Há coisas que continuam a fascinar
É esta sexta-feira que os Mler Ife Dada, um dos projectos mais aventureiros da história da cultura pop portuguesa, regressa aos palcos, trinta anos depois da estreia. Tiveram uma curta existência de seis anos, entre 1984 e 1990, mas o seu lastro mantém-se. No palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, iremos encontrar onze músicos liderados pelo guitarrista Nuno Rebelo e pela cantora Anabela Duarte, obreiros de um retorno que deseja ir muito para além de qualquer circunstância nostálgica.
“A banda nuclear manterá a essência daquilo que eram os Mler Ife Dada, respeitando as músicas, mas introduzindo novos detalhes”, garante Nuno Rebelo. A essência das canções será respeitada, mas “existe um expandir da paleta de timbres e dos arranjos, com a introdução de um trio de metais e um trio de cordas”, afirma.
Parte do incessante trabalho dos últimos meses tem sido voltado para a reescrita dos arranjos e para a preparação de partituras. A satisfação do confronto com velhas canções é que não se perdeu. “Tem sido um prazer voltar a estar com estas canções”, reflecte Anabela Duarte, “renovando-as também de alguma forma, porque os próprios músicos nos vão transmitindo novos estímulos.”
“Tem sido uma alegria em crescendo”, reforça Nuno, “porque tivemos três fases intensivas de ensaios. Na primeira e na segunda, com a banda nuclear – baixo, bateria, guitarra, voz e teclas – a trabalhar um naipe diferente de canções de cada vez. E na terceira a trabalhar todos os temas, com cordas e sopros.”
Mas não se espere, apesar do número de músicos em palco, qualquer tipo de grandiosidade orquestral. Os arranjos “vão para muitos lados”, tenta explicitar Nuno Rebelo, “abrindo para caminhos estranhos que não estavam lá, embora existam outros numa onda meio americana, tipo Burt Bacharach”, exemplifica.
O retorno do projecto está a gerar interesse, não só “junto das pessoas que agora nos podem voltar a ver”, conta Anabela Duarte, como junto de pessoas mais novas “que nunca nos viram ao vivo e que têm muita curiosidade, ou porque ouviram os discos, ou porque ouviram falar do que fizemos e de como isso ainda se conserva.”
O cinzento e o FMI
Os Mler Ife Dada formaram-se a meio dos anos 1980, vencendo o 1º concurso do Rock Rendez-Vous, a sala lisboeta de concertos mais emblemática da época. Depois de terem gravado o EP de estreia (Zimpó) deu-se a dissolução da formação inicial, onde pontificava Nuno Rebelo (ex-Street Kids) e na voz Pedro D’Orey, que mais tarde, já nos anos 2000, integrou os Wordsong.
Às tantas o vocalista partiu para o Brasil e o projecto ficou sem voz. O encontro entre Nuno e Anabela viria a dar-se no contexto de um concerto dos GNR, na qual ela tinha uma participação vocal. O convite para integrar o grupo deu-se e ela, que já havia pertencido a formações como Ocaso Épico ou Bye Bye Lolita Girl, acabou por aceitar o desafio, contribuindo para identidade definitiva pela qual o grupo viria a ficar conhecido.
Nuno Rebelo tinha estudado na escola de Belas Artes. As suas cumplicidades vinham daí. Anabela Duarte captava uma costela artística da cultura universitária, aplicando teorias, formulações e delírios de movimentos como o dadaísmo ou o surrealismo à pop.
Dos GNR aos Pop Dell’Arte, havia também quem fugisse aos tons cinzentos predominantes de então, alicerçados nas influências de grupos ingleses como Joy Division, Echo & The Bunnymen ou The Cure, mas eles foram provavelmente os que levaram mais longe esse lado teatralizado, delirante e colorido, que contrastava com a realidade política e social da época. Hoje Portugal volta a estar embrenhado no negrume e Nuno Rebelo não o esquece. “É verdade, quando aparecemos e hoje... a situação social não é assim tão diferente. Basta pensar que estava cá o FMI.”
Em 1987 lançaram Coisas que Fascinam, ainda hoje um dos melhores álbuns portugueses, obra ecléctica, versátil, marcada por grande liberdade de formas, com canções feitas a partir de influências da pop, do jazz, do minimalismo, do fado, do rock ou de África, numa mistura vertiginosa de rua e erudição.
Depois do lançamento do também magnífico segundo álbum, Espírito Invisível (1989), o ambiente no projecto esmorece e Anabela acaba por abdicar. Apesar das edições posteriores – os EPs Dance Music e Mler Ife Dada – o grupo nunca mais foi o mesmo e acaba por terminar a actividade em 1990.
Depois do fim do grupo, Nuno Rebelo voltou a formar outros projectos, como os Plopoplot Pot, mas essencialmente dedicou-se à música improvisada e experimental ou à composição para dança ou teatro, encetando colaborações com criadores de diversas disciplinas artísticas. O seu último álbum a solo, lançado a partir de Barcelona, onde vive desde há quatro anos, é do ano passado e intitula-se Remove From The Flow Of Time.
Por sua vez, Anabela Duarte teve experiências com fado (álbum Lisbunah), canto lírico ou música electrónica, sempre numa linha muito personalizada. Uma das suas últimas aventuras é o projecto Machine Lyrique, espécie de teatro musical à volta da obra de Kurt Weill e de Boris Vian. Ou seja, depois de muitos anos afastados dos universos da pop, acabam por regressar a ela.
“Logo a seguir ao afastamento dos Mler Ife Dada tive uma relação de rejeição com a pop, mas na verdade nunca a deixei por completo”, emenda Nuno. “Mesmo quando componho para teatro ou dança, existe sempre um ou outro momento nesses espectáculos que remetem para esse universo. Se os Mler Ife Dada sempre foram uma forma de expandir o conceito da pop, a minha vida tem sido expandir a minha experiência na música em geral.”
Já Anabela enfatiza que saiu mesmo da esfera da pop, mas esse facto apenas contribuiu para que “alargasse os horizontes musicais”, aplicando-os agora neste regresso. E não são apenas eles os dois. “Os próprios músicos com quem estamos a tocar têm proveniências muito diversas - do jazz à clássica.”
Nesta fase o grupo irá contar com Filipe Valentim (Radio Macau, Wordsong) nos teclados, Samuel Palitos (A Naifa, Radio Macau) na bateria e Tiago Maia no baixo, em substituição de Francisco Rebelo (Orelha Negra, Cool Hipnoise), que foi obrigado a deixar os ensaios. Isto, claro, para além da inclusão do trio de cordas e do trio de sopros. Uma novidade que Nuno Rebelo remete para a disponibilidade que o grupo sempre demonstrou para encetar novas experiências. “Há trinta anos também tínhamos essa abertura a outros recursos, como a flauta de bisel ou o vibrafone, visível no Coisas que Fascinam’.
“Nessa altura se tivéssemos acesso a um trio de cordas e se eu soubesse escrever para esses instrumentos provavelmente tê-lo-íamos utilizado. Não o fizemos. Mas para mim o estimulo para este concerto era poder avançar para um território destes.”
Sobre o concerto de hoje existe uma certeza. Vai ter início com a canção Nu ar, que esteve esquecida praticamente desde o início da vida do grupo, apesar de ter sido o primeiro tema gravado em maqueta, o primeiro a passar na rádio e o primeiro que tocaram ao vivo. “Faz todo o sentido apresentá-lo neste contexto de comemoração dos 30 anos”, reflecte Nuno. “É um tema que surgiu na primeira improvisação que fizemos, eu, o Pedro D’ Orey e o Nuno Canavarro. E a primeira palavra do tema é, nem mais nem menos, que Mler Ife Dada. A origem do nome é essa. Depois nunca mais o tocámos por uma questão técnica: tinha uma sequência gravada e não tínhamos sequenciador.”
Para além da interpretação de canções como Zuvi zeva novi, L’amour va bien, merci, Alfama, Erro de cálculo, Valete (de copas) ou À sombra da pirâmide, haverá também uma cenografia visual, para a qual contribuíram o arquitecto Sérgio Rebelo ou a designer Rita Filipe. Será uma ocasião única, que esperam repetir nos próximos tempos, “mas não muitas vezes”, diz Nuno Rebelo. Pelo menos é esse o desejo.
“A nossa vontade é fazer alguns bons concertos, em boas condições, com todos estes músicos”, afirma, até porque ambos estão convencidos que esta sexta-feira vai ser em grande. “Estou com muita expectativa. Deixei a minha vida extramusical para me concentrar nisto e acho que vai ser fantástico”, diz Anabela Duarte. Nuno Rebelo é mais taxativo: “Vai ser o melhor concerto de sempre dos Mler Ife Dada!”
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É esta sexta-feira que os Mler Ife Dada, um dos projectos mais aventureiros da história da cultura pop portuguesa, regressa aos palcos, trinta anos depois da estreia. Tiveram uma curta existência de seis anos, entre 1984 e 1990, mas o seu lastro mantém-se. No palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, iremos encontrar onze músicos liderados pelo guitarrista Nuno Rebelo e pela cantora Anabela Duarte, obreiros de um retorno que deseja ir muito para além de qualquer circunstância nostálgica.
“A banda nuclear manterá a essência daquilo que eram os Mler Ife Dada, respeitando as músicas, mas introduzindo novos detalhes”, garante Nuno Rebelo. A essência das canções será respeitada, mas “existe um expandir da paleta de timbres e dos arranjos, com a introdução de um trio de metais e um trio de cordas”, afirma.
Parte do incessante trabalho dos últimos meses tem sido voltado para a reescrita dos arranjos e para a preparação de partituras. A satisfação do confronto com velhas canções é que não se perdeu. “Tem sido um prazer voltar a estar com estas canções”, reflecte Anabela Duarte, “renovando-as também de alguma forma, porque os próprios músicos nos vão transmitindo novos estímulos.”
“Tem sido uma alegria em crescendo”, reforça Nuno, “porque tivemos três fases intensivas de ensaios. Na primeira e na segunda, com a banda nuclear – baixo, bateria, guitarra, voz e teclas – a trabalhar um naipe diferente de canções de cada vez. E na terceira a trabalhar todos os temas, com cordas e sopros.”
Mas não se espere, apesar do número de músicos em palco, qualquer tipo de grandiosidade orquestral. Os arranjos “vão para muitos lados”, tenta explicitar Nuno Rebelo, “abrindo para caminhos estranhos que não estavam lá, embora existam outros numa onda meio americana, tipo Burt Bacharach”, exemplifica.
O retorno do projecto está a gerar interesse, não só “junto das pessoas que agora nos podem voltar a ver”, conta Anabela Duarte, como junto de pessoas mais novas “que nunca nos viram ao vivo e que têm muita curiosidade, ou porque ouviram os discos, ou porque ouviram falar do que fizemos e de como isso ainda se conserva.”
O cinzento e o FMI
Os Mler Ife Dada formaram-se a meio dos anos 1980, vencendo o 1º concurso do Rock Rendez-Vous, a sala lisboeta de concertos mais emblemática da época. Depois de terem gravado o EP de estreia (Zimpó) deu-se a dissolução da formação inicial, onde pontificava Nuno Rebelo (ex-Street Kids) e na voz Pedro D’Orey, que mais tarde, já nos anos 2000, integrou os Wordsong.
Às tantas o vocalista partiu para o Brasil e o projecto ficou sem voz. O encontro entre Nuno e Anabela viria a dar-se no contexto de um concerto dos GNR, na qual ela tinha uma participação vocal. O convite para integrar o grupo deu-se e ela, que já havia pertencido a formações como Ocaso Épico ou Bye Bye Lolita Girl, acabou por aceitar o desafio, contribuindo para identidade definitiva pela qual o grupo viria a ficar conhecido.
Nuno Rebelo tinha estudado na escola de Belas Artes. As suas cumplicidades vinham daí. Anabela Duarte captava uma costela artística da cultura universitária, aplicando teorias, formulações e delírios de movimentos como o dadaísmo ou o surrealismo à pop.
Dos GNR aos Pop Dell’Arte, havia também quem fugisse aos tons cinzentos predominantes de então, alicerçados nas influências de grupos ingleses como Joy Division, Echo & The Bunnymen ou The Cure, mas eles foram provavelmente os que levaram mais longe esse lado teatralizado, delirante e colorido, que contrastava com a realidade política e social da época. Hoje Portugal volta a estar embrenhado no negrume e Nuno Rebelo não o esquece. “É verdade, quando aparecemos e hoje... a situação social não é assim tão diferente. Basta pensar que estava cá o FMI.”
Em 1987 lançaram Coisas que Fascinam, ainda hoje um dos melhores álbuns portugueses, obra ecléctica, versátil, marcada por grande liberdade de formas, com canções feitas a partir de influências da pop, do jazz, do minimalismo, do fado, do rock ou de África, numa mistura vertiginosa de rua e erudição.
Depois do lançamento do também magnífico segundo álbum, Espírito Invisível (1989), o ambiente no projecto esmorece e Anabela acaba por abdicar. Apesar das edições posteriores – os EPs Dance Music e Mler Ife Dada – o grupo nunca mais foi o mesmo e acaba por terminar a actividade em 1990.
Depois do fim do grupo, Nuno Rebelo voltou a formar outros projectos, como os Plopoplot Pot, mas essencialmente dedicou-se à música improvisada e experimental ou à composição para dança ou teatro, encetando colaborações com criadores de diversas disciplinas artísticas. O seu último álbum a solo, lançado a partir de Barcelona, onde vive desde há quatro anos, é do ano passado e intitula-se Remove From The Flow Of Time.
Por sua vez, Anabela Duarte teve experiências com fado (álbum Lisbunah), canto lírico ou música electrónica, sempre numa linha muito personalizada. Uma das suas últimas aventuras é o projecto Machine Lyrique, espécie de teatro musical à volta da obra de Kurt Weill e de Boris Vian. Ou seja, depois de muitos anos afastados dos universos da pop, acabam por regressar a ela.
“Logo a seguir ao afastamento dos Mler Ife Dada tive uma relação de rejeição com a pop, mas na verdade nunca a deixei por completo”, emenda Nuno. “Mesmo quando componho para teatro ou dança, existe sempre um ou outro momento nesses espectáculos que remetem para esse universo. Se os Mler Ife Dada sempre foram uma forma de expandir o conceito da pop, a minha vida tem sido expandir a minha experiência na música em geral.”
Já Anabela enfatiza que saiu mesmo da esfera da pop, mas esse facto apenas contribuiu para que “alargasse os horizontes musicais”, aplicando-os agora neste regresso. E não são apenas eles os dois. “Os próprios músicos com quem estamos a tocar têm proveniências muito diversas - do jazz à clássica.”
Nesta fase o grupo irá contar com Filipe Valentim (Radio Macau, Wordsong) nos teclados, Samuel Palitos (A Naifa, Radio Macau) na bateria e Tiago Maia no baixo, em substituição de Francisco Rebelo (Orelha Negra, Cool Hipnoise), que foi obrigado a deixar os ensaios. Isto, claro, para além da inclusão do trio de cordas e do trio de sopros. Uma novidade que Nuno Rebelo remete para a disponibilidade que o grupo sempre demonstrou para encetar novas experiências. “Há trinta anos também tínhamos essa abertura a outros recursos, como a flauta de bisel ou o vibrafone, visível no Coisas que Fascinam’.
“Nessa altura se tivéssemos acesso a um trio de cordas e se eu soubesse escrever para esses instrumentos provavelmente tê-lo-íamos utilizado. Não o fizemos. Mas para mim o estimulo para este concerto era poder avançar para um território destes.”
Sobre o concerto de hoje existe uma certeza. Vai ter início com a canção Nu ar, que esteve esquecida praticamente desde o início da vida do grupo, apesar de ter sido o primeiro tema gravado em maqueta, o primeiro a passar na rádio e o primeiro que tocaram ao vivo. “Faz todo o sentido apresentá-lo neste contexto de comemoração dos 30 anos”, reflecte Nuno. “É um tema que surgiu na primeira improvisação que fizemos, eu, o Pedro D’ Orey e o Nuno Canavarro. E a primeira palavra do tema é, nem mais nem menos, que Mler Ife Dada. A origem do nome é essa. Depois nunca mais o tocámos por uma questão técnica: tinha uma sequência gravada e não tínhamos sequenciador.”
Para além da interpretação de canções como Zuvi zeva novi, L’amour va bien, merci, Alfama, Erro de cálculo, Valete (de copas) ou À sombra da pirâmide, haverá também uma cenografia visual, para a qual contribuíram o arquitecto Sérgio Rebelo ou a designer Rita Filipe. Será uma ocasião única, que esperam repetir nos próximos tempos, “mas não muitas vezes”, diz Nuno Rebelo. Pelo menos é esse o desejo.
“A nossa vontade é fazer alguns bons concertos, em boas condições, com todos estes músicos”, afirma, até porque ambos estão convencidos que esta sexta-feira vai ser em grande. “Estou com muita expectativa. Deixei a minha vida extramusical para me concentrar nisto e acho que vai ser fantástico”, diz Anabela Duarte. Nuno Rebelo é mais taxativo: “Vai ser o melhor concerto de sempre dos Mler Ife Dada!”