A casa dos animais
A irresponsabilidade do universitário que aprecia a praxe tem muitos anos e uma razão de ser: a perpetuação de um espírito de casta.
Deixemo-nos de paninhos quentes: nenhum jovem bem formado aceita participar na humilhação organizada de alguém que é mais fraco do que ele. Ponto final. E em relação às tretas da “tradição” e da “integração”, os dux e as “papisas” que criem os seus próprios grupinhos fetichistas e deixem os desgraçados dos caloiros em paz.
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Deixemo-nos de paninhos quentes: nenhum jovem bem formado aceita participar na humilhação organizada de alguém que é mais fraco do que ele. Ponto final. E em relação às tretas da “tradição” e da “integração”, os dux e as “papisas” que criem os seus próprios grupinhos fetichistas e deixem os desgraçados dos caloiros em paz.
Aliás, confesso a minha dificuldade em continuar a escutar a palavra “integração” saída da boca dos defensores das praxes, como se eles fossem os filantropos do excremento e da roupa interior. Se só querem estender os braços aos novos alunos e promover um momento divertido, organizem um beberete. Parece-me uma forma mais higiénica de ajudar jovens de 18 anos a conhecerem-se, até porque eles costumam ter muitas dificuldades nisso. Portanto, caros praxistas, tentem arranjar uma desculpa menos parva para aquilo que verdadeiramente vos põe a adrenalina a correr – aquela sensação, velha como o mundo, de exercer um poder discricionário sobre um grupo de miúdos indefesos e assustados. Sim, há aqui uma antiquíssima tradição. Bárbara e repugnante, mas uma tradição, ainda assim.
Claro que o assunto das praxes é como os fogos de Verão: vai e vem consoante os anos, e aquilo que arde e morre em cada estação. Nada irá mudar por causa das mortes do Meco, porque as praxes – lá está – existem desde que alguns seres humanos descobriram ser divertido humilhar outros seres humanos. E isso foi há muito tempo. Mas a investigação de Ana Leal, na TVI, teve o mérito de revelar algumas práticas dos membros do Conselho de Praxe da Lusófona, cuja descrição me parece aproximá-las mais dos rituais das famosas fraternities com nome de letras gregas das universidades da Ivy League do que propriamente de alguma coisa portuguesa. Portanto, neste caso, a tradição é, além de bárbara e repugnante, americana e muito queque.
Isto não é uma coisa de universidades fajutas e mal frequentadas. Os excessos das repúblicas da Ivy League, cujas práticas fazem muitas vezes parecer as da Lusófona uma brincadeira de crianças, também ocupam espaço nos jornais americanos, até porque todos os anos costuma morrer alguém. John Landis já fez o favor de retratar tais ambientes há 35 anos, num filme de culto de 1978 sobre a fraternity Delta Tau Chi, sintomaticamente intitulado Animal House. Em Portugal ele chamou-se (ainda mais sintomaticamente) A República dos Cucos, uma tradução pueril para um filme cuja máxima nada tinha de inocente: “We can do anything we want. We’re college students!”
A irresponsabilidade do universitário que aprecia a praxe tem muitos anos e uma razão de ser: a perpetuação de um espírito de casta. Essa espécie de gente começa a praticar a humilhação ao próximo na universidade para depois poder continuar a praticá-la nas Goldman Sachs desta vida, onde a lei do mais forte invariavelmente impera, e é preciso aprender a baixar a cabeça para os que estão em cima e a pisar o pescoço dos que estão em baixo. Porque isto, de facto, anda tudo ligado. Como é da tradição.