Acções violentas de "justiceiros" e milícias populares multiplicam-se no Brasil
Especialistas no fenómeno assinalam aumento das ocorrências. Opinião pública dividida entre o repúdio e o elogio.
“A sociedade civil está ficando progressivamente descontrolada”, observou o sociólogo José de Souza Martins, em declarações ao jornal Folha de São Paulo. O especialista em fenómenos de justiça popular, que documenta a sucessão de casos há cerca de duas décadas, detectou uma “ligeira intensificação de ocorrências” de uma média de quatro por semana para uma por dia, e uma tendência de inflexão da violência, outrora concentrada nos grandes centros urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro e Baía, para o interior do país.
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“A sociedade civil está ficando progressivamente descontrolada”, observou o sociólogo José de Souza Martins, em declarações ao jornal Folha de São Paulo. O especialista em fenómenos de justiça popular, que documenta a sucessão de casos há cerca de duas décadas, detectou uma “ligeira intensificação de ocorrências” de uma média de quatro por semana para uma por dia, e uma tendência de inflexão da violência, outrora concentrada nos grandes centros urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro e Baía, para o interior do país.
O caso de um adolescente de 15 anos, que foi violentamente agredido e preso a um poste com um cadeado de bicicleta, no bairro do Flamengo do Rio de Janeiro, no dia 31 de Janeiro, voltou a lançar o debate sobre as operações de linchamento e os direitos humanos no Brasil. O jovem, que é negro, foi encontrado à noite, ensanguentado e sem roupa, por uma educadora responsável pelo projecto Uerê dedicado a crianças carentes: depois de alertar as autoridades, e publicar fotografias na Internet denunciando o crime, Yvonne Bezerra de Mello recebeu ameaças de morte.
Depois de ser preso ao poste, o menor foi espancado por cerca de 30 homens (um deles armado com uma pistola), que o acusaram de andar a roubar bicicletas e o atingiram com pontapés e joelhadas e golpes com capacetes. Os agressores, que disse serem todos jovens, bem vestidos e brancos, cortaram-lhe uma orelha e deixaram-no amarrado ao poste, nu. A educadora que lhe prestou socorro disse à BBC Brasil que foi censurada por grupos de vigilantes do bairro – “Diziam que a culpa dos roubos era minha porque eu ajudava essas crianças.”
O criador do grupo “Reage Flamengo: Queremos Nosso Bairro de Volta” no Facebook, Angelo Castilho, disse ao repórter da estação britânica que não sabia quem eram os participantes no ataque, mas confirmou que apoiava a acção contra o adolescente. “Os moradores estão abandonados e revoltados diante dos assaltos frequentes. Se a população tiver oportunidade, tem que reagir”, declarou.
Cinco dias depois, o jornal Extra divulgou imagens captadas por telemóvel, de uma execução a tiro de um jovem de 20 anos acusado de praticar assaltos na Baixada Fluminense, uma zona desfavorecida na área metropolitana do Rio. O crime ocorre à luz do dia, numa das ruas mais movimentadas da localidade de Belford Roxo: o jovem está sentado no chão, subjugado por um grupo de homens, que o agarram à espera de um motociclista que o atinge com três tiros na cabeça. Segundo disseram moradores do bairro à reportagem da rede Globo, a zona tem estado em pé de guerra, com confrontos entre traficantes e milícias populares.
Os dois episódios motivaram amplo debate e dividiram a opinião pública em dois grandes blocos, um de compreensão e elogio à justiça praticada pelos vigilantes e outro de repúdio das acções violentas dos justiceiros.
Depois dos incidentes no Rio de Janeiro, foram reportados casos semelhantes de “justiçamento” (conforme designa a imprensa brasileira) nos estados de Goiânia, Piauí, Santa Catarina, Pernambuco, Baía e Mato Grosso do Sul. Quase todos dizem respeito a acções colectivas de violência para a punição de indivíduos apanhados em flagrante ou suspeitos de furtos, roubos ou violações, alguns deles menores.
Na cidade de Teresina, no Piauí, um homem a quem foram atados os pés e as mãos, foi atirado para cima de um formigueiro. No vídeo que documenta a acção, que foi divulgado por estações de televisão locais, ouvem-se os insultos da assistência, enquanto o homem grita por ajuda, com a cara já inchada pelas picadas das formigas. A Secretaria de Segurança do Estado disse que o inquérito ainda não permitiu identificar a identidade do agredido e dos agressores, mas apenas apurar que o ataque decorreu no bairro Dirceu Arcoverde, no fim-de-semana passado.
Em Goiás, já foram reportados três ataques esta semana: um adolescente de 16 anos foi agredido com uma barra de ferro pelos trabalhadores de uma obra que o viram a tentar roubar uma mota; um jovem de 20 anos foi perseguido por três motociclistas, que o espancaram por ter roubado a carteira de uma mulher e um homem de 32 anos foi hospitalizado depois de ter sido arrastado e pontapeado por vizinhos que o viram invadir uma residência. O ataque foi filmado e divulgado nas redes sociais.
Em declarações ao Diário da Manhã, o presidente da secção de Goiás da ordem dos Advogados do Brasil, Henrique Tibúrcio, refere-se a um “efeito de imitação” provocado pela “repercussão do caso do Rio de Janeiro”, e à desconfiança popular com a actuação das forças de segurança e o funcionamento da justiça. “A sociedade está descrente quanto à polícia, quanto à justiça, quanto às leis de impunidade”, observa, ressalvando porém que “embora a população tenha o direito de se defender, não pode espancar ou agredir outra pessoa”.
O deputado federal e líder da bancada do PSOL, Ivan Valente, fala na “substituição do Estado pela barbárie” e na ressurreição do pelourinho, “125 anos após o fim da escravidão, para regozijo de quem sempre está pronto para empinar o chicote e fazer justiça com as próprias mãos”, num artigo para o Observatório da Imprensa brasileiro.
“A prática punitiva persiste no Brasil e é permeada pela violência física desproporcional. De certa forma, uma parte da população entende aquilo como compreensível”, diz a investigadora do departamento de Sociologia da Universidade federal de São Carlos, Jacqueline Sinhoretto, à revista Veja. “Ainda somos um país que impõe e aceita penas degradantes”, prossegue, lamentando o desfasamento entre o quadro jurídico e institucional e a realidade do quotidiano – onde a violência acontece pela mão dos vigilantes de bairro, dos “bandidos” do narcotráfico ou dos agentes da autoridade. “Sob o controlo do Estado, ocorrem mortes, decapitações e práticas que o arcabouço institucional tenta eliminar, mas persistem pelas mãos de linchadores e matadores dentro do sistema carcerário”, refere.