Festival de Berlim à sombra da arte roubada e do passado nazi
Filme de George Clooney dá o mote para uma edição onde a II Guerra Mundial atravessa a programação. Uma coincidência que reforça a dimensão engajada do certame alemão que começa nesta quinta-feira em Berlim
Poucos dias antes deste anúncio, a revista alemã Focus revelava como as autoridades alemãs haviam descoberto, no apartamento de Munique de Cornelius Gurlitt, filho de um negociante de arte, 1400 obras de arte moderna confiscadas sob Hitler – acervo que as autoridades haviam descoberto em 2011, mas que só agora se tornava conhecido do público.
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Poucos dias antes deste anúncio, a revista alemã Focus revelava como as autoridades alemãs haviam descoberto, no apartamento de Munique de Cornelius Gurlitt, filho de um negociante de arte, 1400 obras de arte moderna confiscadas sob Hitler – acervo que as autoridades haviam descoberto em 2011, mas que só agora se tornava conhecido do público.
É uma coincidência, claro. Quando Clooney escolheu adaptar o livro de Robert Edsel sobre os “Monuments Men” (porque o departamento militar a que pertenciam era designado por “serviço de Monumentos, Belas Artes e Arquivos”), não podia prever que a arte de que o III Reich se apropriara ao longo do seu avanço pela Europa estivesse no topo da actualidade quando o filme ficasse finalmente pronto. É, ainda assim, o tipo de coincidência à medida de Berlim, festival fundado no pós-guerra que durante duas décadas se desenrolou numa cidade dividida pela Guerra Fria e que mantém ainda hoje uma reputação de certame engajado.
Também por isso não é inocente que seja a Berlinale a receber, neste sábado, 8, a estreia europeia do filme (no dia a seguir à estreia americana – em Portugal, chegará no dia 20). Clooney é “amigo” do festival, onde mostrou a sua estreia na realização, Confissões de Uma Mente Perigosa, e onde tem sido presença regular, acompanhando, por exemplo, O Bom Alemão, a experiência noir de Steven Soderbergh ambientada na Berlim ocupada do pós-II Guerra Mundial.
Sobretudo, Os Caçadores de Tesouros parece “dar o mote” para uma edição onde o conflito de 1939-1945 e as sequelas do nazismo percorrem o programa. Para Dieter Kosslick, director do certame desde 2002, o filme de Clooney é ouro sobre azul: a presença de um filme sobre a arte roubada pelos nazis quando a descoberta feita no apartamento de Cornelius Gurlitt está fresca nas memórias instala o festival no coração da actualidade, com uma dose apreciável de star power (Matt Damon, Cate Blanchett, John Goodman, Bill Murray ou Jean Dujardin) essencial para a dimensão de passadeira vermelha de que a Berlinale não abdica. Que, ao longo da restante programação, a II Guerra seja tema recorrente não é deliberado; apenas a coincidência, segundo o director, de uma série de filmes que abordam o tema, ainda por cima em ano de centenário do atentado de Sarajevo que desencadeou a I Guerra Mundial.
Se quisermos – e Dieter Kosslick quer – a abertura da selecção oficial feita hoje com Grand Budapest Hotel pode funcionar como “aperitivo”. A mais recente féerie do americano Wes Anderson (Moonrise Kingdom), ambientada num hotel do império austro-húngaro nas primeiras décadas do século XX e alegadamente inspirada pelos escritos de Stefan Zweig, já evoca um pouco esse mal-estar europeu (embora, na verdade, Anderson sempre tenha colocado os seus filmes num limbo retro-vintage irreal).
Lendária obra muda
Mais relevante será a apresentação da estreia mundial do restauro de O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene (Berlinale Classics), lendária obra muda de 1920, fundadora do cinema expressionista alemão. O seu ambiente opressivo e onírico é, para muitos observadores, uma transcrição presciente do mal-estar subterrâneo do período da república de Weimar, o conturbado interregno democrático entre o final da I Guerra em 1918 e a ascensão de Hitler ao poder em 1933. O restauro foi realizado pela Fundação Friedrich Wilhelm Murnau em digital de elevada resolução a partir dos materiais de origem, com uma nova banda sonora semi-improvisada, composta para a ocasião e interpretada ao vivo, ao órgão, por John Zorn (o canal ARTE exibirá o filme a 12 de Fevereiro, três dias depois da passagem na Berlinale).
O cinema deste período é também o foco de uma exposição patente até Abril na Cinemateca Alemã, em pleno centro nevrálgico do festival na Potsdamer Platz. Sob o genérico Light and Shadow (Luz e Sombra), reúne fotografias de plateau tiradas em rodagens de filmes alemães do período de Weimar entre 1918 e 1933, durante o qual foi revelada toda uma geração de técnicos e cineastas que fugiram ao nazismo, cuja carreira ganharia novo fôlego fora da Alemanha e influenciou fortemente o cinema global durante as décadas que se seguiram.
É nas secções paralelas que se pode medir a dimensão histórica deste olhar para uma Alemanha que continua marcada pelo passado nazi. Volker Schlöndorff, um dos fundadores do “novo cinema alemão”, contemporâneo de Herzog, Wenders ou Fassbinder, mostra fora de concurso Diplomatie (Berlinale Special, estreia prevista para Portugal em Abril). Trata-se de uma adaptação da peça teatral de Cyril Gély sobre as negociações secretas para impedir que Paris fosse destruída pelos nazis aquando da sua libertação pelas tropas aliadas em 1944. Niels Arestrup e André Dussollier são os actores convocados para um filme que se inscreve no interesse que Schlöndorff sempre teve pelo lado sombrio da história alemã – basta lembrar O Tambor, o seu título mais célebre, ou a adaptação de O Ogre, de Michel Fournier. Em paralelo, recorda-se a sua versão do Baal de Bertolt Brecht (Berlinale Special), outra obra datada da república de Weimar, realizada em 1969 para a televisão alemã com um jovem Rainer Werner Fassbinder no papel principal.
Em co-produção israelo-alemã, The Decent Man, de Vanessa Lapa (Panorama Dokumente), reconstitui a vida de um dos mais temidos homens do regime nazi, Heinrich Himmler, chefe das SS, a partir de documentos, cartas e jornais privados – procurando, mais uma vez, reconciliar a inimaginável crueldade do regime com o facto de ela ter sido praticada por seres humanos iguais a nós.
Em paralelo, o festival mostra as imagens rodadas pelo exército britânico na libertação do campo de concentração de Bergen-Belsen em 1945 – as mesmas que Alfred Hitchcock foi convidado a montar num filme que acabaria por não ser completado, a pedido das autoridades aliadas. De um lado, mostra-se uma versão incompleta, work in progress, de Night Will Fall (Berlinale Special), documentário de André Singer que desenha a história destas imagens e da sua redescoberta; do outro, apresenta-se a nova montagem das imagens de Bergen-Belsen, reconstruída de acordo com as instruções de Hitchcock pelo Museu Imperial da Guerra de Londres, com o título enganadoramente burocrático de German Concentration Camps Factual Survey (Forum).
E a realizadora ucraniana Tamara Trempe mergulha na sua história familiar em My Mother, a War and Me (Panorama Dokumente), co-realizado por Johann Feindt, onde as cicatrizes da II Guerra são vistas por outro prisma. Trempe nasceu em plena guerra, filha de uma enfermeira de campanha e de um oficial russo, e nunca conheceu o pai (do qual a mãe sempre se recusou a falar), partindo no documentário em busca da história escondida da sua família. Uma das muitas histórias escondidas de um conflito que, mais de meio século depois, continua a assombrar a civilização ocidental e a levantar perguntas a que a arte não resiste a tentar responder.
Voltando à arte roubada pelos nazis: a nova ministra da Cultura alemã, Monika Grütters, anunciou entretanto ter dobrado a dotação orçamental para a pesquisa, identificação, recuperação e devolução aos legítimos possuidores das obras de arte confiscadas. Mais um pouco de luz lançado sobre um recanto negro da história mundial do último século – o acervo de Cornelius Gurlitt parece ter sido, apenas, a ponta de um icebergue que ainda vai dar muito que falar nas próximas semanas. A Berlinale volta a estar no centro do debate. É coincidência.