofariz do Museu da Farmácia. O filme de Clooney mostra o momento em que a pequena equipa de homens que arriscou ir até à linha da frente para tentar recuperar obras insubstituíveis chega à mina de Altaussee e depara com as entradas bloqueadas devido a explosões. “Todo o saque que aconteceu na Europa tinha à frente, do lado dos alemães, pessoas ligadas à arte e à história. E muito dificilmente essas pessoas iriam queimar e destruir aqueles objectos, mesmo que tivessem ordens para isso. Foi o que aconteceu naquela mina. Estamos a falar de alemães, historiadores de arte, que com a ajuda dos mineiros, conseguiram tirar as cargas explosivas que estavam próximas das obras de arte e levá-las para as entradas da mina para as bloquear. Foram também alemães que salvaram estas peças.”

Para João Neto – que quando era criança foi “alimentado com histórias reais da II Guerra Mundial” contadas por antigos soldados que viviam na vila britânica para onde a sua irmã foi depois de casar com um inglês – a peça comprada no leilão dos Rothschild é muito mais do que um símbolo da história da Farmácia. “É um símbolo da democracia. Aqueles homens que recuperaram a arte roubada pelos nazis queriam que estas peças fossem expostas ao público. O que eles fizeram foi pela democracia”. O almofariz é, afinal, um símbolo dessa Europa violada e renascida.