Ponte ciclável e pedonal sobre a Segunda Circular vai servir para quê?
A obra foi concebida só para ligar Telheiras aos edifícios em que a empresa que paga dois terços do custo tem a sua sede. Agora está a ser feita uma curta ciclovia que evita este destino único, mas que pouco adianta em termos da rede de ciclovias da cidade.
Tudo o que ela vai permitir nesse campo é duplicar, a sul da Segunda Circular e através de uma obra decidida a posteriori, uma ligação ciclável já existente entre Telheiras e o Estádio Universitário.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Tudo o que ela vai permitir nesse campo é duplicar, a sul da Segunda Circular e através de uma obra decidida a posteriori, uma ligação ciclável já existente entre Telheiras e o Estádio Universitário.
A obra está a condicionar o trânsito automóvel há mês e meio e vai custar à Câmara de Lisboa 465 mil euros — ficando os restantes 900 mil a cargo do grupo Galp. Para assegurar uma saída às bicicletas que atravessarão a ponte para sul, a autarquia está agora a fazer um troço de ciclovia que lhe custará 236 mil euros e ligará ao Estádio Universitário, replicando uma pista, quase paralela, construída há dois anos em Telheiras.
O PÚBLICO perguntou por escrito ao vereador José Sá Fernandes, na segunda-feira passada, se a Câmara possui algum estudo sobre a procura potencial da nova ponte, por peões e ciclistas, mas não obteve resposta. Nem a essa, nem a outras questões.
A criação da ponte laranja tem sido genericamente bem acolhida pelos utilizadores de bicicletas, embora haja quem tenha dúvidas sobre a sua utilidade, localização e prioridade. Ao nível político, a obra, nos termos em que foi negociada com a Galp, contou, em Março passado, com os votos contra de todos os vereadores da oposição (PSD, CDS e PCP).
Torres de Lisboa eram a meta
De acordo com os documentos divulgados pelos promotores, a ponte foi concebida, desde 2009, apenas para aproximar Telheiras das Torres de Lisboa, onde funciona a sede da Galp. Assinado em Maio daquele ano pelos presidentes do município e da Fundação Galp — sem ter sido objecto de votação na Câmara — o protocolo que está na sua origem diz expressamente que ela se destina a ligar a ciclovia de Telheiras às Torres de Lisboa, uma vez que estas são “um grande edifício empregador”.
Ambas as obras, a ciclovia e a ponte que a liga à sede da Galp, por cima da Segunda Circular, bem como a repavimentação da pista ciclável do Campo Grande, seriam suportadas pela Fundação Galp.
Mais tarde, em Setembro de 2011, quando o projecto foi apresentado publicamente, a nota de imprensa divulgada pela Galp continuava a dizer apenas que a ponte iria “completar a ligação entre a ciclovia de Telheiras e as Torres de Lisboa, onde se encontra a sede da Fundação Galp”. Nessa altura foi anunciado que o seu custo seria de 1,2 milhões de euros, nada se dizendo quanto à participação do município no investimento. Implícito ficou, e assim foi noticiado, que a Galp pagaria tudo. O presidente da Câmara, António Costa, também nada disse sobre o financiamento.
O que ficou também por esclarecer foi que alternativa restaria aos ciclistas que passassem a ponte — a não ser voltar para Telheiras, ou envolverem-se no trânsito automóvel.
O segredo do financiamento foi revelado em Março de 2013, quando a câmara aprovou um novo protocolo que revogou o de 2009 e diz que a obra custa, afinal, 1 milhão e 365 mil euros — 900 mil a cargo da Lisboagás (Galp) e 465 mil por conta do município. Nos considerandos refere-se que no Plano Director Municipal está prevista “uma rede de mobilidade suave (...) com especial destaque para os modos pedonal e ciclável”. O lugar que a ponte terá nessa rede é que continuou por esclarecer.
No início do mês passado, quando a Câmara e a Galp anunciaram o início da fase final da obras, surgiu finalmente uma explicação: este projecto “estabelece a ligação entre o Campo Grande, Benfica e o Estadio Universitário, numa extensão ciclável contínua de cerca de 9 km que contribui para alargar a malha da rede de ciclovias, promovendo assim a mobilidade sustentável na cidade”, lê-se num comunicado da Galp.
Para perceber esta afirmação é preciso ir ao local e consultar o mapa das ciclovias de Lisboa que a Câmara tem no seu site. Na realidade, “a ligação entre o Campo Grande, Benfica e o Estado Universitário” já existe desde que em 2011 a Fundação Galp concluiu a ciclovia de Telheiras. A pista segue pela Rua Fernando Namora e transpõe a Segunda Circular, através de um ponte pedonal e ciclável, perto da Escola Alemã, entrando depois no Estádio Universitário.
O que agora se vê no terreno é que há um pedaço de ciclovia em construção, desde as Torres de Lisboa ao estádio, ao longo da Rua Tomás da Fonseca, que replicará o percurso existente do outro lado da Segunda Circular, ainda que com menos curvas e atravessamentos. O que a nova ponte vai assim permitir é unir a ciclovia de Telheiras a este novo troço de pista, sendo para isso necessário construir 200 metros de pista que a liguem à Rua Fernando Namora e que ainda não estão em obra.
O troço da Tomás da Fonseca foi projectado no Verão de 2012 e aprovado por Sá Fernandes com um custo de 236 mil euros. Até então, o traçado das ciclovias previstas não incluia esse percurso de 727 metros.
Certezas e dúvidas
Entusiasta da nova ponte mostra-se José Manuel Caetano, presidente da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta. “É uma infra-estrutura para pessoas, imprescindível para quem anda a pé, na medida em que reduz as distâncias entre as duas margens da Segunda Circular”, afirma. “Se a Câmara fez um bom ou um mau negócio com a Galp isso é outra coisa”, comenta, sublinhando que acha a obra “uma mais valia para a cidade”.
Com uma perspectiva distinta, João Barreto, professor do Instituto Superior Técnico e membro da Mubi -Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta, tem reservas. “Qualquer passagem sobre a Segunda Circular é sempre vantajosa”, observa. Mas questiona: “Há aqui um custo para o erário público que me deixa dúvidas sobre se esse investimento é prioritário para a generalização dos modos suaves, [até porque] há muitas intervenções simples e baratas que são muito importantes e falta fazer em Lisboa”. João Barreto diz igualmente que tem “muitas dúvidas em relação ao lugar desta ponte numa estratégia global de ciclovias”.
A este respeito, Nunes da Silva, anterior vereador da mobilidade, defende a obra com um dado que não consta em nenhum documento público, nem sequer a nível de estudos. “A ponte vai permitir fechar a malha das ciclovias com uma ligação a Sete Rios pela Estrada da Luz, que está em projecto.” O actual deputado municipal não hesita, porém, em afirmar que “não era necessário fazer uma ponte com aquela dimensão e aqueles custos.” E acrescenta: “Face ao que é necessário fazer em matéria de pistas cicláveis acho que era preferível não gastar esse dinheiro num único elemento da rede e usá-lo no alargamento da rede”.
Do lado da oposição camarária, Carlos Moura, do PCP, considera “absurda” a prioridade dada a este investimento face às múltiplas situações urgentes que se vivem na cidade. “A ponte acaba por ser uma publicidade directa à companhia petrolífera, usando as suas cores em frente à sua sede, mas paga em parte pela Câmara”. Por parte do PSD, o ex-vereador Vítor Gonçalves diz também que o seu voto contra se prendeu, sobretudo, com o facto de a ponte “ser uma coisa promocional de uma empresa em que a Câmara põe meio milhão de euros”.
Sendo ainda desconhecida a data da sua inauguração, falta saber como é que os utilizadores, mormente os peões com mobilidade reduzida, vão reagir a algumas das características da obra, como a extensão de 400 metros, incluindo as rampas de acesso. Polémica poderá ser também a inclinação dessas rampas, que chega nalguns pontos aos 7,6%, só possível graças a um regime de excepção que permite ultrapassar o máximo legal de 6%, sem ir além dos 8%.