Tudo o que sempre quisemos saber sobre Hemingway e nunca tivemos coragem de perguntar
Da receita do hambúrguer favorito do escritor ao telegrama em que Ingrid Bergman lhe dá os parabéns pelo Nobel da Literatura: 2.500 novos documentos estão agora disponíveis para consulta em Boston.
Ao todo, são 2.500 novas possibilidades de espreitar pelo buraco da fechadura para a vida de um escritor que se diz ter sido muito maior do que ela – incluindo, além da receita do seu hambúrguer favorito dactilografada pela sua última mulher, Mary, a factura do Buick Super Station Wagon que comprou em 1959 num stand automóvel em Key West, a licença de porte de arma emitida pelo Governo cubano nove anos antes, vários bilhetes de touradas a que assistiu em Espanha, e os telegramas em que Spencer Tracy, John Huston (“Grande, Papa, grande”) e Ingrid Bergman (“Afinal os suecos não são assim tão estúpidos”) o felicitam pela atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1954 (além do próprio telegrama em que a Academia Sueca lhe comunica a deliberação).
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Ao todo, são 2.500 novas possibilidades de espreitar pelo buraco da fechadura para a vida de um escritor que se diz ter sido muito maior do que ela – incluindo, além da receita do seu hambúrguer favorito dactilografada pela sua última mulher, Mary, a factura do Buick Super Station Wagon que comprou em 1959 num stand automóvel em Key West, a licença de porte de arma emitida pelo Governo cubano nove anos antes, vários bilhetes de touradas a que assistiu em Espanha, e os telegramas em que Spencer Tracy, John Huston (“Grande, Papa, grande”) e Ingrid Bergman (“Afinal os suecos não são assim tão estúpidos”) o felicitam pela atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1954 (além do próprio telegrama em que a Academia Sueca lhe comunica a deliberação).
Armazenado durante décadas na cave da casa onde o escritor viveu entre 1939 e 1960 nos arredores de Havana – a Finca Vigía, em San Francisco de Paula –, o espólio que a Biblioteca e Museu Presidencial John F. Kennedy agora torna acessível depois de uma extensa operação de digitalização constitui a segunda parte da verdadeira arca do tesouro que Jenny Phillips, neta do editor Maxwell Perkins, ali encontrou praticamente ao abandono em 2001, juntamente com uma biblioteca pessoal de mais de nove mil livros anotados à mão, uma grafonola com um disco de Glenn Miller e várias garrafas abertas de Cinzano.
Em 2008, uma primeira remessa deste espólio inédito, reunindo cerca de três mil documentos (correspondência pessoal, diários, manuscritos originais) fora já colocada ao dispor dos estudiosos; desta vez, é sobretudo a memorabilia pessoal de Hemingway que se torna pública, pronta a segredar-nos tudo o que sempre quisemos saber sobre o autor de Por Quem Os Sinos Dobram (1940) e nunca tivemos coragem de perguntar.
Cartas, postais de Natal, telegramas, passaportes e outros documentos pessoais, facturas, contas da mercearia, da oficina, da livraria e do bar, notas de encomenda, receitas, anotações, extractos bancários – é todo um Hemingway de carne e osso, um Hemingway do dia-a-dia, que se revela, notava Tom Putman, o director da biblioteca, no comunicado distribuído à imprensa na passada terça-feira. “Congratulamo-nos por disponibilizar aos investigadores cópias destes materiais que permitem um vislumbre único do quotidiano de Hemingway. Tratando-se, como se trata, de uma figura literária frequentemente retratada como maior do que a vida, este acervo serve para humanizar o homem e para compreender o escritor”, acrescentava na mesma nota o responsável pela instituição norte-americana.
Deve-se sobretudo à Finca Vigía Foundation, que Jenny Phillips criou em 2002 para preservar o que Hemingway deixou para trás em Cuba e a sua viúva não pôde ou não quis trazer para os EUA, a preservação e a digitalização deste imenso espólio, feita em colaboração com o Conselho Nacional do Património Cultural de Cuba – tal como se deve a Jenny Phillips o restauro da casa onde Hemingway viveu a maior parte da sua vida, e da qual saiu em 1960 para uma viagem sem regresso (acabaria por suicidar-se em Julho de 1961 na sua casa de Ketchum, Idaho).
“Não há nenhuma verdadeira bomba [neste grupo de 2.500 novos documentos]. O valor que têm está na sua textura de quotidiano, na forma como compõem um retrato de Hemingway. Quando partiu de Cuba, ele não sabia que não ia voltar. Os seus sapatos ainda lá estão. É como se tivesse saído para voltar dentro de momentos”, apontou ao New York Times Sandra Spanier, que dirige o Hemingway Letters Project.
Foi na Finca Vigía, de resto, que Hemingway escreveu obras tão importantes para o cânone literário do século XX como Por Quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar (1952), além dos já póstumos Paris é uma Festa (1964), Ilhas na Corrente (1970), Verão Perigoso (1985), O Jardim do Éden (1986) e Verdade ao Amanhecer (1999).
Em Boston, esta nova remessa vem engrossar a Ernest Hemingway Collection da Biblioteca e Museu Presidencial John F. Kennedy, na qual estão depositados mais de 90 por cento dos materiais do espólio do escritor. Apesar de o escritor e o presidente assassinado em 1963 nunca terem chegado a conhecer-se pessoalmente – Kennedy convidou-o para a sua tomada de posse, mas Hemingway estava já demasiado doente para viajar –, a viúva do Nobel da Literatura quis agradecer com a doação iniciada em 1972 a intervenção da Casa Branca junto das autoridades cubanas logo após a morte do marido.
Estando então suspensas, na sequência da crise da Baía dos Porcos, as viagens entre Cuba e os EUA, o regime de Fidel aceitou o pedido de Kennedy para que Mary Hemingway pudesse deslocar-se a Havana e recolher documentos e bens pessoais do autor – em troca, o Governo cubano reclamou a Finca Vigía e o recheio remanescente, que agora começa a abrir-se ao mundo para que possamos finalmente saber que mesmo nos anos terminais em que a vida começava realmente a tornar-se mais pequena do que ele, Hemingway continuava a mandar vir de Nova Iorque azeitonas, caracóis franceses e sopa de tartaruga.