Mulher rodeada de um voo de pássaros na noite

Portugal é pobre, cada dia que passa sem entender Miró, sem entender nada, perdido nas suas “prioridades”

Foto
Joan Miró

A adolescência é um tempo de assombro, em que algumas descobertas, por mais banais que pareçam aos olhos comuns, crescem em nós como epifanias que fundam o mundo. Assim aconteceu quando entendi Miró.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A adolescência é um tempo de assombro, em que algumas descobertas, por mais banais que pareçam aos olhos comuns, crescem em nós como epifanias que fundam o mundo. Assim aconteceu quando entendi Miró.

Antes, a preguiça convidava-me a encontrar conforto no que escutava tantas vezes à minha volta: “é tão elementar”; “que pinturas infantis!”, “até eu fazia melhor que isto”. Então, a poesia dos títulos despertou uma estranha música: “Mulher Rodeada de um Voo de Pássaros na Noite”. Ou: “Pássaros no Espaço”. Mulheres, pássaros, noite, estrelas, bosque incendiado. Algo começava a fazer sentido.

Quando cheguei ao liceu, um colega conheceu a minha casa e tornou-se meu amigo porque julgou que tinha sido eu a pintar uma reprodução de Picasso em que surgem, num desenho aparentemente simplório, D. Quixote e o inseparável Sancho Pança. Ele vislumbrara poesia na simplicidade.

Um dia, no início da Fundação de Serralves, assisti a uma visita guiada por Fernando Pernes a uma exposição do catalão. Acontecimento raro, diziam, “irrepetível”, murmurava-se na imprensa. O país vivia ainda, nesses anos oitenta, uma sede da contemporaneidade que nos tinha sido roubada.

Pernes parava em algumas telas e explicava a busca incessante pela pureza formal do desenho primitivo, na origem da espécie e do indivíduo. Daí as alusões à pintura rupestre e a citação simbólica da infância. Nada de mais difícil, concluía, do que regressar ao que, de alguma forma, todos perdêramos.

Não mais zombei de Miró. Ele criou uma cosmogonia nova, em que a improvisação parece regular-se por estranhas repetições rítmicas, rasgando o espaço demasiado estreito da tela. Como nesse fabuloso quadro, “Maio de 68”, em que a rua explode no quadro, à medida de um graffiti libertador.

O assombro de uma mulher na noite, rodeada por pássaros; uma revoada erótica; a captação de um momento – inscrição fugaz de vida, como as toscas mãos rupestres que as crianças repetem no jardim-de-infância. Mas não merecemos nada disto. O Governo diz que é um luxo que não podemos pagar. Portugal é pobre, cada dia que passa sem entender Miró, sem entender nada, perdido nas suas “prioridades”.