Uma conferência de paz que não vai parar a guerra
Um encontro tão impossível que realizá-lo se tornou num objectivo em si mesmo. Regime sírio e oposição vão sentar-se à mesa na Suíça. Para quê, ninguém sabe ao certo.
Na Síria, a violência já matou mais de 130 mil pessoas e fez pelo menos 9 milhões de deslocados. Há dezenas de milhares de desaparecidos e acumulam-se provas de crimes de guerra. As discussões vão prolongar-se por vários dias na Suíça e em todos esses dias vão morrer sírios, debaixo de bombas, em combates, de frio e de fome.
A caricatura perfeita aconteceu esta terça-feira nos aeroportos onde as duas principais delegações fizeram escala: a do regime esteve cinco horas em Atenas à espera de autorização para reabastecer; a da oposição ia ficando numa cidade suíça “por motivos de segurança”, escreveu o jornal Tribune de Genève.
O problema é que todos os que voaram para a Suíça o fizeram por motivos diferentes e irreconciliáveis. Assad enviou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Walid Mouallem, porque percebeu que, ao ter o seu regime num fórum internacional, o legitimaria — e isso não é pouco, depois de ter sido ameaçado com uma intervenção militar, depois de tantos líderes ocidentais terem tantas vezes repetido que tinha de deixar o poder. A agenda de Assad, como o próprio tem repetido, passa por debater o combate ao terrorismo. E há terrorismo na Síria, mas, para Assad, terroristas são todos os que se lhe opõem.
A oposição síria que aceitou estar na Suíça continua a insistir que só lá vai para negociar a criação de um Governo de transição, que implica a saída de cena do ditador — e isso faz sentido, afinal foi isso que se disse ter saído de Genebra I, no Verão de 2012, e o novo encontro deveria levar à prática o que foi discutido e acordado nesse primeiro. Mas mesmo os opositores que estarão nas negociações sabem que isso não é bem assim.
“Pedimos que o principal ponto da ordem dos trabalhos seja a criação de um Governo de transição e temos isso na carta [de convite] do secretário-geral da ONU”, Ban Ki-moon, diz Louay Safy, porta-voz da Coligação Nacional Síria, o maior grupo da oposição no exilio, e a única formação política de opositores que estará presente. Sim, Genebra II pode servir para reforçar a legitimidade do regime, admite. Mas, garante, “a oposição não o vai permitir”.
A conferência dita de paz, que abre em Montreux na presença de quase 40 países e organizações, e recomeça dois dias depois em Genebra já só com as delegações do regime e da oposição, acompanhadas pelo enviado internacional para a Síria, Lakhdar Brahimi, nunca foi desejada por nenhum dos principais intervenientes. “Ninguém gosta de Genebra”, disse, numa entrevista recente ao New York Times, o ex-porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Damasco, que fugiu do país em 2012. “Todos sabem que quem for a Genebra vai perder alguma coisa aos olhos dos seus apoiantes.”
Os ausentes
A oposição tem mais a perder, e isso ficou bem claro nas dificuldades que os diferentes grupos de opositores tiveram em discutir se estariam ou não presentes. A CNS partiu-se completamente no debate. Só no sábado votou a ida à Suíça, depois de metade dos membros inicialmente presentes na assembleia ter abandonado as discussões. Já depois do incidente iraniano — Ban convidou e depois desconvidou Teerão, face às ameaças de boicote da oposição e às críticas dos EUA —, a CNS viu o principal grupo que a compunha, o Conselho Sírio, abandonar a coligação precisamente por estar contra a participação em Genebra.
Percebe-se a posição do Conselho Sírio: se Genebra falhar, como se espera, ficam salvaguardados. Outros grupos nem chegaram a discutir uma eventual presença, como o Comité de Coordenação Nacional para as Forças da Mudança Democrática, a oposição no interior, tolerada pelo regime, que considerou que ir à conferência equivale a um suicídio político. Afinal, a oposição diminuiu ao mínimo as suas exigências prévias — abertura de corredores humanitários e libertação de prisioneiros (pelo menos, os menores e as mulheres) — e nem isso se verificou.
Na Suíça, nem vão estar todos os grupos da oposição política nem muito menos estará quem tem poder sobre os grupos armados no terreno. A Frente Islâmica, por exemplo, que controla a cidade de Raqqa, a única capital de província que escapa totalmente ao controlo do regime, e onde, desde há dias, deixou de se poder ouvir música e fumar em público, não vai participar nas negociações.
Uma reunião de família
O episódio do Irão, que se prolongou entre domingo e segunda-feira à noite, sem que se percebesse se a conferência ia ou não acontecer, limitou-se a pôr a descoberto o óbvio. EUA e Rússia negociaram a realização desta conferência, mas têm diferentes interpretações dos seus objectivos; regime e oposição vão estar presentes, mas a conversa arrisca-se a ser de surdos.
“A questão não é se esta conferência vai falhar, mas como é que vai falhar”, comentou à revista Foreign Policy Richard Gowan, perito nas Nações Unidas do Centro para a Cooperação Internacional da Universidade de Nova Iorque. “É como uma reunião de família profundamente embaraçosa para todos os envolvidos; é preciso enfrentá-la e esperar que ninguém se porte demasiado mal.”
O que podem então os sírios esperar de Genebra II? Não a paz, seguramente. “Procurar o ideal e compreender o real”, resumiu esta terça-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, citando o líder socialista Jean Jaurès. “Devemos ser prudentes nas expectativas. Não vamos ver a paz triunfar durante estas discussões”, antecipou o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Frank-Walter Steinmeier.
Genebra II vai acontecer porque os EUA, a Rússia e a ONU têm de fazer alguma coisa e é isto que conseguem fazer. Em vez de falarem de paz, falam agora de conseguir melhorar a situação humanitária dos sírios. Genebra II vai acontecer porque, na Síria, ninguém está realmente a ganhar. O regime está seguro, mas não consegue esmagar bolsas de resistência, como Homs ou localidades nos arredores de Damasco, nem expulsar os rebeldes de Alepo, a maior cidade do país, há dias debaixo de intensos bombardeamentos.
Há muito tempo que se percebeu que ninguém vai ganhar a guerra e que ninguém vai desistir dela. Só por isso, Genebra II pode acabar por ser o princípio de qualquer coisa, no melhor dos casos de um longo processo de negociações.
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Na Síria, a violência já matou mais de 130 mil pessoas e fez pelo menos 9 milhões de deslocados. Há dezenas de milhares de desaparecidos e acumulam-se provas de crimes de guerra. As discussões vão prolongar-se por vários dias na Suíça e em todos esses dias vão morrer sírios, debaixo de bombas, em combates, de frio e de fome.
A caricatura perfeita aconteceu esta terça-feira nos aeroportos onde as duas principais delegações fizeram escala: a do regime esteve cinco horas em Atenas à espera de autorização para reabastecer; a da oposição ia ficando numa cidade suíça “por motivos de segurança”, escreveu o jornal Tribune de Genève.
O problema é que todos os que voaram para a Suíça o fizeram por motivos diferentes e irreconciliáveis. Assad enviou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Walid Mouallem, porque percebeu que, ao ter o seu regime num fórum internacional, o legitimaria — e isso não é pouco, depois de ter sido ameaçado com uma intervenção militar, depois de tantos líderes ocidentais terem tantas vezes repetido que tinha de deixar o poder. A agenda de Assad, como o próprio tem repetido, passa por debater o combate ao terrorismo. E há terrorismo na Síria, mas, para Assad, terroristas são todos os que se lhe opõem.
A oposição síria que aceitou estar na Suíça continua a insistir que só lá vai para negociar a criação de um Governo de transição, que implica a saída de cena do ditador — e isso faz sentido, afinal foi isso que se disse ter saído de Genebra I, no Verão de 2012, e o novo encontro deveria levar à prática o que foi discutido e acordado nesse primeiro. Mas mesmo os opositores que estarão nas negociações sabem que isso não é bem assim.
“Pedimos que o principal ponto da ordem dos trabalhos seja a criação de um Governo de transição e temos isso na carta [de convite] do secretário-geral da ONU”, Ban Ki-moon, diz Louay Safy, porta-voz da Coligação Nacional Síria, o maior grupo da oposição no exilio, e a única formação política de opositores que estará presente. Sim, Genebra II pode servir para reforçar a legitimidade do regime, admite. Mas, garante, “a oposição não o vai permitir”.
A conferência dita de paz, que abre em Montreux na presença de quase 40 países e organizações, e recomeça dois dias depois em Genebra já só com as delegações do regime e da oposição, acompanhadas pelo enviado internacional para a Síria, Lakhdar Brahimi, nunca foi desejada por nenhum dos principais intervenientes. “Ninguém gosta de Genebra”, disse, numa entrevista recente ao New York Times, o ex-porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Damasco, que fugiu do país em 2012. “Todos sabem que quem for a Genebra vai perder alguma coisa aos olhos dos seus apoiantes.”
Os ausentes
A oposição tem mais a perder, e isso ficou bem claro nas dificuldades que os diferentes grupos de opositores tiveram em discutir se estariam ou não presentes. A CNS partiu-se completamente no debate. Só no sábado votou a ida à Suíça, depois de metade dos membros inicialmente presentes na assembleia ter abandonado as discussões. Já depois do incidente iraniano — Ban convidou e depois desconvidou Teerão, face às ameaças de boicote da oposição e às críticas dos EUA —, a CNS viu o principal grupo que a compunha, o Conselho Sírio, abandonar a coligação precisamente por estar contra a participação em Genebra.
Percebe-se a posição do Conselho Sírio: se Genebra falhar, como se espera, ficam salvaguardados. Outros grupos nem chegaram a discutir uma eventual presença, como o Comité de Coordenação Nacional para as Forças da Mudança Democrática, a oposição no interior, tolerada pelo regime, que considerou que ir à conferência equivale a um suicídio político. Afinal, a oposição diminuiu ao mínimo as suas exigências prévias — abertura de corredores humanitários e libertação de prisioneiros (pelo menos, os menores e as mulheres) — e nem isso se verificou.
Na Suíça, nem vão estar todos os grupos da oposição política nem muito menos estará quem tem poder sobre os grupos armados no terreno. A Frente Islâmica, por exemplo, que controla a cidade de Raqqa, a única capital de província que escapa totalmente ao controlo do regime, e onde, desde há dias, deixou de se poder ouvir música e fumar em público, não vai participar nas negociações.
Uma reunião de família
O episódio do Irão, que se prolongou entre domingo e segunda-feira à noite, sem que se percebesse se a conferência ia ou não acontecer, limitou-se a pôr a descoberto o óbvio. EUA e Rússia negociaram a realização desta conferência, mas têm diferentes interpretações dos seus objectivos; regime e oposição vão estar presentes, mas a conversa arrisca-se a ser de surdos.
“A questão não é se esta conferência vai falhar, mas como é que vai falhar”, comentou à revista Foreign Policy Richard Gowan, perito nas Nações Unidas do Centro para a Cooperação Internacional da Universidade de Nova Iorque. “É como uma reunião de família profundamente embaraçosa para todos os envolvidos; é preciso enfrentá-la e esperar que ninguém se porte demasiado mal.”
O que podem então os sírios esperar de Genebra II? Não a paz, seguramente. “Procurar o ideal e compreender o real”, resumiu esta terça-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, citando o líder socialista Jean Jaurès. “Devemos ser prudentes nas expectativas. Não vamos ver a paz triunfar durante estas discussões”, antecipou o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Frank-Walter Steinmeier.
Genebra II vai acontecer porque os EUA, a Rússia e a ONU têm de fazer alguma coisa e é isto que conseguem fazer. Em vez de falarem de paz, falam agora de conseguir melhorar a situação humanitária dos sírios. Genebra II vai acontecer porque, na Síria, ninguém está realmente a ganhar. O regime está seguro, mas não consegue esmagar bolsas de resistência, como Homs ou localidades nos arredores de Damasco, nem expulsar os rebeldes de Alepo, a maior cidade do país, há dias debaixo de intensos bombardeamentos.
Há muito tempo que se percebeu que ninguém vai ganhar a guerra e que ninguém vai desistir dela. Só por isso, Genebra II pode acabar por ser o princípio de qualquer coisa, no melhor dos casos de um longo processo de negociações.