As crianças já absorveram as regras para uma Internet mais segura, mas isso pode ser um problema
Doutoramento de investigadora da Universidade do Minho debruça-se sobre os usos que as crianças fazem das tecnologias e mostra que estas são hoje um factor central das suas vidas.
“Já todos sabem que quem está a falar com eles do outro lado da rede pode não ser quem diz ser e pode ser arriscado um encontro pessoal com essa pessoa”, conta Ana Francisca Monteiro. A pornografia também só vem à baila como “curiosidade”, especialmente por parte dos rapazes, mas sempre num registo muito contido. “O que eles acham é que só se mete nestes problemas quem quer”, afirma. E isto é fruto de um discurso que está muito inculcado entre esta população.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Já todos sabem que quem está a falar com eles do outro lado da rede pode não ser quem diz ser e pode ser arriscado um encontro pessoal com essa pessoa”, conta Ana Francisca Monteiro. A pornografia também só vem à baila como “curiosidade”, especialmente por parte dos rapazes, mas sempre num registo muito contido. “O que eles acham é que só se mete nestes problemas quem quer”, afirma. E isto é fruto de um discurso que está muito inculcado entre esta população.
A investigadora nota uma evolução neste campo nos últimos anos. Quando há cerca de cinco anos começou o trabalho de campo que resultou na tese de doutoramento em Estudos da Criança defendida no mês passado na Universidade do Minho, “pouco se falava do assunto”. Entretanto, tem havido acções de sensibilização, como a Semana da Internet Segura que começa esta segunda-feira (ver caixa), que tornaram este discurso muito presente entre os adultos, mas também entre as crianças.
“Há um padrão de comportamento, dentro do qual ninguém quer cair e acabam por recusar essas práticas”, diz a autora. E isso leva a uma certa “estigmatização” daqueles que têm comportamentos considerados arriscados por parte da maioria das crianças. Só que este resultado aparentemente positivo, “pode ser contraproducente”. O forte reconhecimento das regras para uma Internet mais segura parece contribuir para que muitas crianças escondam comportamentos perigosos: “Não vão deixar sequer que haja sobre eles a suspeita de que estão a falar com alguém que possa ser estranho. Há uma crítica tão grande, que ninguém quer ser associado a esse papel”.
Por isso, há outros problemas e riscos da utilização das tecnologias por parte das crianças que, como estão fora desse padrão, não são debatidos, nem sequer reconhecidos. Por exemplo, as crianças disponibilizam com relativa facilidade os seus números de telemóvel em suportes digitais – para se inscreverem em jogos online por exemplo – e é “muito comum” o relato de utilizadores que ficam sem saldo no telemóvel sem explicação aparente.
Outro comportamento pouco reconhecido é o da adição. As crianças “raramente desligam” do seu ambiente virtual e mesmo na escola “passam o tempo a falar dos jogos que fazem na internet”, explana Ana Francisca Monteiro. “Alguns fazem apostas no fim das aulas para ver quem é o primeiro a chegar a casa para ligar o computador”, ilustra. Mas todos recusam a ideia de serem viciados nas tecnologias. O problema só começa a ser visto como real a partir do momento em que estas crianças começam a ter más notas na escola, associando os maus resultados ao tempo “excessivo” passado online.
Estudos anteriores já tinham demonstrado que os pais portugueses não fazem um acompanhamento tão próximo do uso da internet por parte dos seus filhos como noutros países europeus, porque têm mais dificuldades no domínio da tecnologia. “Isso faz com que as crianças sejam muito mais independentes”, explica Ana Francisca Monteiro. O que as famílias fazem, sobretudo, é controlar o tempo que os filhos passam em frente ao computador, explica, mas não tanto os conteúdos consumidos.
Isso também explica que a investigadora tenha encontrado discursos divergentes nestas crianças quando se dirigem às famílias ou aos amigos. “As famílias parecem valorizar um distanciamento face às tecnologias”, por isso as crianças tendem a desvalorizar a importância que a tecnologia tem nas suas vidas quando conversam com os pais. Pelo contrário, juntos dos amigos das mesmas idades, “às vezes torna-se difícil justificar por que não estiveram online”.
Os pais não conseguem prever o que os filhos fazem, porque na sua infância estes não eram dispositivos à sua disposição. “Os pais sentem-se inseguros relativamente ao que os miúdos estão a fazer”, diz a autora. Este trabalho tenta, por isso, criar um ponto de ligação entre pais e crianças no que toca ao uso das tecnologias que são um ponto de “tensões e conflitos” nas famílias.
“«Tem é de ser de mim»: Novas tecnologias, riscos e oportunidades na perspectiva das crianças”, a tese aprovada no mês passado, é o resultado do trabalho de campo com crianças e pré-adolescentes dos 9 aos 14 anos. O estudo é centrado nas crianças e pretendeu entender a forma como elas usam a Internet no dia-a-dia. “Para acompanhar com mais eficácia é necessário compreender. Até porque o uso é muito autónomo e independente”, defende Ana Francisca Monteiro.
Hoje, a Internet é algo “muito importante no grupo de amigos” e que “estrutura as relações”, aponta a investigadora. Se, em idade mais jovens, a Internet é um passatempo, à medida que vão envelhecendo, começa a haver um compromisso maior. A forma como eles se relacionam e as suas amizades são construídas e negociadas a partir do que eles fazem na Internet, concluiu.