Visões de África
A exposição África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial, comissariada por Ana Vaz Milheiro (com Ana Cannas e João Vieira), oferece a quem a visita uma experiência inquietante. O lugar combina a carga simbólica de Belém, ex-ponto fulcral de um ex-império colonial, com a neutralidade isotrópica de um ex-parque de estacionamento (que hoje acolhe exposições de arquitectura). Esta exposição tira o máximo partido dessa característica homogénea e neutra do espaço, e constrói uma visão uniforme e poderosa do modo como, entre 1944 e 1974, o Gabinete de Urbanização Colonial (um organismo do Estado português onde, em Lisboa, os técnicos da metrópole — “arquitectos, engenheiros, peritos em medicina tropical e climatologia” — realizaram centenas de projectos para as colónias) pensou e ocupou o território ultramarino.
A mostra é profundamente eficiente. Apresenta um retrato coerente e compreensível de como, em Portugal, se encarava um território distante. O dispositivo expositivo, com arquitectura de Paulo Tormenta Pinto e design de vivóeusébio, conjuga uma quantidade monumental de informação complexa segundo parâmetros capazes de a fazer parecer simples, até óbvia. Essa competência permite que se entenda como é que os arquitectos pensavam África através dos seus projectos. A ordem cronológica dos painéis demonstra a evolução desse entendimento ao longo de 30 anos, respondendo às transformações culturais e das práticas arquitectónicas. As maquetas, os vídeos e os documentos expostos complementam os desenhos. E há uma narrativa dominante, composta pelas extraordinárias fotografias do arquitecto Luís Possolo (também ele ao serviço do Gabinete de Urbanização do Ultramar), que nos transporta para uma paisagem específica, uma visão de África. Essa visão dá corpo e lugar aos desenhos, transforma o território ultramarino numa paisagem africana, isotrópica, unificada, tal como o espaço expositivo. Visitar a exposição faz-nos mergulhar num mundo onírico, passado, como se estivéssemos a conversar com os arquitectos e políticos que estavam, em Lisboa, a pensar África.
Esta eficiência não esconde o monumental trabalho de investigação e estudo que a antecedeu. Só com esse trabalho foi possível “descobrir” arquitectos e arquitecturas apagadas da História. A exposição mostra os resultados de um projecto colectivo que, sob a égide de Ana Vaz Milheiro, envolveu dezenas de pessoas e centenas ou milhares de horas de trabalho para fazer emergir conhecimento dos arquivos, das evidências no terreno, no lugar de cada obra, dos depoimentos de muitos autores ainda vivos, da troca e partilha de saberes e, sobretudo, da produção intelectual e da construção de sentido concomitante com esse trabalho (note-se a recente atribuição ex-aequo do Prémio de Crítica e Ensaística de Arte e Arquitectura AICA/Fundação Carmona e Costa à coordenadora desse estudo e autora desta exposição). África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial representa a passagem para uma esfera pública e amplamente partilhável de um trabalho produzido no campo académico, um esforço singular no nosso panorama. Não são raros os casos de investigações que não ultrapassam as cercas apertadas das academias universitárias e, quando ultrapassam, se escudam numa linguagem difícil de penetrar. Neste caso, a investigação revelou uma arquitectura negligenciada pela História e deu-lhe sentido, permitindo progredir no conhecimento e tornar acessíveis ferramentas para descodificarmos, hoje, a nossa realidade. Seja ela a realidade física e evidente do património construído ou, e creio ser essa a contribuição mais relevante deste trabalho, a realidade política do exercício da profissão de arquitecto.
Hoje, num momento em que o Estado se dissolve, em que as competências dos arquitectos parecem apenas servir a ganância dos investidores privados e da exploração financeira (entretanto colapsada, mas em vias de ressurreição), a exposição mostra o trabalho de arquitectos anónimos (e cujo anonimato é preservado no dispositivo de África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial) que, sem prescindirem da sua individualidade e do exercício da autoria arquitectónica que era a base do seu saber, contribuíram para a construção de um corpo colectivo de trabalho, socialmente partilhável e capaz de transformar positivamente as condições de vida das populações. A exposição mostra que há alternativas à concepção contemporânea da profissão do arquitecto e, sobretudo, que a arquitectura é um bem público. Mostrar esta evidência, nos tempos que correm, é um contributo útil para a sociedade — oferece um suspiro de evidência que a política contemporânea e os meios de informação nos negam quotidianamente, suspiro que nos pode ajudar a resistir.
Só que, ao contrário da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, África não era um espaço isotrópico. A paisagem idealizada dos arquitectos era um território ocupado, em guerra. Era um espaço de violência colonial que nem sequer acompanhava o espírito do tempo. Se, até à fundação do Gabinete de Urbanização Colonial, em plena Segunda Guerra Mundial, a política colonial correspondia a uma forma de exploração eventualmente compreensível dado o curso da Hist? ?ria (que sabemos não ser “natural”), hoje as visões de África do pós-guerra são dificilmente toleráveis. Para construir a compreensão positiva e útil que a exposição nos transmite foi necessário passar com leveza sobre o complexo de culpa que os estudos pós-coloniais, inevitavelmente, nos infligem. Essa leveza traz consigo qualidades indiscutíveis, mas abre brechas perigosas, correndo o risco de o nosso saber ter de navegar na mesma ilusão idílica que afundou Portugal na segunda metade do século XX.
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A exposição África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial, comissariada por Ana Vaz Milheiro (com Ana Cannas e João Vieira), oferece a quem a visita uma experiência inquietante. O lugar combina a carga simbólica de Belém, ex-ponto fulcral de um ex-império colonial, com a neutralidade isotrópica de um ex-parque de estacionamento (que hoje acolhe exposições de arquitectura). Esta exposição tira o máximo partido dessa característica homogénea e neutra do espaço, e constrói uma visão uniforme e poderosa do modo como, entre 1944 e 1974, o Gabinete de Urbanização Colonial (um organismo do Estado português onde, em Lisboa, os técnicos da metrópole — “arquitectos, engenheiros, peritos em medicina tropical e climatologia” — realizaram centenas de projectos para as colónias) pensou e ocupou o território ultramarino.
A mostra é profundamente eficiente. Apresenta um retrato coerente e compreensível de como, em Portugal, se encarava um território distante. O dispositivo expositivo, com arquitectura de Paulo Tormenta Pinto e design de vivóeusébio, conjuga uma quantidade monumental de informação complexa segundo parâmetros capazes de a fazer parecer simples, até óbvia. Essa competência permite que se entenda como é que os arquitectos pensavam África através dos seus projectos. A ordem cronológica dos painéis demonstra a evolução desse entendimento ao longo de 30 anos, respondendo às transformações culturais e das práticas arquitectónicas. As maquetas, os vídeos e os documentos expostos complementam os desenhos. E há uma narrativa dominante, composta pelas extraordinárias fotografias do arquitecto Luís Possolo (também ele ao serviço do Gabinete de Urbanização do Ultramar), que nos transporta para uma paisagem específica, uma visão de África. Essa visão dá corpo e lugar aos desenhos, transforma o território ultramarino numa paisagem africana, isotrópica, unificada, tal como o espaço expositivo. Visitar a exposição faz-nos mergulhar num mundo onírico, passado, como se estivéssemos a conversar com os arquitectos e políticos que estavam, em Lisboa, a pensar África.
Esta eficiência não esconde o monumental trabalho de investigação e estudo que a antecedeu. Só com esse trabalho foi possível “descobrir” arquitectos e arquitecturas apagadas da História. A exposição mostra os resultados de um projecto colectivo que, sob a égide de Ana Vaz Milheiro, envolveu dezenas de pessoas e centenas ou milhares de horas de trabalho para fazer emergir conhecimento dos arquivos, das evidências no terreno, no lugar de cada obra, dos depoimentos de muitos autores ainda vivos, da troca e partilha de saberes e, sobretudo, da produção intelectual e da construção de sentido concomitante com esse trabalho (note-se a recente atribuição ex-aequo do Prémio de Crítica e Ensaística de Arte e Arquitectura AICA/Fundação Carmona e Costa à coordenadora desse estudo e autora desta exposição). África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial representa a passagem para uma esfera pública e amplamente partilhável de um trabalho produzido no campo académico, um esforço singular no nosso panorama. Não são raros os casos de investigações que não ultrapassam as cercas apertadas das academias universitárias e, quando ultrapassam, se escudam numa linguagem difícil de penetrar. Neste caso, a investigação revelou uma arquitectura negligenciada pela História e deu-lhe sentido, permitindo progredir no conhecimento e tornar acessíveis ferramentas para descodificarmos, hoje, a nossa realidade. Seja ela a realidade física e evidente do património construído ou, e creio ser essa a contribuição mais relevante deste trabalho, a realidade política do exercício da profissão de arquitecto.
Hoje, num momento em que o Estado se dissolve, em que as competências dos arquitectos parecem apenas servir a ganância dos investidores privados e da exploração financeira (entretanto colapsada, mas em vias de ressurreição), a exposição mostra o trabalho de arquitectos anónimos (e cujo anonimato é preservado no dispositivo de África — Visões do Gabinete de Urbanização Colonial) que, sem prescindirem da sua individualidade e do exercício da autoria arquitectónica que era a base do seu saber, contribuíram para a construção de um corpo colectivo de trabalho, socialmente partilhável e capaz de transformar positivamente as condições de vida das populações. A exposição mostra que há alternativas à concepção contemporânea da profissão do arquitecto e, sobretudo, que a arquitectura é um bem público. Mostrar esta evidência, nos tempos que correm, é um contributo útil para a sociedade — oferece um suspiro de evidência que a política contemporânea e os meios de informação nos negam quotidianamente, suspiro que nos pode ajudar a resistir.
Só que, ao contrário da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, África não era um espaço isotrópico. A paisagem idealizada dos arquitectos era um território ocupado, em guerra. Era um espaço de violência colonial que nem sequer acompanhava o espírito do tempo. Se, até à fundação do Gabinete de Urbanização Colonial, em plena Segunda Guerra Mundial, a política colonial correspondia a uma forma de exploração eventualmente compreensível dado o curso da Hist? ?ria (que sabemos não ser “natural”), hoje as visões de África do pós-guerra são dificilmente toleráveis. Para construir a compreensão positiva e útil que a exposição nos transmite foi necessário passar com leveza sobre o complexo de culpa que os estudos pós-coloniais, inevitavelmente, nos infligem. Essa leveza traz consigo qualidades indiscutíveis, mas abre brechas perigosas, correndo o risco de o nosso saber ter de navegar na mesma ilusão idílica que afundou Portugal na segunda metade do século XX.