Bélgica vota para alargar direito à eutanásia aos menores de idade
Uma larga maioria de 75% dos belgas apoia a emenda à lei.
A iniciativa legislativa provocou um intenso debate no país, com os partidos, a Igreja Católica, profissionais da saúde, organizações e associações de pais, juristas e editorialistas a intervir. As sondagens demonstram que a larga maioria dos belgas aprova a legalização da eutanásia para as crianças e adolescentes, mediante certas salvaguardas: 75% manifestaram-se a favor da aprovação do projecto de lei, que já foi votado em Dezembro no Senado e aprovado com 50 votos a favor, 17 contra e quatro abstenções. Mesmo assim, uma forte oposição organizou-se no país para tentar evitar que a lei fosse alterada.
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A iniciativa legislativa provocou um intenso debate no país, com os partidos, a Igreja Católica, profissionais da saúde, organizações e associações de pais, juristas e editorialistas a intervir. As sondagens demonstram que a larga maioria dos belgas aprova a legalização da eutanásia para as crianças e adolescentes, mediante certas salvaguardas: 75% manifestaram-se a favor da aprovação do projecto de lei, que já foi votado em Dezembro no Senado e aprovado com 50 votos a favor, 17 contra e quatro abstenções. Mesmo assim, uma forte oposição organizou-se no país para tentar evitar que a lei fosse alterada.
“Estaremos a abrir uma porta que depois ninguém poderá voltar a fechar”, alertou o arcebispo de Bruxelas e presidente da Conferência Episcopal da Bélgica, André-Joseph Léonard, em declarações à Associated Press. “Os riscos são demasiado graves em termos das consequências para a sociedade a longo prazo. Temos de reflectir sobre o significado que atribuímos à vida, à morte e à liberdade dos seres humanos”, considerou, uma posição que mereceu o eco dos dirigentes religiosos muçulmanos e judeus do país.
Uma lei contra o sofrimento
O autor da proposta de emenda legislativa, o senador socialista Philippe Mahoux, reconhece que existe um aspecto “chocante” na matéria em análise, mas argumenta que “é a doença e a morte de crianças que é escandalosa, não a lei da eutanásia”. Para o senador, a distinção entre o “sofrimento insuportável” de crianças e adultos é injusta: “O conceito fundamental [da lei] é o sofrimento, e o que a legislação propõe e oferece é uma resposta humanista para os casos extremos em que a dor é insuportável”.
A lei da eutanásia da Bélgica, que remonta a 2002, restringe essa prática aos maiores de idade, precisando que, no caso dos doentes com menos de 18 anos, a única opção é “deixar a natureza seguir o seu caminho”. A emenda proposta acaba com as limitações etárias, e reforça alguns dos condicionalismos para que o pedido para o fim da vida possa ser considerado. Concretamente, a lei estabelece que só é possível nos casos de doença terminal, depois de terem sido tentados todos os tratamentos médicos disponíveis, quando o paciente se encontra na fase final da doença, em sofrimento físico insuportável e para o qual já não exista uma terapêutica capaz de aliviar a dor.
No caso dos menores de idade, além do consentimento parental e do acordo da equipa médica responsável pelo tratamento, será exigido um atestado que comprove que o doente está consciente, tem capacidade de discernimento e é capaz de formular autonomamente a sua decisão. Também será obrigatória uma sessão de aconselhamento com um médico antes do início do processo.
Uma carta aberta, assinada por 160 pediatras, foi posta a circular na véspera do debate na câmara baixa do Parlamento – onde decorreram vigílias e outras manifestações contra a autorização da eutanásia de crianças – com um pedido para que a votação fosse adiada. Os médicos dizem que a evolução da ciência moderna já permite responder de forma compassiva ao sofrimento de crianças com doenças terminais, disponibilizando várias soluções para “atenuar a dor”, nomeadamente a sedação paliativa. E sublinham que não existe consenso quanto à objectividade dos diagnósticos relativos à capacidade de discernimento das crianças e à sua compreensão do conceito da eutanásia, pelo que a possibilidade de que sejam influenciadas não pode ser excluída.
Derradeira possibilidade
Em Dezembro, um outro colectivo de médicos pediatras tinha subscrito uma petição entregue aos legisladores, apelando à aprovação da lei (que tinha já sido avaliada pelo Comité de Justiça e Assuntos Sociais do Parlamento). “Porquê privar os menores desta derradeira possibilidade? A experiência demonstra que, nos casos de doenças terminais e morte iminente, os menores desenvolvem rapidamente uma grande maturidade, a ponto de serem capazes de reflectir e expressar as suas escolhas e decisões de forma mais capaz do que adultos saudáveis”, dizia o documento.
O pediatra Gerlant Van Berlaer, que se tornou uma espécie de porta-voz dos apoiantes da nova legislação, sublinha que os sujeitos da proposta são “indivíduos que estão no fim da sua vida. São crianças ou adolescentes que não têm nem meses nem anos pela frente, a sua vida está prestes a terminar de qualquer maneira”.
Como director clínico da unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital Universitário de Bruxelas, Van Berlaer diz que os apelos dos menores para “um fim de vida digno e sem sofrimento” são muito frequentes (os legisladores estimam que, se a lei for aprovada, sejam concedidas dez a 15 autorizações de eutanásia de adolescentes por ano). “Este nunca deixará de ser um assunto extremamente difícil e delicado, mas quando um doente, mesmo se menor de idade, nos coloca esta questão, não podemos deixar de o ouvir”, considera.
“Nenhuma criança quer morrer. O que elas querem é deixar de sofrer, ou que os seus pais deixem de sofrer. Isso não é a mesma coisa”, escreveu a liberal Marie-Christine Marghen num texto para o jornal La Libre Belgique, que manifestou a sua oposição à proposta legislativa. Pelo seu lado, o diário Le Soir fez campanha a favor da emenda, argumentando que “a melhor garantia contra abusos e más práticas é consagrar os critérios para a eutanásia na lei”.
Fumar não, morrer sim
Numa entrevista com a rádio pública norte-americana NPR, Els Van Hoof, uma senadora do Partido Democrata-Cristão Flamengo, assinalava a incoerência dos legisladores, que votaram restrições etárias por exemplo para o consumo de álcool ou o direito ao voto. “Na Bélgica, os menores não podem beber nem fumar até aos 16 anos. Não podem votar ou casar antes dos 18 anos. Não podem ser condenados porque são considerados incompetentes, e agora vão decidir sobre questões de vida ou de morte?”, questionou.
O líder do grupo centrista francófono, Christian Brotcorne, alega que a proposta de emenda é ambígua e está mal escrita, deixando várias pontas soltas passíveis de criar um “quadro de judicialização de uma situação que, já de si, é muito penosa, por exemplo se os progenitores não estiverem de acordo entre si sobre o pedido expresso pelo menor”. Os manifestantes que pediram ao Parlamento para adiar a votação, também disseram que os deputados deviam resolver primeiro as “deficiências” e lacunas da legislação da eutanásia para adultos, antes de alargar esse direito aos menores de idade.
Como sucedeu no Senado, a proposta de emenda deverá ser aprovada com os votos favoráveis das bancadas socialista, liberal e ecologista, e os votos contrários dos democratas-cristãos e da extrema-direita. A Bélgica é um dos três países europeus onde a eutanásia é legal – os outros são o Luxemburgo e a Holanda, onde essa prática é possível a partir dos 12 anos de idade. Na Suíça, é permitida a morte medicamente assistida, mas a eutanásia é ilegal.
Em 2012, foram autorizados 1432 pedidos de eutanásia, que representaram 2% do total de óbitos na Bélgica.