85 Mirós
É certo que os nossos governantes poderiam ter um pouco mais de cuidado, se não por convicção, ao menos por esperteza, já que se trata de uma área cujo impacto social e mediático é infinitamente superior à sua dimensão orçamental, como se vê pelo presente caso ou pelo caso Crivelli. Mas não. Dá ideia que o pessoal que tomou conta de São Bento e do Terreiro do Paço só pensa através de folhas de Excel, e tudo o que não é número ou fórmula não consegue ser processado pelas suas cabecinhas.
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É certo que os nossos governantes poderiam ter um pouco mais de cuidado, se não por convicção, ao menos por esperteza, já que se trata de uma área cujo impacto social e mediático é infinitamente superior à sua dimensão orçamental, como se vê pelo presente caso ou pelo caso Crivelli. Mas não. Dá ideia que o pessoal que tomou conta de São Bento e do Terreiro do Paço só pensa através de folhas de Excel, e tudo o que não é número ou fórmula não consegue ser processado pelas suas cabecinhas.
Dito isto, se de um lado temos os insensíveis, do outro temos os irresponsáveis. Porque mal rodamos o pescoço do PSD para o PS, esbarramos com a Némesis rosa, para quem os números e as dívidas nunca são problema. Se em cada país existisse uma Gabriela Canavilhas, pura e simplesmente acabava o mercado de arte internacional: não haveria pintor de renome ou quadro de valor que não fosse classificado, proibido de ser vendido, impedido de ser exportado ou até – quem sabe? – nacionalizado, para glória das almas socialistas e boa educação do povo. Olha-se para a atitude do PS diante dos Mirós e vê-se Portugal – primeiro, impede-se a venda, e depois logo se vê como tapar o buraco dos 36 milhões. É a política socialista em todo o seu esplendor: de buraco em buraco até à cratera final.
Há quem se pergunte: mas, afinal, o que é que são 36 milhões diante dos quatro mil milhões de euros que o BPN já nos custou (e continua a custar)? De facto, estamos a falar de menos de 1% do maior escândalo financeiro da nossa história. Aliás, só este ano o Estado já aprovou empréstimos de mais 510 milhões à Parvalorem e à Parups, o que daria para 1204 Mirós. Não seria preferível, então, dedicar aos quadros umas quantas salas no renovado Museu do Chiado, como ontem propunha o editorial do PÚBLICO?
Parece-me uma ideia muito simpática, mas dentro do género aristocrata falido. Convém ter consciência de que a verba inscrita no Orçamento de 2014 para ser atribuída à Direcção-Geral do Património Cultural, que gere todos os museus e todos os monumentos de Portugal, é de 33,1 milhões de euros. Sim, o orçamento deste ano para todos os museus e monumentos portugueses é inferior ao preço da colecção que tanta gente acha que ficaria excelentemente pendurada em paredes nacionais, como se ela nos tivesse saído no Euromilhões.
Como escreveu Pedro Sousa Carvalho, “é preciso ver que o Estado, ao não alienar as obras, abdica de receber 36 milhões. E deixar de receber dinheiro é exactamente a mesma coisa que gastar dinheiro”. Este é o ponto central. Numa cultura portuguesa de desperdício, que mesmo após tudo o que se passou continua a ter dificuldades em perceber que o dinheiro do Estado é o nosso dinheiro, convém repetir esta frase muitas vezes, a ver se a fixamos: deixar de receber é o mesmo que gastar. Claro que quando se pergunta a um director de um museu se os Mirós deveriam ficar em Portugal, ele dirá sempre que que sim. Só que a pergunta deveria ser outra: se tivesse 36 milhões de euros à sua disposição, preferia gastá-los em 85 quadros do mesmo pintor ou daria algumas oportunidades a outros artistas? E se assim fosse, estou capaz de apostar que a paixão por Miró esmoreceria num ápice.