Quando a memória é ela própria uma guerra
É pacífico comemorar o centenário do primeiro conflito que se estendeu a todo o mundo? A prática mostra que não. Nem sequer a narrativa das vítimas pode ser dada como adquirida.
Hoje já não há sobreviventes dos mais de 65 milhões, de todos os continentes, mobilizados para combater num conflito que os generais pensaram que ia decorrer com regras do século XIX mas se travou com armas do século XX. Na verdade, o último veterano a desaparecer não entrou em combate e era uma mulher: Florence Green, que se juntou à Real Força Aérea britânica ainda adolescente e trabalhou numa messe militar em Inglaterra. O seu serviço só foi reconhecido em 2010, ela morreu em 2012, aos 111 anos.
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Hoje já não há sobreviventes dos mais de 65 milhões, de todos os continentes, mobilizados para combater num conflito que os generais pensaram que ia decorrer com regras do século XIX mas se travou com armas do século XX. Na verdade, o último veterano a desaparecer não entrou em combate e era uma mulher: Florence Green, que se juntou à Real Força Aérea britânica ainda adolescente e trabalhou numa messe militar em Inglaterra. O seu serviço só foi reconhecido em 2010, ela morreu em 2012, aos 111 anos.
Na falta de testemunhas em primeira mão, restam-nos os historiadores, os familiares que herdaram as histórias dos avós e dos pais, os diários, os objectos que regressaram da guerra — rosários, capacetes rasados por balas. Vários países, como a França e o Reino Unido, estão a lançar campanhas nacionais para obter doações destas memórias, para as musealizar, digitalizar e criar um arquivo digital, em parceria com a biblioteca digital europeia Europeana.
A Internet será um importante ponto de encontro — e de confronto — para as memórias da I Guerra. Oliver Janz, professor da Universidade Livre de Berlim, explica que, na Alemanha, a guerra de 1914-1918 não tem um grande impacto: “É uma memória muito ofuscada pela II Guerra”. Janz coordena o maior projecto de investigação internacional sobre a Grande Guerra: a construção de uma enciclopédia que estará online em Outubro, em inglês, em cuja elaboração participam mais de mil investigadores de todo o mundo, da Ásia inclusivamente (e de Portugal também).
“Raramente se foca a atenção no facto de a Grande Guerra ter sido mesmo uma guerra global, porque potências não europeias como o Japão, o Império Otomano ou os Estados Unidos também entraram nela. Foi também uma guerra global económica, e combateu-se fora do continente europeu, por exemplo em África, no Próximo e no Médio Oriente, os impérios coloniais britânico, francês e português foram arrastados para a guerra, o que significa mais de um quarto da população mundial da altura”, explicou Oliver Janz.
Com esta enciclopédia online, onde se encontra a investigação mais actual sobre o que se passou há 100 anos, podem-se confrontar as visões dos vários países beligerantes — algo que não é frequente acontecer.
UE fica de fora
A União Europeia renunciou a tentar fazer uma comemoração comum — há demasiadas visões diferentes, por vezes conflituosas. “É uma oportunidade perdida e é por isso que decidimos lançar a enciclopédia online em Bruxelas, a 8 de Outubro”, explica Oliver Janz.
“Percebe-se que as instituições europeias estejam relutantes em abordar a História e a memória da I Guerra Mundial. Mas espero que a Comissão e o Parlamento Europeu em particular não tenham ainda desistido deste centenário”, comentou Pierre Purseigle, investigador da Universidade de Warwick (Reino Unido), actualmente na Universidade de Yale (nos Estados Unidos), com uma bolsa europeia de investigação Marie Curie.
“A Europa de hoje — os seus mapas, culturas políticas, muitas das suas instituições — foram forjadas na fornalha das guerras, guerras civis e revoluções no Velho Continente entre 1912 e 1923, desde as guerras nos Balcãs até à Revolução Russa. As instituições europeias dar-nos-iam o enquadramento ideal para ter uma conversa e uma comemoração ao nível europeu”, adianta Purseigle.
O que se passou há 100 anos não é já ponto assente. As diferentes visões de cada país, de cada historiografia, estão sujeitas a variações nacionais, ou de época, ou de simples simpatia política. “Devemos ter consciência de que as visões sobre a guerra mudaram de forma drástica ao longo dos tempos e que aqueles que a viveram muitas vezes viam-na de formas que acharíamos muito surpreendentes”, alertou num artigo no Financial Times a historiadora Margaret McMillan, a directora (warden) do Colégio de Santo António na Universidade de Oxford (Reino Unido), autora de um dos novos livros sobre a I Guerra que estão a fazer furor, The War that Ended Peace.
Blackadder antipatriótico
O ministro da Educação britânico, Michael Gove, mostrou como a política da memória pode facilmente descarrilar. Causou uma enorme polémica no início do mês ao afirmar que o “desapiedado” e “agressivo expansionismo” dos líderes alemães em 1914-18 não devia ser esquecido, e que “mais do que justificou” a resposta militar britânica de então. Investiu contra uma das séries Blackadder, do humorista Rowan Atkinson, que goza com a guerra e o papel dos generais britânicos, como fomentadora de “mitos não-patrióticos”, aliada ao “revisionismo de historiadores de esquerda”.
A I Guerra Mundial foi das mais mortíferas de sempre – estima-se que tenham morrido cerca de 10 milhões de soldados e sete milhões de civis. Uma sondagem do think tank Future Think, publicada este mês, revela que 59% dos britânicos consideram que as comemorações devem ser “uma oportunidade para recordar a perda de vidas e para a reflexão nacional”. Apenas 22% diziam que se devia sublinhar a vitória sobre a Alemanha.
“Com dez milhões de mortos e milhões de veteranos mutilados e traumatizados, de viúvas e órfãos, a I Guerra Mundial é uma das tragédias que definem o século XX”, afirmou Pierre Purseigle. “O sacrifício dos combatentes e dos civis estará no centro das comemorações, e é correcto que assim seja.” O que continua a ser matéria em aberto são as origens da guerra. Sempre foram objecto de um debate apaixonado e muitas vezes altamente politizado”, reconhece o historiador britânico. “Continua a ser assim por toda a Europa, como o Reino Unido e a Sérvia nos mostraram nos últimos tempos”.
O argumento de Kusturica
Na Sérvia, o que se passou foi que o director dos Arquivos da Sérvia, Miroslav Perisic, e o realizador bósnio sérvio Emir Kusturica anunciaram ter sido descoberta uma cópia dactilografada, feita nos anos 1930, de uma carta do governador da Bósnia, Oskar Potiorek, que teria sido escrita 13 meses antes da guerra ter começado, ao chefe do Estado-Maior do exército austro-húngaro, Conrad von Hötzendorf, apelando a uma guerra preventiva contra a Sérvia, para evitar a união dos “eslavos do Sul”.
Para Miroslav Perisic, é uma “prova” de que o assassínio, a 28 de Junho de 1914, do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do império austro-húngaro, em Sarajevo, por um jovem bósnio sérvio, Gavrilo Princip, imbuído dos sonhos da criação de uma Grande Sérvia, foi “apropriado e usado como uma cortina de fumo para perseguir o povo sérvio” e desencadear a I Guerra Mundial, segundo o jornal sérvio Blic.
Para os historiadores, não é grande coisa: não é novidade que as ambições nacionalistas da Sérvia incomodavam a Áustria-Hungria e pairava a ideia de que uma guerra seria inevitável — julgava-se é que seria um conflito regional e contido. “Normalmente, negligencia-se que a Europa de Leste e do Sudeste sofreu mais nesta guerra do que a Europa Ocidental”, sublinha o alemão Oliver Janz.
Mas agora, 100 anos depois, e mesmo após outra guerra nos Balcãs, na década de 1990, que continuou as ambições de formar a Grande Sérvia do início do século XX, o nacionalismo sérvio boicota as celebrações preparadas para Sarajevo, em colaboração com a França, ou a conferência internacional em que está empenhado Husnija Kamberovic, do Instituto de História de Sarajevo, que organiza o encontro sem o apoio francês. “Os principais políticos sérvios, e da entidade sérvia da Bósnia-Herzegovina, criticaram as manifestações que marcam o início da I Guerra Mundial em Sarajevo”, diz Kamberovic.
“Mas Sarajevo, como o local do assassínio que empurrou o mundo para uma guerra sangrenta, não devia celebrar. Sarajevo devia recordar o início da guerra da mesma forma que os japoneses evocam os ataques nucleares. Sem grandes celebrações, estátuas, concertos ou corridas de bicicleta. É difícil imaginar como é que se pode celebrar morte e assassínios”, conclui o historiador.
Compreender e questionar
Enquanto se fala de uma guerra distante, do sofrimento dos soldados, das populações civis — talvez fazendo paralelos com guerras actuais para as quais foram destacados europeus, como o Iraque e o Afeganistão —, talvez se possa levar os cidadãos a perguntar por que é que a guerra aconteceu e durou tanto tempo.
“Apesar de haver um grande interesse no centenário, não devemos presumir que haverá uma melhor compreensão geral do que foi este conflito. Políticos, editores, media — e alguns historiadores, lamento dizê-lo — preferem ficar agarrados a narrativas estabelecidas e confortáveis. Podemos perder uma grande oportunidade de abordar os temas críticos para o mundo actual que a I Guerra Mundial nos coloca”, diz Pierre Purseigle.
Um desses temas é o do consentimento da guerra: como é que as populações das nações beligerantes permitiram que o conflito durasse quatro anos? Apesar de haver movimentos pacifistas e desertores, os povos pagaram para financiar a guerra, os soldados continuaram a partir para a frente de batalha, aos milhões. É uma narrativa que deve ser posta lado a lado com a do sofrimento dos soldados, sublinha o historiador britânico. “As populações beligerantes não foram apenas vítimas da guerra. Foram também agentes da sua própria vitimização. Ao consentirem lutar, gastar dinheiro para suportar o esforço de guerra, permitiram que o conflito durasse tanto quanto durou. É fundamental que compreendamos por que consideraram esta guerra defensiva, necessária, com significado existencial.”