Como amar depois de Eugenides
O escritor seguia no comboio de Manhattan para Princeton quando se envolveu numa rixa com um grupo de hooligans bêbados. Foi em 2011, pouco depois de publicar o seu terceiro romance. Por esses dias, tinha uma entrevista que não adiou e uma sessão fotográfica que não desmarcou. Nela, aparece de olho negro e nada a esconder. Não adiantou pormenores sobre o que se passou naquela viagem de comboio, episódio que se pode comparar ao isco que os professores lhe atiravam quando era miúdo antes de lhe dizerem “agora faz o favor de continuar como enredo” e ele ter percebido que queria mesmo ser escritor. Jeffrey Eugenides, 53 anos, três romances publicados, nove short-stories, e apontado como um dos mais talentosos autores das letras norte-americanas, a par com David Foster Wallace (1962-2008) ou Jonathan Franzen (1959), lembra o princípio desse desejo. Tinha uns 16 anos. Aos 28 foi viver para Nova Iorque. Teve empregos precários, escrevendo às escondidas até ser apanhado e despedido. Essa história de início é replicada por ele em cada entrevista. As pessoas querem saber dos desaires passados quando o futuro confirmou o sucesso. E no comboio para Princeton? Sobre isso, nada. Terá sido uma trama de amor? Ao posar de olho negro para a objectiva do fotógrafo Grant Delin, Eugenides sabe das possibilidades contidas na curiosidade e tornou-se ele mesmo potencial personagem de uma ficção sobre a qual apenas quis controlar o princípio. Ficava assim assinalado o momento da edição de The Marriage Plot, um dos livros mais aguardados desse ano na América. Tinham passado nove desde que publicara Middlesex, vencedor do Pulitzer em 2002, romance muito aplaudido pela crítica, e 18 após a estreia com As Virgens Suicidas que Sofia Coppola adaptou ao cinema em 1999.
Jeffrey Eugenides Kent, filho de mãe irlandesa e pai grego, tem muito dos seus romances e das suas personagens na sua biografia que vai mantendo cada vez menos reservada. Em Princeton, onde vive e dá aulas de escrita criativa, esteve à conversa com Juliette Lewis, a actriz/cantora (Darcy da série Portlândia, ou a adolescente de O Cabo do Medo, 1991). Era ela a entrevistadora da Interview. Ele disse-lhe, então, que antes de tudo quis ser actor, quando vivia com os pais em Detroit, cidade onde nasceu e de onde saiu aos 18 anos para “aprender” a ser escritor na Universidade de Brown. Ela interpelou-o: “Como pode alguém deixar aquela cidade ao abandono? Ela é um diamante.” Ele volta sempre. Em visitas, nos livros, nas conversas, mas não conhece os clubes nocturnos onde Juliette vai muitas vezes cantar. Eugenides não teve tempo de os frequentar. Saiu estava a cidade a ruir com o desaire da indústria automóvel.
Passaram mais de dois anos desde essa conversa onde entre outras coisas ele conta a génese. Recorda que estava num quarto quase vazio de Chicago, isolado do seu ambiente, longe de casa, quando encontrou Madeleine. Não era para ser assim. Era para continuar a escrever o livro que se seguiria a Middlesex, mas quando estava às voltas com uma personagem feminina ela escapou-lhe e o romance a que pertencia a rapariga que ainda não tinha nome foi abandonado. Em vez dele Eugenides escreveu The Marriage Plot, título a desafiar os bons tradutores, livro que parte da ideia de enredo amoroso tradicional num tempo em que as mulheres já não dependem desse amor como dependiam quando nasceu o romance vitoriano. Publicado nos EUA em 2011, vai chegar agora a Portugal pela D. Quixote numa tradução de Francisco Agarez. O título? A Trama de Casamento. “Parece-me que é o que melhor homenageia o romance inglês do século XIX que, no meu modesto entender, o livro de Eugenides recria”, justificou ao Ípsilon o tradutor.
Não há consensos. Eugenides é certeiro em inglês. Middlesex, o anterior, não teve tradução. Foi em português como no original. Em Eugenides nenhuma palavra é ao acaso. Não basta lê-lo. É preciso ouvi-lo ler o que escreve para perceber que há uma intenção em cada escolha. Andou em tournée a ler The Marriage Plot pelo país, autor/performer de uma obra que escreve de modo lento. A média dá um livro a cada nove anos. Intérprete das personagens que cria e para as quais constrói bibliotecas, casas, menus, bandas sonoras. O que sentem, lêem, comem, quem amam e como amam, o que ouvem e porque se desiludem os habitantes das histórias de Eugenides? Quase todas histórias suburbanas, de gente a sair de uma juventude formadora para a idade adulta e às voltas com uma hereditária obrigação de ser feliz. Essas biografias constroem-se em romances longos a partir de detalhes. Por exemplo, de um som.
Banda sonora
A banda sonora original de The Marriage Plot está por reunir, a biblioteca nela contida por catalogar, mas há uma canção a remeter para um tempo fundador de tudo e para uma perdição de amor. “And you may ask yourself, Well, how did I get here?” São os Talking Heads em 1980, com Once in a Lifetime a surgir em epígrafe. Bem-vindos ao mundo de Madeleine e a um princípio de romance que entra para qualquer lista exigente de bons princípios. Há um olhar para todos os livros a fixar um universo. Edith Wharton, Henry James, Dickens, Trollope, Jane Austen, George Eliot, as irmãs Bronte. Com isso consegue-se traçar um carácter. A biblioteca não revela nem um pouco o tempo em que Madeleine vive, mas também isso é revelador. Nem um contemporâneo. Se fosse no cinema talvez houvesse um movimento lento de câmara a sair das prateleiras, da secretária, para a cama. Sabe-se de uma ressaca e uma campainha interrompe um sono quase sem memória. Apenas que houve álcool e sexo numa noite que era para acabar mais cedo.
É a personagem a aparecer através dos sentidos. Todos. Tainted Love, e a cabeça a estalar. Sete e meia da manhã. Os pais beijam-na, querem saber de que tamanho é a alegria de Madeleine, conhecer o apartamento que ela partilha com duas colegas. Foram de Prettybrook até Providence para celebrar a graduação da filha. Madeleine Hanna, 21 anos, WASP (branca, anglo-saxónica, protestante) vai receber o seu diploma em Inglês pela Universidade de Brown e há uma cerimónia com todos os finalistas. Falta pouco. Só tempo para um café que ela se arrepende de ter combinado. “Sometimes I feel I’ve got to run away, I’ve got to get away from the pain you drive into the heart of me”… Os Soft Cell, tão datados num videoclip de sábado à tarde, a marcar o tom. O sentido da personagem compõe-se, agora com a variável tempo reforçada. Madeleine é uma rapariga dos subúrbios de New Jersey e para os intentos deste romance só poderia ter vivido essa passagem da universidade para a vida adulta no início dos anos 80. O autor coloca-a em 1982. Tem um café à frente e bagels torrados. O pai fixa-se no Village Voice, a mãe chama-lhe a atenção para uma nódoa no vestido. Madeleine gosta de romances vitorianos e acabou com o namorado, Leonard Bankhead, um estudante de ciências que sobe e desce rápido nas escalas do humor. Maníaco-depressivo, brilhante, divertido, pobre, sarcástico. Ela ama-o e lê-lhe Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, mas um e outro têm uma interpretação diferente do livro. Ela fez planos para viver com ele em Cape Cod, não longe dali, não longe de Nova Iorque, logo que deixasse a universidade. Contou aos pais, que preferiam que o futuro da filha fosse com Mitchell Grammaticus, o rapaz de Detroit que acaba de se formar em História das Religiões e planeia uma viagem pela Europa e depois pela Índia onde vai trabalhar como voluntário da Madre Teresa de Calcutá. E agora, fugir para onde, com quem, voltar a Prettybrook?, questiona-se Madeleine enquanto repara no rapaz ao balcão, de óculos iguais aos de Elvis Costello. Mitchell gosta de Madeleine, Madeleine gosta do flirt ocasional com Mitchell. Quer vê-lo por perto. Mas é só isso porque há Leonard
Está formado o triângulo amoroso da história. Muitos escritores andaram por este território. Os vitorianos, os modernistas, os experimentalistas, os das ideias e os dos enredos. Jeffrey Eugenides leu-os. Aos modernistas antes dos que vieram primeiro e construíram as bases. Ele é contemporâneo de Madeleine, a sua personagem, em Brown. Como ela, viveu a divisão da academia entre os que defendiam a tradição do romance clássico e os que, seguindo os pós-estruturalistas franceses, anunciavam o seu fim. Eugenides sempre se sentiu na fronteira. Admirava o experimentalismo, escritores como Thomas Pynchon ou John Barth. Mas como aceitar que lhe dissessem que o autor tinha “morrido” quando tudo o que ele queria era ser autor? Ele ironizou nas muitas entrevistas que deu sobre o assunto. “Quis que a história se passasse nos anos 80 porque queria que a controvérsia semiótica estivesse ao rubro”, diz numa leitura pública do livro, em Toronto, sem nunca descambar para a retórica académica, interessado em defender o romance de ideias apenas enquanto as ideias têm aplicação prática na vida. No caso do romance, na vida das personagens.
Na fronteira, a síntese
A escolha do plot, ou da trama, deste seu mais recente livro é, assim, uma tese pessoal sobre o romance, depois de ter ensaiado a exclusão, de género, de classe, em Middlesex, e a total inadaptação a uma nova idade em As Virgens Suicidas. Madeleine é uma mulher na modernidade às voltas com o romantismo que aprendeu ao ler Orgulho e Preconceito. A tese final dela intitulava-se: The Marriage Plot: Romances Seleccionados de Austen Elliot e James e tinha como desafio uma frase de Trollope: “Não há felicidade no amor, a não ser no fim de um romance inglês”. Eugenides não discorda, mas formula o seu raciocínio de outro modo. A sua tentativa, ao escrever The Marriage Plot, é a de perceber como é que esse enredo fundador pode funcionar na literatura actual, num tempo em que a mulher já não depende do casamento para fixar o seu destino. Como Madeleine, que vive no conflito entre a ideia do amor eterno e a percepção da sua impossibilidade materializada na figura do instável Leonard, Eugenides divide-se entre Retrato de Uma Senhora, de Henry James, pura trama de casamento, e Retrato de Um Artista Enquanto Jovem, de James Joyce. Ele escolhe estar na fronteira entre duas obras que considera marcantes num e noutro campo, mas que não vê como contraditórias. The Marriage Plot pretende ser essa síntese.
Estrutura mais clássica e olhar mais interior do que nos dois livros que assinou antes. As personagens constroem-se de dentro para fora e não contrário, acredita, e o risco do escritor é perder-se nesse interior e com isso perder a trama. Quer evitar. Seria ficar no experimentalismo e se a perfeição existe não está aí. Eugeneides persegue-a mais ou menos como Madeleine persegue a ideia de um amor. Como a sua personagem, sabe o que é idealizar. Um dia sonhou tornar-se uma espécie de santo sem saber quase nada de religião até ler Milton; como Mitchell viajou para a Índia depois de um périplo pela Europa e também foi voluntário de Madre Teresa de Calcutá. As semelhanças entre eles não terminam aqui. Mitchell é de Detroit e também descende de gregos que foram para a América a fugir da pobreza. Tal qual Callope Stephanides, a protagonista dividida entre dois sexos de Middlesex. Mais: Mitchell acabou a faculdade em 1982. Eugenides em 1983. Mas Jeffrey Eugenides procurou a sua religião na literatura e fez-se escritor para tentar o que Stephan Dedalus, protagonista de Retrato do Artista Enquanto Jovem, de Joyce, se propunha fazer: formar a consciência não formada da “raça”.
Ambicioso. Por essa ambição Eugenides vive na solidão da escrita, numa rotina diária das dez da manhã às oito da noite. Mesmo que não saia uma palavra, mantém-se no escritório, o mais despojado possível. Tem um estúdio com vista que usa para receber visitas. Em momentos de maior pressão, fuma um charuto, na rua. Funciona como activador de inspiração. Chá, café, olhar o ecrã de computador. Demora-se. Com medo de errar e a pensar, como um dia um professor o aconselhou, que está a escrever para o mais exigente e sábio dos amigos, que o irá interpelar ao menor erro e perante o qual terá de saber justificar-se. “Há momentos nos romances que são absolutamente verdadeiros”, disse na mesma conversa em Toronto. “É esse tipo de romance, onde por vezes se encontra a verdade, que quero escrever.” É a ideia de ordenar o caos em que acha a ficção mais capa do que a realidade. Nela, talvez encontre o sentido. Procura-o e, nessa busca, tem ensaiado várias vozes. Arriscou construir um “eu plural” na estreia, com As Virgens Suicidas, no qual contava o suicídio de cinco irmãs numa cidade do Michigan onde crescera. Em Middlesex colocou-se na cabeça de um hermafrodita, alguém entre dois sexos a contar a saga de uma família de emigrantes da Grécia, três gerações narradas numa efervescência pouco comum. Atenção à linguagem, ritmo, ironia, e a angústia e o desapontamento de crescer ou viver numa pele que nem sempre assenta bem. Até The Marriage Plot, onde o narrador está de fora, mas informado de tudo sobre cada personagem. É a esse narrador que se dirige a pergunta de um leitor: “Leonard, o rapaz depressivo e brilhante que usava uma fita à volta da cabeça, foi criado à imagem do escritor David Foster Wallace?” “Claro que não”, responde por ele Eugenides, farto dessa comparação. “A fita à volta da cabeça é a de Axel Rose, dos Guns N’ Roses”, esclarece.
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O escritor seguia no comboio de Manhattan para Princeton quando se envolveu numa rixa com um grupo de hooligans bêbados. Foi em 2011, pouco depois de publicar o seu terceiro romance. Por esses dias, tinha uma entrevista que não adiou e uma sessão fotográfica que não desmarcou. Nela, aparece de olho negro e nada a esconder. Não adiantou pormenores sobre o que se passou naquela viagem de comboio, episódio que se pode comparar ao isco que os professores lhe atiravam quando era miúdo antes de lhe dizerem “agora faz o favor de continuar como enredo” e ele ter percebido que queria mesmo ser escritor. Jeffrey Eugenides, 53 anos, três romances publicados, nove short-stories, e apontado como um dos mais talentosos autores das letras norte-americanas, a par com David Foster Wallace (1962-2008) ou Jonathan Franzen (1959), lembra o princípio desse desejo. Tinha uns 16 anos. Aos 28 foi viver para Nova Iorque. Teve empregos precários, escrevendo às escondidas até ser apanhado e despedido. Essa história de início é replicada por ele em cada entrevista. As pessoas querem saber dos desaires passados quando o futuro confirmou o sucesso. E no comboio para Princeton? Sobre isso, nada. Terá sido uma trama de amor? Ao posar de olho negro para a objectiva do fotógrafo Grant Delin, Eugenides sabe das possibilidades contidas na curiosidade e tornou-se ele mesmo potencial personagem de uma ficção sobre a qual apenas quis controlar o princípio. Ficava assim assinalado o momento da edição de The Marriage Plot, um dos livros mais aguardados desse ano na América. Tinham passado nove desde que publicara Middlesex, vencedor do Pulitzer em 2002, romance muito aplaudido pela crítica, e 18 após a estreia com As Virgens Suicidas que Sofia Coppola adaptou ao cinema em 1999.
Jeffrey Eugenides Kent, filho de mãe irlandesa e pai grego, tem muito dos seus romances e das suas personagens na sua biografia que vai mantendo cada vez menos reservada. Em Princeton, onde vive e dá aulas de escrita criativa, esteve à conversa com Juliette Lewis, a actriz/cantora (Darcy da série Portlândia, ou a adolescente de O Cabo do Medo, 1991). Era ela a entrevistadora da Interview. Ele disse-lhe, então, que antes de tudo quis ser actor, quando vivia com os pais em Detroit, cidade onde nasceu e de onde saiu aos 18 anos para “aprender” a ser escritor na Universidade de Brown. Ela interpelou-o: “Como pode alguém deixar aquela cidade ao abandono? Ela é um diamante.” Ele volta sempre. Em visitas, nos livros, nas conversas, mas não conhece os clubes nocturnos onde Juliette vai muitas vezes cantar. Eugenides não teve tempo de os frequentar. Saiu estava a cidade a ruir com o desaire da indústria automóvel.
Passaram mais de dois anos desde essa conversa onde entre outras coisas ele conta a génese. Recorda que estava num quarto quase vazio de Chicago, isolado do seu ambiente, longe de casa, quando encontrou Madeleine. Não era para ser assim. Era para continuar a escrever o livro que se seguiria a Middlesex, mas quando estava às voltas com uma personagem feminina ela escapou-lhe e o romance a que pertencia a rapariga que ainda não tinha nome foi abandonado. Em vez dele Eugenides escreveu The Marriage Plot, título a desafiar os bons tradutores, livro que parte da ideia de enredo amoroso tradicional num tempo em que as mulheres já não dependem desse amor como dependiam quando nasceu o romance vitoriano. Publicado nos EUA em 2011, vai chegar agora a Portugal pela D. Quixote numa tradução de Francisco Agarez. O título? A Trama de Casamento. “Parece-me que é o que melhor homenageia o romance inglês do século XIX que, no meu modesto entender, o livro de Eugenides recria”, justificou ao Ípsilon o tradutor.
Não há consensos. Eugenides é certeiro em inglês. Middlesex, o anterior, não teve tradução. Foi em português como no original. Em Eugenides nenhuma palavra é ao acaso. Não basta lê-lo. É preciso ouvi-lo ler o que escreve para perceber que há uma intenção em cada escolha. Andou em tournée a ler The Marriage Plot pelo país, autor/performer de uma obra que escreve de modo lento. A média dá um livro a cada nove anos. Intérprete das personagens que cria e para as quais constrói bibliotecas, casas, menus, bandas sonoras. O que sentem, lêem, comem, quem amam e como amam, o que ouvem e porque se desiludem os habitantes das histórias de Eugenides? Quase todas histórias suburbanas, de gente a sair de uma juventude formadora para a idade adulta e às voltas com uma hereditária obrigação de ser feliz. Essas biografias constroem-se em romances longos a partir de detalhes. Por exemplo, de um som.
Banda sonora
A banda sonora original de The Marriage Plot está por reunir, a biblioteca nela contida por catalogar, mas há uma canção a remeter para um tempo fundador de tudo e para uma perdição de amor. “And you may ask yourself, Well, how did I get here?” São os Talking Heads em 1980, com Once in a Lifetime a surgir em epígrafe. Bem-vindos ao mundo de Madeleine e a um princípio de romance que entra para qualquer lista exigente de bons princípios. Há um olhar para todos os livros a fixar um universo. Edith Wharton, Henry James, Dickens, Trollope, Jane Austen, George Eliot, as irmãs Bronte. Com isso consegue-se traçar um carácter. A biblioteca não revela nem um pouco o tempo em que Madeleine vive, mas também isso é revelador. Nem um contemporâneo. Se fosse no cinema talvez houvesse um movimento lento de câmara a sair das prateleiras, da secretária, para a cama. Sabe-se de uma ressaca e uma campainha interrompe um sono quase sem memória. Apenas que houve álcool e sexo numa noite que era para acabar mais cedo.
É a personagem a aparecer através dos sentidos. Todos. Tainted Love, e a cabeça a estalar. Sete e meia da manhã. Os pais beijam-na, querem saber de que tamanho é a alegria de Madeleine, conhecer o apartamento que ela partilha com duas colegas. Foram de Prettybrook até Providence para celebrar a graduação da filha. Madeleine Hanna, 21 anos, WASP (branca, anglo-saxónica, protestante) vai receber o seu diploma em Inglês pela Universidade de Brown e há uma cerimónia com todos os finalistas. Falta pouco. Só tempo para um café que ela se arrepende de ter combinado. “Sometimes I feel I’ve got to run away, I’ve got to get away from the pain you drive into the heart of me”… Os Soft Cell, tão datados num videoclip de sábado à tarde, a marcar o tom. O sentido da personagem compõe-se, agora com a variável tempo reforçada. Madeleine é uma rapariga dos subúrbios de New Jersey e para os intentos deste romance só poderia ter vivido essa passagem da universidade para a vida adulta no início dos anos 80. O autor coloca-a em 1982. Tem um café à frente e bagels torrados. O pai fixa-se no Village Voice, a mãe chama-lhe a atenção para uma nódoa no vestido. Madeleine gosta de romances vitorianos e acabou com o namorado, Leonard Bankhead, um estudante de ciências que sobe e desce rápido nas escalas do humor. Maníaco-depressivo, brilhante, divertido, pobre, sarcástico. Ela ama-o e lê-lhe Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, mas um e outro têm uma interpretação diferente do livro. Ela fez planos para viver com ele em Cape Cod, não longe dali, não longe de Nova Iorque, logo que deixasse a universidade. Contou aos pais, que preferiam que o futuro da filha fosse com Mitchell Grammaticus, o rapaz de Detroit que acaba de se formar em História das Religiões e planeia uma viagem pela Europa e depois pela Índia onde vai trabalhar como voluntário da Madre Teresa de Calcutá. E agora, fugir para onde, com quem, voltar a Prettybrook?, questiona-se Madeleine enquanto repara no rapaz ao balcão, de óculos iguais aos de Elvis Costello. Mitchell gosta de Madeleine, Madeleine gosta do flirt ocasional com Mitchell. Quer vê-lo por perto. Mas é só isso porque há Leonard
Está formado o triângulo amoroso da história. Muitos escritores andaram por este território. Os vitorianos, os modernistas, os experimentalistas, os das ideias e os dos enredos. Jeffrey Eugenides leu-os. Aos modernistas antes dos que vieram primeiro e construíram as bases. Ele é contemporâneo de Madeleine, a sua personagem, em Brown. Como ela, viveu a divisão da academia entre os que defendiam a tradição do romance clássico e os que, seguindo os pós-estruturalistas franceses, anunciavam o seu fim. Eugenides sempre se sentiu na fronteira. Admirava o experimentalismo, escritores como Thomas Pynchon ou John Barth. Mas como aceitar que lhe dissessem que o autor tinha “morrido” quando tudo o que ele queria era ser autor? Ele ironizou nas muitas entrevistas que deu sobre o assunto. “Quis que a história se passasse nos anos 80 porque queria que a controvérsia semiótica estivesse ao rubro”, diz numa leitura pública do livro, em Toronto, sem nunca descambar para a retórica académica, interessado em defender o romance de ideias apenas enquanto as ideias têm aplicação prática na vida. No caso do romance, na vida das personagens.
Na fronteira, a síntese
A escolha do plot, ou da trama, deste seu mais recente livro é, assim, uma tese pessoal sobre o romance, depois de ter ensaiado a exclusão, de género, de classe, em Middlesex, e a total inadaptação a uma nova idade em As Virgens Suicidas. Madeleine é uma mulher na modernidade às voltas com o romantismo que aprendeu ao ler Orgulho e Preconceito. A tese final dela intitulava-se: The Marriage Plot: Romances Seleccionados de Austen Elliot e James e tinha como desafio uma frase de Trollope: “Não há felicidade no amor, a não ser no fim de um romance inglês”. Eugenides não discorda, mas formula o seu raciocínio de outro modo. A sua tentativa, ao escrever The Marriage Plot, é a de perceber como é que esse enredo fundador pode funcionar na literatura actual, num tempo em que a mulher já não depende do casamento para fixar o seu destino. Como Madeleine, que vive no conflito entre a ideia do amor eterno e a percepção da sua impossibilidade materializada na figura do instável Leonard, Eugenides divide-se entre Retrato de Uma Senhora, de Henry James, pura trama de casamento, e Retrato de Um Artista Enquanto Jovem, de James Joyce. Ele escolhe estar na fronteira entre duas obras que considera marcantes num e noutro campo, mas que não vê como contraditórias. The Marriage Plot pretende ser essa síntese.
Estrutura mais clássica e olhar mais interior do que nos dois livros que assinou antes. As personagens constroem-se de dentro para fora e não contrário, acredita, e o risco do escritor é perder-se nesse interior e com isso perder a trama. Quer evitar. Seria ficar no experimentalismo e se a perfeição existe não está aí. Eugeneides persegue-a mais ou menos como Madeleine persegue a ideia de um amor. Como a sua personagem, sabe o que é idealizar. Um dia sonhou tornar-se uma espécie de santo sem saber quase nada de religião até ler Milton; como Mitchell viajou para a Índia depois de um périplo pela Europa e também foi voluntário de Madre Teresa de Calcutá. As semelhanças entre eles não terminam aqui. Mitchell é de Detroit e também descende de gregos que foram para a América a fugir da pobreza. Tal qual Callope Stephanides, a protagonista dividida entre dois sexos de Middlesex. Mais: Mitchell acabou a faculdade em 1982. Eugenides em 1983. Mas Jeffrey Eugenides procurou a sua religião na literatura e fez-se escritor para tentar o que Stephan Dedalus, protagonista de Retrato do Artista Enquanto Jovem, de Joyce, se propunha fazer: formar a consciência não formada da “raça”.
Ambicioso. Por essa ambição Eugenides vive na solidão da escrita, numa rotina diária das dez da manhã às oito da noite. Mesmo que não saia uma palavra, mantém-se no escritório, o mais despojado possível. Tem um estúdio com vista que usa para receber visitas. Em momentos de maior pressão, fuma um charuto, na rua. Funciona como activador de inspiração. Chá, café, olhar o ecrã de computador. Demora-se. Com medo de errar e a pensar, como um dia um professor o aconselhou, que está a escrever para o mais exigente e sábio dos amigos, que o irá interpelar ao menor erro e perante o qual terá de saber justificar-se. “Há momentos nos romances que são absolutamente verdadeiros”, disse na mesma conversa em Toronto. “É esse tipo de romance, onde por vezes se encontra a verdade, que quero escrever.” É a ideia de ordenar o caos em que acha a ficção mais capa do que a realidade. Nela, talvez encontre o sentido. Procura-o e, nessa busca, tem ensaiado várias vozes. Arriscou construir um “eu plural” na estreia, com As Virgens Suicidas, no qual contava o suicídio de cinco irmãs numa cidade do Michigan onde crescera. Em Middlesex colocou-se na cabeça de um hermafrodita, alguém entre dois sexos a contar a saga de uma família de emigrantes da Grécia, três gerações narradas numa efervescência pouco comum. Atenção à linguagem, ritmo, ironia, e a angústia e o desapontamento de crescer ou viver numa pele que nem sempre assenta bem. Até The Marriage Plot, onde o narrador está de fora, mas informado de tudo sobre cada personagem. É a esse narrador que se dirige a pergunta de um leitor: “Leonard, o rapaz depressivo e brilhante que usava uma fita à volta da cabeça, foi criado à imagem do escritor David Foster Wallace?” “Claro que não”, responde por ele Eugenides, farto dessa comparação. “A fita à volta da cabeça é a de Axel Rose, dos Guns N’ Roses”, esclarece.