Amor, armas, rock
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Na sua conta de Twitter, Simon Stephens escreve, explicitamente: “Sou um dramaturgo. Tenho três filhos. Três filhos. Foda-se. Vivo no East End e ando de bicicleta.” Um dramaturgo, escrevemos agora nós, que não acredita que o teatro seja um lugar para se fazer política e que tem três filhos, foda-se, três filhos que podiam ser estes adolescentes aborrecidos num colégio da classe média frequentado por gente que vive no East End e que anda de bicicleta. “Acho que uma peça que tente responder a questões torna-se, necessariamente, apolítica. Deixa de ser uma peça. Não funciona nem dramática nem politicamente.” E, no entanto, Punk Rock, que os Artistas Unidos têm em cena até 22 Fevereiro no Teatro da Politécnica, em Lisboa — é a terceira peça do autor que se apresenta em Portugal, depois de Harper Reagan, que esteve no Teatro Nacional D. Maria II em 2009, numa encenação de Ana Tamen, e de Um Precipício no Mar, que os Artistas Unidos estrearam em 2010, com encenação Jorge Silva Melo, e que repõem a partir do dia 23 —, é um exercício de compreensão que só pode ser político, porque para Stephens as palavras são acções e essas acções produzem consequências. E um dia banal pode acabar banhado a sangue.
Não é um pormenor o que o autor escreve no Twitter. Os filhos dos outros, que podiam ser os seus, são como se fossem os filhos dos espectadores, ou os próprios espectadores, inexplicavelmente culpados, sem saber a quem, ou a quê, atribuir culpas. Punk Rock, no modo como descreve as tensões entre um grupo de adolescentes, é um retrato a meio caminho entre a herança de um Noel Coward, nas curtas frases iniciais, plenas de acidez, provocadoras e outra herança que o autor define bizarramente, como romântica e onde cabem autores como John Osborne e Sarah Kane, que abriram uma chaga social na fleuma britânica. Ou seja, gerações diferentes de um mesmo teatro que foi querendo defender uma representação social o mais disruptiva possível.
“O teatro não é um dispositivo de palavras, mas de consequências”, diz Stephens em entrevista ao Ípsilon. Por isso, perguntar se o texto tem alguma responsabilidade política é um gesto retórico que assume a passividade do próprio espectador. “Sou atraído por personagens, atitudes e contextos, e a linguagem é acção. É importante que a linguagem defina uma personagem, mas é igualmente importante que aquilo que diz decorra da situação na qual se encontra e não que se perceba que é uma imposição, ou um maneirismo, do autor.”
Ao contrário de uma peça mais recente como Motortown, escrita em quatro dias — entre o anúncio de que Londres havia sido escolhida para acolher os Jogos Olímpicos de 2012 e as bombas que explodiram no metro —, a violência em Punk Rock não é exterior, como nessa peça que coloca jovens pouco mais velhos a falarem sobre as experiências na guerra do Iraque. A violência é interior, é intrínseca às personagens. Não será pela música, que Stephens admite pontuar, sublinhar, e até harmonizar o próprio texto (ouvem-se Eric’s trip, dos Sonic Youth, Kerosene, dos Big Black, e Touch me I’m sick, dos Mudhoney), mas poderia ser um bode expiatório, e um golpe fácil. Não será pela pressão social, ou parental, ou auto-infligida — mas poderia ser, porque Stephens entende que habita estas personagens um último sopro romântico, uma angst suicida de influências germânicas (O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind, Dores de Juventude, de Ferdinand Bruckner, e até A Paixão do Jovem Werther, de Goethe). Mas o autor não esclarece a origem do mal. “Não estou certo certo de que o teatro seja o lugar adequado para se ter um discurso, palavra que tem, aliás, definições contraditórias. O teatro é, acima de tudo, um lugar de incertezas e contradições.”
O medo a explodir
Punk Rock é o inicio de uma conversa que expõe o medo e o faz explodir. O desencontro emocional entre Lily, a aluna recém-chegada, e William, o rapaz que inventou a morte dos pais, é, às 8h31 da manhã na biblioteca de uma escola privada em Stockport, a história de centenas de outros rapazes e de outras raparigas. Mas quando, nas sequências seguintes, aquela mesma biblioteca, lugar de encontro dos alunos, sem guarda à vista dos professores, se transforma numa arena onde eles se disputam, competem e seduzem, se transforma, finalmente, num lugar de crime e horror, as mesmas palavras que pareciam saídas da banalidade adolescente revelam a invisível fronteira entre a acção e a consequência. A violência nasce do interior daquela banalidade, não como elemento exterior e, por isso mesmo, o que a explica é a impossibilidade de definir o seu lugar de origem.
Pedro Carraca encena o texto de Stephens de modo discreto, cuidado, quase cúmplice dos adolescentes, porque atento às subtilezas de um texto que ilude o espectador-leitor na sua dengosidade, no seu adormecimento adolescente, num quotidiano reconhecível e perigosamente confiável. Os rostos de espanto dos actores (Ana Luísa Amaral, Íris Macedo, Isac Graça, João Pedro Mamede, Marc Xavier, Pedro Gabriel Marques e Rita Cabaço) espelham a incredulidade dos espectadores perante o corte brusco na banalidade dos dias. E depois, à sétima sequência, num quarto do hospital de Suttons Manor, as perguntas do médico (António Simão) são as mesmas perguntas que, por momentos breves, os espectadores se permitem fazer. Porquê? Diz o autor: “Não é minha intenção explicitar um discurso num sistema definido e articulado. Espero introduzir conflitos e incertezas que criem no espectador a consciência da decisão. Até mesmo da decisão sobre o que é esta peça.”