Marco Pantani, o último grande trepador

Cumpre-se hoje uma década sobre a morte de um dos grandes ícones do ciclismo italiano e mundial.

Fotogaleria

Com apenas 34 anos, depois de uma carreira de luz e sombra, Marco Pantani confirmava a entrada na galeria dos mitos do ciclismo, uma entrada que tinha garantido dez anos antes, na sua estreia entre os grandes. Uma década mediou da ascensão à queda daquele que é, ainda hoje, o último autêntico trepador da era moderna. “Se eu era o carpinteiro, Pantani era o artista”, disse ontem Lance Armstrong.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Com apenas 34 anos, depois de uma carreira de luz e sombra, Marco Pantani confirmava a entrada na galeria dos mitos do ciclismo, uma entrada que tinha garantido dez anos antes, na sua estreia entre os grandes. Uma década mediou da ascensão à queda daquele que é, ainda hoje, o último autêntico trepador da era moderna. “Se eu era o carpinteiro, Pantani era o artista”, disse ontem Lance Armstrong.

Dono de um carisma e personalidades únicos, “Il Pirata” representa os anos do ciclismo que a União Ciclista Internacional (UCI) escolheu apagar dos palmarés, aqueles de que não se fala. A cocaína foi apenas o último dos episódios de uma carreira tirada de um guião de cinema. Adolescente problemático, o jovem Marco, filho de uma modesta família dona de um quiosque de gelados e panquecas no resort italiano de Cesenatico, encontrou no ciclismo e na escalada de montanhas a sua libertação.

“Não concedo que alguém me possa ultrapassar. Vejo o vazio nas minhas costas. Quero habituar-me, dia após dia, à solidão. Quando ataco, quero destruir psicologicamente os meus adversários. Os outros devem sujeitar-se a perseguir-me. Tanto que, enquanto não os deixo para trás, não fico tranquilo”.

Foi sempre assim, mesmo no início. Depois de se estrear com um segundo lugar na Volta a Itália de 1994, rumou ao Tour para fazer a diferença. Viviam-se os anos do ciclismo mecânico, do “robot” Miguel Indurain. Mas Pantani, com a sua figura esguia - 57 quilos distribuídos por 1,72 metros -, a sua cabeça rapada e brinco na orelha, estava disposto a deixar a sua marca. Na 17.ª etapa, depois de ter ponderado o abandono devido a lesão, o italiano de 24 anos espanta o meio velocipédico com a sua subida final.

Ciclista romântico, dos ataques quixotescos e imponderados, acaba a Volta a França em terceiro lugar e sobe ao pódio como melhor jovem. A Itália, órfã de um ídolo à altura de Fausto Coppi, vê naquele jovem o seu futuro. As coincidências não são meras coincidências: os dois correm numa bicicleta Bianchi, os dois são (re)conhecidos azarados. Em 1995, é abalroado por um carro, mas consegue ganhar duas etapas no Tour e a medalha de bronze nos Mundiais. Nesse outono, é atropelado por um jeep na Milão-Turim. Resultado? Uma perna partida, um osso calcificado que o impede de pedalar durante sete meses.

No regresso à competição, mostra por que o apelidam de excêntrico, usando uma peruca loura, que completa a aura criada pela escrita de poemas, pintura de quadros, o uso de um lenço que salientava as suas orelhas – daí o apelido Elefantino, o equivalente italiano de Dumbo - e uma estranha persistência em falar na terceira pessoa.

Perdida grande parte da época de 1996, Pantani inicia a temporada seguinte com renovada esperança e nova equipa, a Mercantone Uno, mas uma queda envolvendo um gato preto no Giro de 1997 condiciona a sua prestação. Nada que não seja recuperável a tempo do Tour. Ganha duas etapas, estabelece o recorde de rapidez na ascensão ao Alpe D’Huez – e ganha uma curva com o seu nome – e sobe ao pódio como terceiro classificado, atrás de Jan Ullrich e Richard Virenque.

Os indícios de que estava prestes a fazer história multiplicavam-se. Ganha o Giro de 1998 e chega a um Tour convulso pelo caso Festina – o primeiro grande caso de doping generalizado no ciclismo – como um dos grandes favoritos. Apresenta-se como o rosto do descontentamento do pelotão na greve feita pelos ciclistas em protesto contra a suspeita de doping generalizado, sobrevive aos abandonos para, no meio do caos, tornar-se no último autor de uma “dobradinha” nas duas principais provas do calendário velocipédico internacional.

Depois da dupla vitória em Itália e em França, o que poderia mais fazer “Il Pirata”? As expectativas eram altas, a queda foi maior. Quando liderava por mais de cinco minutos em relação ao segundo classificado, depois de ter conquistado quatro etapas, uma análise ao sangue revelou um hematócrito de 52 por cento, superior ao limite estabelecido pela UCI e um dos indicadores do recurso à EPO. A organização não teve em conta as explicações de Pantani e expulsou-o da corrida.

Tinha aí início a descida ao inferno do italiano, que nunca mais fez um resultado digno de registo. Submerso numa profunda depressão começou a consumir cocaína. Só por uma vez, no Giro de 2003, voltaria a assemelhar-se ao campeão que era, concluindo a prova em 14.º. Nesses anos, somou sucessivos abandonos, desaires, e um episódio com uma seringa de insulina, encontrada no seu quarto durante a “corsa rosa” de 2001. A federação italiana condenou-o a oito meses de suspensão, pena anulada posteriormente por falta de provas. A sua associação com o doping não mais parou de salpicar as páginas dos jornais até à sua morte – e mesmo depois dela. Pantani morreu sozinho, como gostava de correr, e tornou-se o maior exemplo dos anos mais negros e decadentes do ciclismo moderno.