Colocaram o meu sucessor numa posição que não desejo a ninguém
D. Januário Torgal Ferreira, ex-bispo das Forças Armadas é mais crítico com este Governo do que com os anteriores porque é o que mais o “escandalizou” até agora. Acusa o executivo de tratar os militares como “protagonistas da violência e, tal como os padres, de uma certa inutilidade”
Diz-se persuadido de que “não há culpa” no executivo, que alertou a Nunciatura sobre a interpretação do estatuto dos capelães-militares, mas que a diplomacia é feita de “silêncio e escondimento”. “É um processo que não fica bem nem à sociedade eclesiástica, nem à sociedade civil.”
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Diz-se persuadido de que “não há culpa” no executivo, que alertou a Nunciatura sobre a interpretação do estatuto dos capelães-militares, mas que a diplomacia é feita de “silêncio e escondimento”. “É um processo que não fica bem nem à sociedade eclesiástica, nem à sociedade civil.”
Disse que o que o inquieta “é a incompetência e a insolência deste Governo”. Tendo sido sempre voz crítica, porque é mais contundente com este executivo do que com os anteriores?
Não é que tenha má vontade contra alguém. Só tenho de realizar uma missão de bem e estas tomadas de posição são de defesa de quem não se pode defender. Fui nomeado bispo em 1989 e, antes de bispo, comecei a compreender que as pessoas raramente nos procuram. Portanto, eu não tinha caixa-de-ressonância. As pessoas começam a procurar alguém pelas funções de maior responsabilidade. Tenho que dizer que, pelo conjunto de práticas, o Governo que, na minha condição de cidadão e perante as minhas convicções humanistas, mais me escandalizou foi este. Eu não posso entender a incompetência, parece má vontade, quase blasfémia.
Acha que este Governo é mais incompetente que os anteriores?
No seu bloco tenta ter um discurso de competência, mas falta ali o espírito de equipa. Noto a inconsistência. Têm gente de muita capacidade…
…Quem?
Acho que o senhor ministro da Saúde quer ter e manifesta capacidade. Ainda agora com os problemas de gripes e das urgências é essa a minha impressão. A minha impressão não é para humilhar ninguém nem devo ter atitude política. Agora sempre senti que devia ter atitudes de humanidade num mundo desumano. O mundo português que estamos a viver é profundamente desumano. Claro que fiz críticas. Se estiver enganado que me corrijam. Eu não tenho exército, partido, conluio, sociedade secreta. Cheguei a receber de um primeiro-ministro anterior de grande prestígio um cartão no qual escrevia que não tinha razão.
Era António Guterres?
Era. Eu aceito com humildade. Disse, depois, no Governo socrático uma frase que tinha sido utilizada muito pelo Eduardo Prado Coelho, “estamos quase no fundo da lata”. Escrevi um artigo a dizer “que nós estamos de facto no fim do abismo”.
Sente-se sozinho nessa missão em relação a outros bispos?
Não me sinto sozinho nas minhas convicções. Despertei para a sensibilidade da cidadania a partir do exílio de D. António Ferreira Gomes [bispo do Porto]. Tive duas escolas na formação da minha sensibilidade política: a JUC [Juventude Universitária Católica] e depois D. António Ferreira Gomes.
No tempo de D. António Ferreira Gomes não existiam duas igrejas, uma ultrajada pela ditadura, outra com ela conivente?
D. António disse que a Igreja estava profundamente comprometida, e estava, visceralmente comprometida com o poder político e com a ditadura. Onde é que encontrava um escape de justiça? Na missa. Na missa expressamos a nossa comunhão com o Papa, com o nosso bispo. Quando ele estava no exílio, era a altura do escape, do testemunho. Dizia “com o nosso bispo António”. Um dia, um senhor aconselhou-me: “Veja lá, não diga na missa António.” Então perguntei: “Eu não devo estar com o doente, com o preso, com o perseguido, devo estar calado? Ao menos perante o Senhor Jesus Cristo, que tenho ali no altar, não posso dizer ‘salva este homem’?”. E ele respondeu: “Não, seja prudente.” Este é um tipo de linguagem beata, que ainda hoje tanta gente da igreja utiliza, a sensatez, a prudência.
Foram-lhe dizendo isso ao longo do tempo?
Tenho que aceitar. Respondo sempre com o Evangelho de São João: se falei mal, digam-me em quê. Mas as pessoas não falam de frente. Mesmo as cartas são anónimas. Tenho uma colecção de cartas anónimas, diabólicas.
Desde quando?
Desde sempre.
Porque as guarda?
À espera de descobrir os seus autores. Não, de forma alguma, para os maltratar, mas para ter um dia um diálogo.
Quantas cartas dessas tem?
erão para aí umas 15, 20. Ataques nos jornais, uma mensagem no telemóvel. Mas tenho 200 cartas a manifestarem que estão ao meu lado.
Foi condecorado pelo anterior Chefe do Estado Maior-do-Exército, general Pinto Ramalho. Teve uma experiência de vários anos nas Forças Armadas, compreende o mal-estar dos militares em relação às reformas?
Compreendo. Expressei-me não só relativamente a este Governo. Para os políticos, os militares são os protagonistas da violência e, por outro lado, como os padres, de uma certa inutilidade. Não quero dizer que não deve haver uma reforma do Estado, não só dos militares mas de todas as classes. Mas isso deve ser feito de forma inteligente.
Com estes cortes estão em causa as chamadas políticas de soberania?
Só os militares deverão responder. As missões internacionais não estão em causa. Acho que é muito mais perigosa a situação de segurança para nós. Tenho grande estima pelo ministro da Administração Interna, falei-lhe das necessidades das forças de segurança.
O serviço militar devia voltar a ser obrigatório?
Pelos motivos que muitas vezes apresentam, acho que não. Falam de educar, de dar um certo tipo de cidadania, de dar disciplina, isso compete ao Ministério da Educação. Não me repugna que haja voluntários, que haja uma preparação do ponto de vista humano, com critérios éticos, com exigência. No momento em que, felizmente, sopram ventos de paz, as razões de cultura, disciplina e valor, competem, com certeza, a outro departamento. Nós não teremos paz sem justiça, por isso os militares devem ser os maiores defensores da justiça, para serem coerentes com o trabalho de paz.
Ser capelão militar foi, para si, uma missão confortável?
Foi. Mas quando me puseram o problema, disse que não. O Núncio disse-me que uma das razões porque eu era escolhido era por ser livre, por dizer o que pensava, que era independente no meio militar. Que eu não sabia nada e que assim iria saber muito mais, o que de facto foi verdade. Gostei imenso da sociedade militar, pelos valores que eu espero que nunca desapareçam: a seriedade, a ordem, a recta disciplina, a amizade, a organização, a lealdade, a fraternidade, a generosidade, o cumprir a missão.
Porque é preciso ter uma patente para ser bispo dos militares?
Se me perguntassem, pelas minhas convicções, nunca daria uma farda ou uma graduação. O padre é coronel ou tenente-coronel, porque é que não é sargento, ou cabo, ou soldado? Não há padres operários? Nunca ninguém me chamou major-general, mas senhor bispo.
Ou seja, é mais por vontade dos próprios militares, do que dos políticos?
É. Foi-me dito pelo secretário de Estado do anterior Governo que era parecer de quem estava a elaborar novos estatutos, que o bispo não fizesse parte da estrutura jurídico-militar. Ripostei, dizendo que não aceitava.
Porquê?
Não encontrei nenhum impedimento. Não compreendi as razões e fiquei muito escandalizado. Aquilo, para mim, teve um sabor ideológico.
Para um Governo, é mais fácil ter um capelão bispo ou padre?
É igual. A autoridade do bispo é amar, é ser próximo, ajudar, servir. Nosso Senhor disse as coisas mais terríveis aos poderes da época, aos poderes religiosos.
Ou seja, está a dizer que o actual Governo concorda com o anterior?
Estou convencido que não há má vontade deste Governo. Há ignorância e incompetência de alguns peritos e assessores jurídicos que enxameiam os nossos ministérios ou estão cá fora. Falei com juristas bem conhecidos e disseram-me que era água corrente, que o bispo podia entrar. Não vejo motivo para embargo. A tutela não pode embargar, como acontecia nos tempos da ditadura, mercê da Concordata, quando só se podia ir a bispo se o poder civil permitisse.
Sendo assim, qual é a razão do problema?
É um processo que não fica bem nem à sociedade eclesiástica, nem à sociedade civil. Da parte civil, do Governo, estou persuadido que não há culpa.
Depois da sua conduta como capelão-chefe admite que tenha havido pressões na relação Estado a Estado, ou seja, entre Portugal e o Vaticano?
Nunca ninguém me chamou à ordem. Se eu lutei pela justiça e pela paz, com toda a simplicidade…
Considera que a sua acção como bispo das Forças Armadas é razão de todo este imbróglio?
Francamente não. Senão, aqueles que me condecoraram a esta hora estão profundamente envergonhados.
Então, porque é que isto acontece?
Tenho uma certa vergonha, porque me dizem que é por uma razão de Direito. Não sou formado em Direito, mas sei ler um texto jurídico. Falei com gente de Direito e com eles quis aprender. Foram os primeiros a dizer-me que tinha razão.
A Nunciatura não devia ter tomado uma posição mais firme?
A Nunciatura é um trabalho invisível, um trabalho de diplomacia. E uma das regras da diplomacia é o silêncio e o escondimento. Eu seria um mau diplomata.
A posição discreta do Vaticano não o coloca a si e ao seu sucessor numa posição incómoda?
Ao meu sucessor, que tem a minha atitude solidária desde o primeiro instante, colocam-no numa posição que eu não desejo a ninguém. Por isso mesmo, e anteriormente a tudo isto, informei em sede própria, a Nunciatura, para estudarem, ouvirem e recolherem opiniões nacionais e internacionais.
Quantos capelães tinha nas Forças Armadas?
O número era de 48, mais alguns párocos.
Isso dava-lhe um poder como capelão chefe importante na estrutura das Forças Armadas?
O espírito tem uma força nesta sociedade. Era Vaclav Havel que dizia que “esta Europa necessita de espiritualidade”. Neste mundo, precisamos, de facto, de espírito.
Os sinais de Roma respondem a essa necessidade?
Muitas pessoas tentam ter quase uma missão profética no sentido da adivinhação e não adivinham. Não se identifiquem certos problemas como os mais necessários na Igreja. Nunca haverá um casamento católico entre homossexuais. Que haverá um entendimento de tolerância e de respeitabilidade pelas pessoas com certeza, terá de existir. Tenho esperança que no chamado planeamento familiar não haja a divinização dos métodos naturais, que eu respeito. Não sei se não haverá um dia uma alteração relativamente ao problema do divórcio e a participação na eucaristia. Muitas pessoas já foram martirizadas, tiveram de aguentar uma primeira relação…
Há sinais?
São meras hipóteses. Mas mesmo que não seja resolvido, há aqui pesos da história que, felizmente, é preciso aplanar, como dizia São João Baptista transformar a montanha num vale. O Papa perante o Mundo apresentou-se sem quaisquer complexos. Ouvir que a dignidade de cada pessoa humana e o bem-comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica ou dizer que incomoda que se fale de ética, de solidariedade mundial, da distribuição dos bens, da defesa dos postos de trabalho, da dignidade dos fracos, são coisas directas e solidárias. Muitas pessoas estão convencidas que isto é uma espécie de moda, mas nunca mais este Papa será esquecido. E não venham com leituras ideológicas.
Como responde às pessoas que dizem que este Papa não traz nada de novo?
A maior revolução da parte deste Papa é mostrar que é uma pessoa comum. Ensina-nos socialmente a não ter vergonha de falar. Não é muito carisma dos homens da Igreja terem um certo à vontade social, há uma certa forma de vergonha. O Papa traz uma forma de normalidade humana à Igreja.
Qual é o maior risco que ele tem de enfrentar?
O maior risco são os integristas, de gente que tem o estômago cheio dentro e fora da Igreja. O Papa tem uma força de notoriedade social e política e pode ser travão para ascensões sociais. Mas dentro da Igreja há muita gente que tem a infalibilidade, a cabeça cheia de teorias. Eu não quero uma Igreja fidalga nem secularista. Mas gosto muito de uma Igreja que saiba conviver com os laicos, com o mundo profano. A dignidade humana da pessoa é a dignidade de um filho de Deus, de um cidadão, de um igual.
Quando fala dos perigos que o Papa enfrenta e de quem tem a barriga cheia, fala da Cúria?
Sim. Nas pessoas da Cúria — com o devido respeito porque há lá santos —, há ascensões de poder temporal. Como posso entender que se dêem determinados títulos para premiar a vida de um padre? Porque não lhe damos, por exemplo, um bom livro, um filme magnífico, uma colecção, uma coisa simples? Temos de ser simples. O Papa pôs isto tudo na ordem.
Como encara o relatório da ONU a exigir que todos os padres pedófilos fossem levados à justiça?
A grande tragédia não é só serem pedófilos e, por isso mesmo, terem de ir à justiça, porque é uma perversidade. É eles terem feito vítimas que ficam com cicatrizes psicológicas para toda a vida. Tenho o dever de defesa das vítimas e tenho de recompor a justiça. Do ponto de vista penal faz sentido dar uma quantia, mas não sei se há dinheiro que pague a desonra psicológica que alguém transporta para toda a vida. E como, do ponto de vista psicossocial, posso ajudar um pedófilo?
Como se reabilita um sacerdote pedófilo?
Não sei. Em casos deste género, segundo li há anos, há uma perversidade inata que não tem cura. Pode ser aligeirada.
Nesta questão dos padres pedófilos o problema não é apenas o individual, o de serem pedófilos, mas da Igreja se ter oposto durante muito tempo à revelação dos crimes.
Tem toda a razão. Os próprios bispos, o que não queriam é que a Igreja parecesse uma fábrica de perversão, mas esqueceram as vítimas. Não quero desculpabilizar porque acho que eles não têm desculpa, mas não acredito de forma alguma que quisessem fechar os olhos às vítimas que foram assassinadas psicologicamente. Estes tipos se não tiverem uma ajuda psicológica são terroristas numa sociedade de perversão.
Os padres pedófilos que a Igreja expulsou do seu seio, e foram 400, são uns potenciais terroristas que andam à solta?
Há pedófilos que são presos e quando saem a primeira coisa que fazem é voltar a violar uma criança. Neste problema da pedofilia há muito pouca gente que sabe e que domina.
Há uma afluência aos seminários. A nova geração de sacerdotes em Portugal é filha das presentes dificuldades económicas ou nasceu, apenas, da vocação?
É uma renovação e fruto do espírito: Deus precisa de nós. Acredito nisso. Tem havido uma promoção vocacional séria com um problema de base muito sério. O celibato pode ser uma honra, mas pode ser uma dificuldade e não sei se vale a pena ter feito do celibato uma bandeira. Digo isto com todo o respeito pessoal e institucional — o celibato é uma fonte de liberdade, então se é de liberdade é uma fonte de serviço e dádiva.
Há hipóteses de o celibato acabar?
Não sei se será com o Papa Francisco. Haverá sempre celibatários na Igreja, mas não sei se o celibato terá muitos anos na estrutura da Igreja.
Será uma situação mista?
Sim.
Ao longo de toda a sua vida o celibato sempre foi uma liberdade?
Encarei sempre o celibato em liberdade. Ensinaram-me que nessa e noutras matérias é natural um tipo ter tentações e ter compromisso. Na vida há sempre sereias, é a naturalidade.