Entre cosmopolitismo e nacionalismo

Em 1923, António Ferro publicou no Brasil A Idade do Jazz Band. O texto era um elogio ao jazz — um sinal “frenético, diabólico, destrambelhado, ardente” da contemporaneidade. Num momento em que este tipo de música era incompreendido por uma vasta maioria, vilipendiado por constituir um atentado à harmonia musical e mesmo usado para fundamentar teorias racistas, Ferro via nele o ritmo de uma Europa renascida depois da Grande Guerra, e aberta ao que vinha do outro lado do Atlântico.

Na década de 1920, Ferro era um jovem intelectual inquieto. Politizado sem ser ainda político, andava num entra-e-sai do país que se manifestava em inúmeros escritos, sobretudo para consumo interno. Intelectual de acção, utilizava todos os meios de comunicação disponíveis para passar as suas mensagens. A escrita vinha na sequência do diálogo-entrevista, da conferência proferida ao microfone, da viagem a Paris ou ao Rio de Janeiro. Ferro queria trazer para Portugal o mundo de lá de fora. O mundo do presente onde identificava os traços do que era moderno, na música, na literatura, na pintura, na arquitectura ou na escultura, bem como nos protagonistas dos novos fascismos europeus. Enquanto repórter, fez entrevistas a D’Annunzio, Mussolini e Hitler, publicadas em Viagem à Volta das Ditaduras (1927), o livro que antecedeu as suas conversas, mais longas, com Salazar. Um destes diálogos teve lugar num automóvel, em andamento, como se vê numa das fotografias publicadas em Salazar. O homem e a sua obra (1933). Para que o entrevistado não perdesse o pouco tempo que tinha para equilibrar as finanças do país? Ou para que a imagem do católico tradicionalista que tinha vindo da província fosse marcada pela modernidade do século?

A primeira parte de A Vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo, a biografia de Margarida Acciaiuoli, centra-se sobretudo na escrita de António Ferro, num exercício em que a voz do biografado está mais presente do que a voz da autora e que se constitui numa súmula do seus interesses e ideias. A segunda parte afasta-se mais do biografado para se concentrar na cultura oficial do período.

Em 1933, já director do recém-criado Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), o escritor da contemporaneidade — ou o historiador do presente — passou a ser o político do espírito. Foi então que o seu cosmopolitismo teve de se adaptar a uma ideia de “Portugalidade” definida em várias frentes. Um Portugal dos sentidos para aqueles que sabiam ler, mas também para a maioria que só sabia ver. A Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, a hesitar entre a reinvenção de um folclore esquecido e uma tradição clássica internacional. Os múltiplos prémios literários e artísticos com que se procurava construir o cânone da época — com A Romaria, do padre Vasco Reis, a ganhar o prémio de poesia em 1934, relegando a Mensagem de Pessoa para um prémio de consolação. As pousadas de Portugal, para que os portugueses pudessem americanizar os seus lazeres e viajar na própria terra. O concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e a definição etnográfica de uma cultura popular, em que o povo deveria continuar a ser povo, mas ciente das tradições que o identificavam e que deveria reproduzir. As intervenções em Lisboa, entre o culto do bairro de Alfama com vasos de flores na janela para o rio e a abertura das avenidas novas, com nomes de colónias e países estrangeiros. Ou as tentativas de regulamentar o estilo decorativo através das “campanhas do bom gosto” — a que os críticos chamavam, ironicamente, o “estilo secretariado”.

Esta última referência é uma das poucas que o livro faz à contestação da política cultural do regime. Perante a multiplicação de prémios e concursos, a revista Presença pôs o dedo na ferida: onde estava aquele Ferro que, no passado, tinha escrito sobre a incompatibilidade entre a liberdade da produção cultural e a intervenção política? Onde se encontra no livro a contestação ao regime, para além dos textos de Almada ou de António Pedro a questionar a conversão dos portugueses ao “bom gosto”? Quais os artistas, escritores e intelectuais que ficaram de fora? E as organizações que foram extintas pelo regime, como o Conselho Nacional de Mulheres portuguesas, liderado pela intelectual Maria Lamas?

A política de promoção de Portugal no estrangeiro levada a cabo por Ferro através do SPN/SNI traz-nos alguns dos exemplos da tensão entre os seus ideais de cosmopolitismo e a necessidade de identificar a nação: os pavilhões de Portugal nas exposições de Paris (1937) ou de Nova Iorque (1939); os redescobertos pauliteiros de Miranda no Royal Albert Hall londrino (1933); a exposição de arte popular portuguesa em Genebra (1935); ou a Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, apresentada num teatro parisiense em 1949.

Como é que foi vivida a tensão entre a modernidade, tal como ela era sentida por Ferro — da moda ao jazz, na estetização das ditaduras ou na cultura visual, da fotografia às exposições ou ao cinema — e a crescente resignação ao projecto cultural de um Portugal “português”? Como é que se comemorava a História de Portugal — em exposições, monumentos, desfiles — sem renegar o presente? Concebendo uma estética moderna dos temas do passado e colocando-os lado a lado com os feitos políticos do presente. De Trás-os-Montes a Timor. De Vasco da Gama a Salazar.

À vertigem da palavra, bem notada no subtítulo do livro, poderíamos acrescentar a vertigem da imagem. Um dos muitos projectos fotográficos em que António Ferro esteve envolvido foi o do álbum Portugal 1940, editado pelo SPN, com a colaboração de alguns dos mais prestigiados fotógrafos da época e a direcção de Leitão de Barros. Este álbum poderia também ser analisado numa perspectiva de género. Muitos já notaram a “masculinização” da estética dos regimes fascistas europeus, para lá do óbvio domínio masculino do poder. De que forma é que este culto do corpo masculino se fazia sentir em Portugal? Ferro escreveu, por exemplo, que só admirava aqueles escritores que tinham “músculo na prosa”. A iconografia da propaganda portuguesa dos anos 40 dá-nos outros exemplos — erotizados? — desta masculinidade visível. Imagens de homens a construirem pontes em tronco nu ou a escavarem a terra em mangas de camisa, os braços erguidos em uniformes militares ou em perfeitas coreografias de ginástica, homens negros a dançarem semi-nus numa fotomontagem destinada a ilustrar a viagem do presidente da República às colónias, ou o homem, qual estátua grega, que, noutra sobreposição fotográfica, parece dominar o novo Estádio Nacional.

A biografia teria beneficiado com abordagens de género, com um outro uso das magníficas fotografias que o ilustram — mais como documento em si do que como ilustração —, com uma maior distanciação relativamente ao discurso oficial e, também, com uma abordagem transnacional atenta àquilo que de semelhante se passava para lá das fronteiras nacionais. Falta desenvolver neste campo uma maior consciência do contexto cultural internacional e um maior conhecimento da produção historiográfica estrangeira sobre as relações entre cultura e política durante este período.

António Ferro. A vertigem da palavra é um livro bem escrito sobre uma personagem fascinante e com inúmeras referências para uma história dos museus, das exposições, da fotografia e da arquitectura do Estado Novo. Porém, a voz do objecto histórico está mais presente do que a da historiadora. O diálogo que se estabelece com Ferro tem por objectivo dar-lhe voz, mas não questioná-lo, ou explorar as vozes daqueles que o questionaram. Tal como o nome da revista criada por Ferro para divulgar a cultura e a arte portuguesas, este livro constitui um Panorama para quem se interesse pela história cultural e política do período — desperta a curiosidade para outras leituras sobre o assunto, para a própria obra de Ferro, e para os muitos traços estéticos e monumentais que a política do espírito deixou nas ruas e nos edifícios do país. Mas cabe ao leitor ter um papel activo. Lendo para lá da voz reproduzida do biografado e interpelando uma narrativa que por vezes oficializa a história oficial. Sem problematização, a estética do Estado Novo, com o sua inegável poder de atracção, corre o risco de se despolitizar, e de nos deixar com saudades de brincar, na ilusão de uma liberdade infantil, no Portugal dos Pequeninos.

 

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Em 1923, António Ferro publicou no Brasil A Idade do Jazz Band. O texto era um elogio ao jazz — um sinal “frenético, diabólico, destrambelhado, ardente” da contemporaneidade. Num momento em que este tipo de música era incompreendido por uma vasta maioria, vilipendiado por constituir um atentado à harmonia musical e mesmo usado para fundamentar teorias racistas, Ferro via nele o ritmo de uma Europa renascida depois da Grande Guerra, e aberta ao que vinha do outro lado do Atlântico.

Na década de 1920, Ferro era um jovem intelectual inquieto. Politizado sem ser ainda político, andava num entra-e-sai do país que se manifestava em inúmeros escritos, sobretudo para consumo interno. Intelectual de acção, utilizava todos os meios de comunicação disponíveis para passar as suas mensagens. A escrita vinha na sequência do diálogo-entrevista, da conferência proferida ao microfone, da viagem a Paris ou ao Rio de Janeiro. Ferro queria trazer para Portugal o mundo de lá de fora. O mundo do presente onde identificava os traços do que era moderno, na música, na literatura, na pintura, na arquitectura ou na escultura, bem como nos protagonistas dos novos fascismos europeus. Enquanto repórter, fez entrevistas a D’Annunzio, Mussolini e Hitler, publicadas em Viagem à Volta das Ditaduras (1927), o livro que antecedeu as suas conversas, mais longas, com Salazar. Um destes diálogos teve lugar num automóvel, em andamento, como se vê numa das fotografias publicadas em Salazar. O homem e a sua obra (1933). Para que o entrevistado não perdesse o pouco tempo que tinha para equilibrar as finanças do país? Ou para que a imagem do católico tradicionalista que tinha vindo da província fosse marcada pela modernidade do século?

A primeira parte de A Vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo, a biografia de Margarida Acciaiuoli, centra-se sobretudo na escrita de António Ferro, num exercício em que a voz do biografado está mais presente do que a voz da autora e que se constitui numa súmula do seus interesses e ideias. A segunda parte afasta-se mais do biografado para se concentrar na cultura oficial do período.

Em 1933, já director do recém-criado Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), o escritor da contemporaneidade — ou o historiador do presente — passou a ser o político do espírito. Foi então que o seu cosmopolitismo teve de se adaptar a uma ideia de “Portugalidade” definida em várias frentes. Um Portugal dos sentidos para aqueles que sabiam ler, mas também para a maioria que só sabia ver. A Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, a hesitar entre a reinvenção de um folclore esquecido e uma tradição clássica internacional. Os múltiplos prémios literários e artísticos com que se procurava construir o cânone da época — com A Romaria, do padre Vasco Reis, a ganhar o prémio de poesia em 1934, relegando a Mensagem de Pessoa para um prémio de consolação. As pousadas de Portugal, para que os portugueses pudessem americanizar os seus lazeres e viajar na própria terra. O concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e a definição etnográfica de uma cultura popular, em que o povo deveria continuar a ser povo, mas ciente das tradições que o identificavam e que deveria reproduzir. As intervenções em Lisboa, entre o culto do bairro de Alfama com vasos de flores na janela para o rio e a abertura das avenidas novas, com nomes de colónias e países estrangeiros. Ou as tentativas de regulamentar o estilo decorativo através das “campanhas do bom gosto” — a que os críticos chamavam, ironicamente, o “estilo secretariado”.

Esta última referência é uma das poucas que o livro faz à contestação da política cultural do regime. Perante a multiplicação de prémios e concursos, a revista Presença pôs o dedo na ferida: onde estava aquele Ferro que, no passado, tinha escrito sobre a incompatibilidade entre a liberdade da produção cultural e a intervenção política? Onde se encontra no livro a contestação ao regime, para além dos textos de Almada ou de António Pedro a questionar a conversão dos portugueses ao “bom gosto”? Quais os artistas, escritores e intelectuais que ficaram de fora? E as organizações que foram extintas pelo regime, como o Conselho Nacional de Mulheres portuguesas, liderado pela intelectual Maria Lamas?

A política de promoção de Portugal no estrangeiro levada a cabo por Ferro através do SPN/SNI traz-nos alguns dos exemplos da tensão entre os seus ideais de cosmopolitismo e a necessidade de identificar a nação: os pavilhões de Portugal nas exposições de Paris (1937) ou de Nova Iorque (1939); os redescobertos pauliteiros de Miranda no Royal Albert Hall londrino (1933); a exposição de arte popular portuguesa em Genebra (1935); ou a Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, apresentada num teatro parisiense em 1949.

Como é que foi vivida a tensão entre a modernidade, tal como ela era sentida por Ferro — da moda ao jazz, na estetização das ditaduras ou na cultura visual, da fotografia às exposições ou ao cinema — e a crescente resignação ao projecto cultural de um Portugal “português”? Como é que se comemorava a História de Portugal — em exposições, monumentos, desfiles — sem renegar o presente? Concebendo uma estética moderna dos temas do passado e colocando-os lado a lado com os feitos políticos do presente. De Trás-os-Montes a Timor. De Vasco da Gama a Salazar.

À vertigem da palavra, bem notada no subtítulo do livro, poderíamos acrescentar a vertigem da imagem. Um dos muitos projectos fotográficos em que António Ferro esteve envolvido foi o do álbum Portugal 1940, editado pelo SPN, com a colaboração de alguns dos mais prestigiados fotógrafos da época e a direcção de Leitão de Barros. Este álbum poderia também ser analisado numa perspectiva de género. Muitos já notaram a “masculinização” da estética dos regimes fascistas europeus, para lá do óbvio domínio masculino do poder. De que forma é que este culto do corpo masculino se fazia sentir em Portugal? Ferro escreveu, por exemplo, que só admirava aqueles escritores que tinham “músculo na prosa”. A iconografia da propaganda portuguesa dos anos 40 dá-nos outros exemplos — erotizados? — desta masculinidade visível. Imagens de homens a construirem pontes em tronco nu ou a escavarem a terra em mangas de camisa, os braços erguidos em uniformes militares ou em perfeitas coreografias de ginástica, homens negros a dançarem semi-nus numa fotomontagem destinada a ilustrar a viagem do presidente da República às colónias, ou o homem, qual estátua grega, que, noutra sobreposição fotográfica, parece dominar o novo Estádio Nacional.

A biografia teria beneficiado com abordagens de género, com um outro uso das magníficas fotografias que o ilustram — mais como documento em si do que como ilustração —, com uma maior distanciação relativamente ao discurso oficial e, também, com uma abordagem transnacional atenta àquilo que de semelhante se passava para lá das fronteiras nacionais. Falta desenvolver neste campo uma maior consciência do contexto cultural internacional e um maior conhecimento da produção historiográfica estrangeira sobre as relações entre cultura e política durante este período.

António Ferro. A vertigem da palavra é um livro bem escrito sobre uma personagem fascinante e com inúmeras referências para uma história dos museus, das exposições, da fotografia e da arquitectura do Estado Novo. Porém, a voz do objecto histórico está mais presente do que a da historiadora. O diálogo que se estabelece com Ferro tem por objectivo dar-lhe voz, mas não questioná-lo, ou explorar as vozes daqueles que o questionaram. Tal como o nome da revista criada por Ferro para divulgar a cultura e a arte portuguesas, este livro constitui um Panorama para quem se interesse pela história cultural e política do período — desperta a curiosidade para outras leituras sobre o assunto, para a própria obra de Ferro, e para os muitos traços estéticos e monumentais que a política do espírito deixou nas ruas e nos edifícios do país. Mas cabe ao leitor ter um papel activo. Lendo para lá da voz reproduzida do biografado e interpelando uma narrativa que por vezes oficializa a história oficial. Sem problematização, a estética do Estado Novo, com o sua inegável poder de atracção, corre o risco de se despolitizar, e de nos deixar com saudades de brincar, na ilusão de uma liberdade infantil, no Portugal dos Pequeninos.