Governo está a ficar refém do seu próprio sucesso
Se Passos Coelho apostar numa "saída limpa" com objectivos meramente eleitoralistas, arrisca-se a repetir a proeza de José Sócrates.
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Há três razões principais que levam o país a fazer estas emissões pontuais, como aquela que fez ontem. A
primeira é acautelar o financiamento para este ano para reembolsar dívida contraída no passado e pagar o défice deste ano. Isto porque os cheques que ainda faltam receber da troika já não chegam para pagar todas as despesas deste ano. A segunda, e seguindo o exemplo da Irlanda, é ir construindo uma almofada de liquidez, para precaver contra qualquer turbulência nos mercados e poder ainda ambicionar ter uma "saída limpa" do resgate, se os juros mantiverem a trajectória de descendente. E a terceira é cumprir os critérios do BCE para que o país possa ser elegível para ser ajudado pelo Banco Central caso, no final do programa da troika, venha a optar por um programa cautelar.
Claro está que, à medida que o país for conseguindo fazer vendas com sucesso, como aconteceu ontem, o Governo vai ficando cada vez mais refém do seu próprio sucesso. Isto é, vão ser cada vez mais as vozes a reclamar uma "saída à irlandesa" do programa de resgate. E com o aproximar das eleições europeias, mais vozes se juntarão ao coro. E não é só na oposição. Dentro da própria coligação já se começam a ouvir vozes a exigir uma "saída limpa", e ontem até um banqueiro (António Vieira Monteiro, do Totta) veio dizer que "Portugal pode não precisar de cautelar".
Mas antes de reclamarmos uma saída mais limpa ou menos higiénica, é preciso puxar pela memória. O que está a acontecer este ano pode ser tirado a papel químico do que aconteceu no ano passado, em que Portugal também tentou, sem sucesso, um regresso normal aos mercados. Os dois anos começam com uma operação de troca de dívida. Depois, em Janeiro de 2013 fizemos uma emissão a cinco anos com um juro de 4,891% (este ano fizemos uma venda também em Janeiro, também a cinco anos, e com um juro idêntico, de 4,657%). Em Maio de 2013 fizemos outra a dez anos, com juros de 5,669% (este ano fizemos uma em Fevereiro, também a dez anos, e com um juro idêntico, de 5,112%). E depois, de sucesso em sucesso, fomos caminhando até à demissão irrevogável de Portas. A "saída limpa" foi pelo cano abaixo e os juros dispararam. Podia não ter sido a crise política. Podia ter sido outra coisa qualquer: umas eleições antecipadas em Itália, uma turbulência nos emergentes, um default na Grécia ou simplesmente Mario Draghi ter acordado maldisposto e aumentado os juros.
O problema é que Portugal continua na linha da frente dos periféricos e, qualquer vento a desfavor na Europa, seremos os primeiros a abanar. E vender dívida a 5% não é propriamente barato. Basta pensar que estamos a pagar à troika juros de 3,5% e que o nosso custo de financiamento histórico (a dez anos) ronda os 4%. E basta ver que a Irlanda pagou apenas 4,1% na última emissão que fez a dez anos. E basta olhar para as contas da Comissão Europeia que diz que, mesmo com um crescimento nominal do PIB entre 3,5% e 4% e com um saldo primário estrutural positivo a variar entre 2,6% e 3% do PIB, a taxa de juro de que precisaríamos para sustentar a dívida seria de 4,5%.
António José Seguro tem razão quando diz que a taxa a que estamos a vender dívida ainda “é insuportável para as contas públicas”. Tal como tem razão quando não diz que a taxa é bastante mais simpática do que aquela que José Sócrates deixou quando o país esteve à beira da bancarrota e ficou sem acesso aos mercados. Se Passos Coelho apostar numa "saída limpa" com objectivos meramente eleitoralistas, arrisca-se a repetir a proeza de José Sócrates.