Algumas notas quezilentas sobre “A Ciência em Crise”
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Qualquer país vagamente desenvolvido necessita de ter um nível aceitável de apoio à investigação ou I&D, pura ou aplicada, o qual não pode ser definido por um qualquer ministro da Economia de casca grossa e visões tacanhas.
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Qualquer país vagamente desenvolvido necessita de ter um nível aceitável de apoio à investigação ou I&D, pura ou aplicada, o qual não pode ser definido por um qualquer ministro da Economia de casca grossa e visões tacanhas.
Sem essa investigação, mesmo a meramente teórica ou especulativa, não há país que consiga desenvolver um verdadeiro espírito de inovação e verdadeiro empreendedorismo (que na sua verdadeira acepção está longe de ser a de fundadores de negócios de ocasião). A investigação é estruturante neste nosso mundo mais que pós-moderno.
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Em Portugal, o sector da Ciência tem funcionado desde que me lembro
(vou a meados de 80 do século XX)
como o resto do país, em larga medida
(mesmo se não em exclusivo)
na base da cunha, do conhecimento, da palavrinha certa à pessoa certa, da reverência, do clientelismo, do nepotismo, das capelinhas, da prostituição intelectual
(até de quem se afirma contra isso, que eu bem os vi…),
do favorzinho, do 'olha lá o meu filho que gostava tanto de ir para Oxford fazer uns estudos'
. Quando houve dinheiro expandiu-se o sistema e houve sobras para além das redes clientelares habituais (de várias cores, mesmo se com inclinação para os círculos dependentes dos gurus da mesma geração, a de 1960) e aumentaram em termos quantitativos os apoios. Mas nunca houve uma política que olhasse mesmo mais longe do que a quantidade, o número de publicações (quantas vezes nulas) em revistas nacionais e internacionais com peer review (um raio de sistema que entre nós é endogâmico até à medula), o número de comunicações, o número de eventos realizados em amena confraternização dos do costume.
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Uma revisão deste estado de coisas deve ser fazer-se com base na alteração dos procedimentos e não apenas na base dos cortes ou rotação das clientelas preferenciais.
A definição de uma estratégia desse tipo não pode ser unipessoal (o modelo Mariano Gago é muito elogiado porque serviu bem a quem se serviu e viveu dele), nem pode depender de júris ou painéis com interesses directos ou indirectos nos circuitos de distribuição de verbas. É anedótico ver grupos de “especialistas” a decidir o destino de projectos que acarinharam meses antes ou a avaliar centros de investigação a que pertenceram ou onde estão os seus amigos de sempre. E encomendar especialistas estrangeiros que se conheceram em congressos, em casa de quem se ficou naquelas férias bestiais, com quem se partilharam publicações e convites não altera a essência das coisas. A mudança de procedimentos deve começar a partir de cima e não se limitar a substituir uma capela laica por uma crente, certo?
Dito isto…
Acho que muitos dos inflamados neste debate são parecidos com aqueles encenadores de teatro, realizadores de cinema ou artistas que fazem um berreiro monumental quanto ao estado das coisas, até ao momento, que não conseguem o que querem, mesmo que seja à custa do borda fora de outro seu equivalente. Basta redireccionar –
recalibrar
? – os apoios e muita gente se esquece do que denunciara meses antes.
E esse é o erro maior daqueles que sempre apostaram na proximidade pessoal com o poder para poderem manter os seus mini-feudos concêntricos apoiados pelo bondoso suserano. Como é dos que criticam agora um estado de coisas de que beneficiaram e acerca do qual nunca abriram a boca quando recebiam a devida tranche. Nessa altura, falavam baixinho e faziam uma objecção de consciência muito interiorizada à tertúlia dos amigos que também ganhavam bolsas contra as quais estariam.
Mas isso não significa que ache que a Fundação para a Ciência e Tecnologia deve acabar, ser instrumentalizada, esvaziado o seu funcionamento ou tratada como qualquer empresa pública em processo de privatização, em que se colocam os amigos a substituir os amigos dos outros, se despede quem de nada tem culpa e se afirma que se está a defender a “qualidade” quando quem avalia essa qualidade não a reconheceria nem que fosse num elevador de dois lugares com ela da cave ao 100.º andar.
Os dinheiros públicos devem ser geridos de forma transparente e com critérios que não mudam a meio dos processos, às escondidas, de modo arbitrário.
Porque há que perceber uma coisa simples: as fundações públicas ou com dinheiros quase exclusivamente públicos devem nortear-se pela clareza de procedimentos e critérios. As que gerem principalmente dinheiros privados (Gulbenkian, Oriente, FFMS, etc) é que são livres para fazer com eles o que bem entendem pois não os foram buscar ao Estado e ao dinheiro de todos nós.
Portanto… Em relação à “Ciência em Crise” seria bem bom que as partes em confronto, que até há um par de anos conviviam tão bem sob o mesmo tecto, se deixem de tretas e confessem que o que está em causa é quem fica por cima, quem fica por baixo e quem é atirado para fora da cama.
São poucos os que me parecem interessados em mudar o que interessa: os procedimentos.