Hard-boiled Hammett

Não têm sido poucos aqueles que se tornaram escritores devido a uma qualquer debilidade física (Marcel Proust e Elizabeth Barrett Browning são dois exemplos) e Dashiell Hammett (1894 –1961), apesar de toda a sua fanfarronice e coriácea dureza, não foi excepção. O fantasma da tuberculose pairou como uma ameaça constante sobre a sua vida irrequieta, afastando-o do primeiro emprego — em publicidade — e, mais tarde, do trabalho como investigador privado. Condenado a uma existência mais sedentária, passou a dedicar-se à escrita a tempo inteiro.

A literatura ganhava assim um dos seus representantes máximos, pelo menos no que diz respeito ao subgénero policial ou roman noir, que ele transformou, de uma forma irreversível. Em contraste com o romance “à inglesa”, em que investigadores sorumbáticos e excêntricos, vestidos a preceito e comodamente instalados nos seus cadeirões de couro, se dedicavam à resolução de charadas pela mera dedução mental, como Sherlock Holmes e Hercule Poirot, Hammett criou o detective hard-boiled, temperamental e amante da acção, arrojado, armado e pronto a disparar. Ao agarrar nas histórias sórdidas da rua e ao transformá-las numa mistura de western e de folhetim de cordel, insuflava-lhes uma nova dinâmica. Eram anunciadas a plenos pulmões pelos ardinas que arrancavam os jornais das rotativas com a tinta ainda fresca, saindo a apregoar os últimos escândalos e atrocidades. Hammett conhecia bem o universo do crime, tanto o dos becos, bares, speakeasies e esquinas mal afamadas, como o que se camuflava por trás das fachadas das casas opulentas que abrigavam traficantes de drogas duras, jovens ingénuas e perversas, mulheres maduras irresistíveis e ricaços amorais. Sabia do que falava quando descrevia os delinquentes de meia-tigela e os bandidos de alta escola, as manobras dos antros mafiosos e as diligências policiais.

Hammett deixou cedo a escola e começou a trabalhar aos 13 anos, familiarizando-se com os sons e o modo de viver das grandes cidades. Entre 1915 e 1922, com um intervalo para se juntar ao Corpo de Ambulâncias, na Europa, durante a Grande Guerra, esteve ao serviço da célebre Pinkerton National Detective Agency. A sua acção como operacional foi uma fonte abundante de tramas para a sua obra, que inclui contos, novelas, guiões cinematográficos e romances. Considerado um óptimo agente, foi referido pelo seu biógrafo Richard Layman da seguinte maneira: “Era capaz de seguir um suspeito durante dias a fio sem ser detectado”, prezando sobretudo “uma combinação de perspicácia, auto-protecção física, psicológica e moral, conduta irrepreensível e anonimato”. Acabou por abandonar o trabalho, não só por ter adoecido com gripe espanhola — que degenerou em tuberculose — mas também porque a posição assumida pela agência nos conflitos com os sindicatos o desiludiu e repugnou. Depois do assassinato de Frank Little, um dirigente sindical de Montana (crime que ficou por resolver mas que foi atribuído à gente da Pinkerton, e que Hammett recriou no seu primeiro romance, Red Harvest), optou por retirar-se de cena, dedicando-se à escrita de contos, que produzia com enorme rapidez — precisava de ganhar dinheiro — num estilo jornalístico que influenciou muitos outros escritores, de Raymond Chandler a Don DeLillo, passando pelo seu confesso admirador Ernest Hemingway. A velocidade da escrita, a cadência rápida e entrecortada, bem como a verosimilhança — os leitores gostavam de reconhecer São Francisco e os outros lugares que ele descrevia com inúmeros detalhes tão reais quanto maliciosos —, eram essenciais.

A Maldição dos Dain (1929) e O Homem Sombra (1934), agora reeditados de uma forma cuidada — depois de publicações truncadas e maltratadas —, correspondem a duas fases distintas da carreira do escritor. Embora tenham as marcas que caracterizaram o estilo de Hammett — apressado, com diálogos ácidos, humor ríspido, homens duros e cínicos e mulheres misteriosas e atrevidas —, é possível detectar certas diferenças fundamentais. A trama de A Maldição dos Dain desenrola-se em torno de uma jovem morfinómana cuja proximidade se revela fatal para todos os que dela se acercam, e é construída como uma colagem de contos em que as personagens principais (o detective da agência que vai solucionando os vários e sangrentos crimes, e Gabrielle Dain Leggett, a bizarra e sempre pedrada causadora, directa ou indirectamentem do massacre) estão constantemente a cruzar-se e a afastar-se, à medida que se desvenda um mistério para logo outro se suceder. É perceptível, neste romance, a influência de Edgar Allan Poe, de uma certa literatura de terror (gótica) revelada nas cenas nocturnas, nos temporais, nas seitas secretas, nos mistérios macabros e na (realista) e diabólica descrição da privação das drogas quando Gabrielle decide reabilitar-se. Em O Homem Sombra, o cenário e o estilo divergem: Nick e Nora Charles são um casal de detectives, embora ele passe o tempo a recusar envolver-se nas investigações, dizendo (tal como o autor) que está reformado. O ambiente urbano, os espaços fechados dos apartamentos, as sucessivas entradas e saídas fortemente marcadas invocam uma dinâmica teatral ou cinematográfica. Nick, diferente de outras célebres criações de Hammett, como Sam Spade (associado, para sempre, à figura de Humphrey Bogart) ou Continental Op, é mais maduro, menos activo fisicamente, mais céptico, mais sarcástico e muito mais alcoólico (se possível).

Nunca será de mais recordar que Hammett foi um activista incansável dos direitos humanos e um lutador, apesar da sua saúde sempre débil. Quando da Segunda Guerra Mundial, apesar de comunista, doente e já veterano da Primeira, conseguiu alistar-se. Era profundamente anti-nazi e em 1922 ingressara no Partido Comunista, o que, obviamente, lhe valeu uma perseguição sem piedade por parte do tristemente célebre senador McCarthy, durante a “caça às bruxas” dos anos 1950. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, recusou-se a facultar nomes de esquerdistas seus conhecidos de Hollywood e da literatura, invocando a quinta emenda, o que lhe valeu ser preso. Em 1930, conheceu Lillian Hellman que, aos 24 anos, era então uma dramaturga novata; foi sua companheira até à morte. Mantiveram uma relação tumultuosa, misturada com muita bebida, rivalidades e, também, uma profunda devoção de parte a parte. Hellmann contou que tinha ficado muito satisfeita quando Hammett lhe disse que fora ela a inspiração para a criação da personagem divertida, inteligente e sexy de Nora Charles, mas a sua alegria durou pouco quando ele acrescentou que a jovem tonta, implicativa e mimada do mesmo O Homem Sombra também tinha sido decalcada a partir dela.

Nem a tuberculose — acabou por morrer de cancro do pulmão —, nem o alcoolismo, nem as relações agitadas com as mulheres, nem o feitio de eremita conseguiram diminuir o poder da escrita de Hammett e a sua duradoura marca. Cinco anos depois da sua morte, Hellmann publicou uma longa nota biográfica no The New York Review of Books em que dizia o seguinte: “Houve tempos em que achei que tudo o que ele escrevia era bom. Mas nem tudo era bom, embora me pareça agora que a maior parte dos contos é muito boa; mais vale dizer isto já, uma vez que vou publicá-los. Vou fazer o que ele não queria; recusou sempre as propostas para reeditar as suas histórias, embora eu nunca tenha percebido a razão. E nunca perguntei porquê.” O escritor incansável e forte, que não queria falar da sua própria morte e que apreciava os mistérios e as charadas, manteve (alguns) segredos até ao fim.

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Não têm sido poucos aqueles que se tornaram escritores devido a uma qualquer debilidade física (Marcel Proust e Elizabeth Barrett Browning são dois exemplos) e Dashiell Hammett (1894 –1961), apesar de toda a sua fanfarronice e coriácea dureza, não foi excepção. O fantasma da tuberculose pairou como uma ameaça constante sobre a sua vida irrequieta, afastando-o do primeiro emprego — em publicidade — e, mais tarde, do trabalho como investigador privado. Condenado a uma existência mais sedentária, passou a dedicar-se à escrita a tempo inteiro.

A literatura ganhava assim um dos seus representantes máximos, pelo menos no que diz respeito ao subgénero policial ou roman noir, que ele transformou, de uma forma irreversível. Em contraste com o romance “à inglesa”, em que investigadores sorumbáticos e excêntricos, vestidos a preceito e comodamente instalados nos seus cadeirões de couro, se dedicavam à resolução de charadas pela mera dedução mental, como Sherlock Holmes e Hercule Poirot, Hammett criou o detective hard-boiled, temperamental e amante da acção, arrojado, armado e pronto a disparar. Ao agarrar nas histórias sórdidas da rua e ao transformá-las numa mistura de western e de folhetim de cordel, insuflava-lhes uma nova dinâmica. Eram anunciadas a plenos pulmões pelos ardinas que arrancavam os jornais das rotativas com a tinta ainda fresca, saindo a apregoar os últimos escândalos e atrocidades. Hammett conhecia bem o universo do crime, tanto o dos becos, bares, speakeasies e esquinas mal afamadas, como o que se camuflava por trás das fachadas das casas opulentas que abrigavam traficantes de drogas duras, jovens ingénuas e perversas, mulheres maduras irresistíveis e ricaços amorais. Sabia do que falava quando descrevia os delinquentes de meia-tigela e os bandidos de alta escola, as manobras dos antros mafiosos e as diligências policiais.

Hammett deixou cedo a escola e começou a trabalhar aos 13 anos, familiarizando-se com os sons e o modo de viver das grandes cidades. Entre 1915 e 1922, com um intervalo para se juntar ao Corpo de Ambulâncias, na Europa, durante a Grande Guerra, esteve ao serviço da célebre Pinkerton National Detective Agency. A sua acção como operacional foi uma fonte abundante de tramas para a sua obra, que inclui contos, novelas, guiões cinematográficos e romances. Considerado um óptimo agente, foi referido pelo seu biógrafo Richard Layman da seguinte maneira: “Era capaz de seguir um suspeito durante dias a fio sem ser detectado”, prezando sobretudo “uma combinação de perspicácia, auto-protecção física, psicológica e moral, conduta irrepreensível e anonimato”. Acabou por abandonar o trabalho, não só por ter adoecido com gripe espanhola — que degenerou em tuberculose — mas também porque a posição assumida pela agência nos conflitos com os sindicatos o desiludiu e repugnou. Depois do assassinato de Frank Little, um dirigente sindical de Montana (crime que ficou por resolver mas que foi atribuído à gente da Pinkerton, e que Hammett recriou no seu primeiro romance, Red Harvest), optou por retirar-se de cena, dedicando-se à escrita de contos, que produzia com enorme rapidez — precisava de ganhar dinheiro — num estilo jornalístico que influenciou muitos outros escritores, de Raymond Chandler a Don DeLillo, passando pelo seu confesso admirador Ernest Hemingway. A velocidade da escrita, a cadência rápida e entrecortada, bem como a verosimilhança — os leitores gostavam de reconhecer São Francisco e os outros lugares que ele descrevia com inúmeros detalhes tão reais quanto maliciosos —, eram essenciais.

A Maldição dos Dain (1929) e O Homem Sombra (1934), agora reeditados de uma forma cuidada — depois de publicações truncadas e maltratadas —, correspondem a duas fases distintas da carreira do escritor. Embora tenham as marcas que caracterizaram o estilo de Hammett — apressado, com diálogos ácidos, humor ríspido, homens duros e cínicos e mulheres misteriosas e atrevidas —, é possível detectar certas diferenças fundamentais. A trama de A Maldição dos Dain desenrola-se em torno de uma jovem morfinómana cuja proximidade se revela fatal para todos os que dela se acercam, e é construída como uma colagem de contos em que as personagens principais (o detective da agência que vai solucionando os vários e sangrentos crimes, e Gabrielle Dain Leggett, a bizarra e sempre pedrada causadora, directa ou indirectamentem do massacre) estão constantemente a cruzar-se e a afastar-se, à medida que se desvenda um mistério para logo outro se suceder. É perceptível, neste romance, a influência de Edgar Allan Poe, de uma certa literatura de terror (gótica) revelada nas cenas nocturnas, nos temporais, nas seitas secretas, nos mistérios macabros e na (realista) e diabólica descrição da privação das drogas quando Gabrielle decide reabilitar-se. Em O Homem Sombra, o cenário e o estilo divergem: Nick e Nora Charles são um casal de detectives, embora ele passe o tempo a recusar envolver-se nas investigações, dizendo (tal como o autor) que está reformado. O ambiente urbano, os espaços fechados dos apartamentos, as sucessivas entradas e saídas fortemente marcadas invocam uma dinâmica teatral ou cinematográfica. Nick, diferente de outras célebres criações de Hammett, como Sam Spade (associado, para sempre, à figura de Humphrey Bogart) ou Continental Op, é mais maduro, menos activo fisicamente, mais céptico, mais sarcástico e muito mais alcoólico (se possível).

Nunca será de mais recordar que Hammett foi um activista incansável dos direitos humanos e um lutador, apesar da sua saúde sempre débil. Quando da Segunda Guerra Mundial, apesar de comunista, doente e já veterano da Primeira, conseguiu alistar-se. Era profundamente anti-nazi e em 1922 ingressara no Partido Comunista, o que, obviamente, lhe valeu uma perseguição sem piedade por parte do tristemente célebre senador McCarthy, durante a “caça às bruxas” dos anos 1950. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, recusou-se a facultar nomes de esquerdistas seus conhecidos de Hollywood e da literatura, invocando a quinta emenda, o que lhe valeu ser preso. Em 1930, conheceu Lillian Hellman que, aos 24 anos, era então uma dramaturga novata; foi sua companheira até à morte. Mantiveram uma relação tumultuosa, misturada com muita bebida, rivalidades e, também, uma profunda devoção de parte a parte. Hellmann contou que tinha ficado muito satisfeita quando Hammett lhe disse que fora ela a inspiração para a criação da personagem divertida, inteligente e sexy de Nora Charles, mas a sua alegria durou pouco quando ele acrescentou que a jovem tonta, implicativa e mimada do mesmo O Homem Sombra também tinha sido decalcada a partir dela.

Nem a tuberculose — acabou por morrer de cancro do pulmão —, nem o alcoolismo, nem as relações agitadas com as mulheres, nem o feitio de eremita conseguiram diminuir o poder da escrita de Hammett e a sua duradoura marca. Cinco anos depois da sua morte, Hellmann publicou uma longa nota biográfica no The New York Review of Books em que dizia o seguinte: “Houve tempos em que achei que tudo o que ele escrevia era bom. Mas nem tudo era bom, embora me pareça agora que a maior parte dos contos é muito boa; mais vale dizer isto já, uma vez que vou publicá-los. Vou fazer o que ele não queria; recusou sempre as propostas para reeditar as suas histórias, embora eu nunca tenha percebido a razão. E nunca perguntei porquê.” O escritor incansável e forte, que não queria falar da sua própria morte e que apreciava os mistérios e as charadas, manteve (alguns) segredos até ao fim.