O verdadeiro chorinho brasileiro

Marcelo Evelin encarna várias personas. Estamos perante uma convergência muito bem conseguida, num corpo único, da representação da identidade nacional e da reminiscência da identidade pessoal.

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Para o encerramento da exposição de Cildo Meireles, no Museu de Serralves, Marcelo Evelin veio apresentar um solo de intérprete-criador, gerado numa fase introspectiva nos anos 1990 e que nos traz a questão amplamente teorizada de que a identidade surge de um diálogo com “o outro”.
 
Vem da antropologia tradicional o hábito de classificar “o outro”, acentuando os clichés emergentes de uma cultura desconhecida, e reflectindo uma visão ocidentalizada e colonialista da diversidade, sobretudo sobre os países de África e da América Latina. A dança contemporânea, que se desenvolveu na Europa como plataforma internacional, não foi imune a este legado. Cabe então aos próprios sujeitos rever a sua posição nesses papéis. Esta é uma das valências distintivas deste espectáculo: não só porque o faz, mas como o faz.
 
Ai Ai Ai é uma peça seccionada, com personas diversas, caricaturais ou autobiográficas, que se definem pelos adereços envergados e despidos. Há também uma riqueza sonora de alusões - musicais como o chorinho brasileiro - ou concretas como o mar, os aplausos e vozes antigas e familiares. O artista carrega emocionalmente a junção destes elementos com uma forte presença de gestos e movimentos equilibrados entre o óbvio e o ambíguo. Fá-lo com variações do semblante (carregado, atrevido, contente) e pela repetição exaustiva, que clarifica e autentifica a sua intenção. 
 
Estamos perante uma convergência muito bem conseguida, num corpo único, da representação da identidade nacional e da reminiscência da identidade pessoal. São construções performativas que fazem compreender a ironia e, por conseguinte, a crítica. O espectador é convocado, pelo olhar e gestos bem precisos do performer, a interpretar.  
Na aparição inicial de drag queen decadente sobrepõe-se o ícone da ave rara presa em exposição; é uma forma visualização da pessoa enclausurada no estereótipo criado com os dados que estão à superfície. Depois, de fato preto e sapatos brancos, aparece o malandro, de mãos a abanar, um predador em busca de "se virar", que lava as mãos dos seus crimes; é uma forma de ver a pessoa rejeitar e sacudir o estereótipo associado à sua cultura. Com uma manta branca e fofa, o homem aconchega-se e esconde-se; é uma forma de sentir o passado como conforto, em que o abrigo está numa memória.
 
A sequência de transformações decorre a olho nu; as luzes brancas a toda a potência sobre o palco instalam a premissa de que isto é para desvelar. O que aparece, sob as euforias fugazes do sambar e da juvenilidade, é a resistência, através da história individual que se contrapõe ao padrão. Desconstrói-se assim a insígnia da alegria brasileira e, aquando da grande ovação da celebridade (uma cena do espectáculo), a verdadeira persona já não aguenta compactuar com a face pública e desfaz-se num choro. 
 
Não há resolução em apoteose, nem de festa nem de tragédia, mas sim uma sinceridade poética. A postura redentora de braços abertos deixa penetrar o que realmente importa: uma grande saudade. Evelin virando esse abraço para a projecção - onde corre um filme das ruas cheias de crianças da urbe pobre –, à qual se encosta com carinho, é um fim muito bonito. 
A pertinência de juntar Evelin e Meireles neste contexto, além da conexão da nacionalidade, advém de ambos fazerem uma prática artística crítica, mas também poética. Ver isto só é possível, claro, num museu que reconhece nas expressões performativas a sua qualidade enquanto arte, tal como têm as expressões plásticas, e portanto ousa associá-las.

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Para o encerramento da exposição de Cildo Meireles, no Museu de Serralves, Marcelo Evelin veio apresentar um solo de intérprete-criador, gerado numa fase introspectiva nos anos 1990 e que nos traz a questão amplamente teorizada de que a identidade surge de um diálogo com “o outro”.
 
Vem da antropologia tradicional o hábito de classificar “o outro”, acentuando os clichés emergentes de uma cultura desconhecida, e reflectindo uma visão ocidentalizada e colonialista da diversidade, sobretudo sobre os países de África e da América Latina. A dança contemporânea, que se desenvolveu na Europa como plataforma internacional, não foi imune a este legado. Cabe então aos próprios sujeitos rever a sua posição nesses papéis. Esta é uma das valências distintivas deste espectáculo: não só porque o faz, mas como o faz.
 
Ai Ai Ai é uma peça seccionada, com personas diversas, caricaturais ou autobiográficas, que se definem pelos adereços envergados e despidos. Há também uma riqueza sonora de alusões - musicais como o chorinho brasileiro - ou concretas como o mar, os aplausos e vozes antigas e familiares. O artista carrega emocionalmente a junção destes elementos com uma forte presença de gestos e movimentos equilibrados entre o óbvio e o ambíguo. Fá-lo com variações do semblante (carregado, atrevido, contente) e pela repetição exaustiva, que clarifica e autentifica a sua intenção. 
 
Estamos perante uma convergência muito bem conseguida, num corpo único, da representação da identidade nacional e da reminiscência da identidade pessoal. São construções performativas que fazem compreender a ironia e, por conseguinte, a crítica. O espectador é convocado, pelo olhar e gestos bem precisos do performer, a interpretar.  
Na aparição inicial de drag queen decadente sobrepõe-se o ícone da ave rara presa em exposição; é uma forma visualização da pessoa enclausurada no estereótipo criado com os dados que estão à superfície. Depois, de fato preto e sapatos brancos, aparece o malandro, de mãos a abanar, um predador em busca de "se virar", que lava as mãos dos seus crimes; é uma forma de ver a pessoa rejeitar e sacudir o estereótipo associado à sua cultura. Com uma manta branca e fofa, o homem aconchega-se e esconde-se; é uma forma de sentir o passado como conforto, em que o abrigo está numa memória.
 
A sequência de transformações decorre a olho nu; as luzes brancas a toda a potência sobre o palco instalam a premissa de que isto é para desvelar. O que aparece, sob as euforias fugazes do sambar e da juvenilidade, é a resistência, através da história individual que se contrapõe ao padrão. Desconstrói-se assim a insígnia da alegria brasileira e, aquando da grande ovação da celebridade (uma cena do espectáculo), a verdadeira persona já não aguenta compactuar com a face pública e desfaz-se num choro. 
 
Não há resolução em apoteose, nem de festa nem de tragédia, mas sim uma sinceridade poética. A postura redentora de braços abertos deixa penetrar o que realmente importa: uma grande saudade. Evelin virando esse abraço para a projecção - onde corre um filme das ruas cheias de crianças da urbe pobre –, à qual se encosta com carinho, é um fim muito bonito. 
A pertinência de juntar Evelin e Meireles neste contexto, além da conexão da nacionalidade, advém de ambos fazerem uma prática artística crítica, mas também poética. Ver isto só é possível, claro, num museu que reconhece nas expressões performativas a sua qualidade enquanto arte, tal como têm as expressões plásticas, e portanto ousa associá-las.