Há uma cave no Porto que ouve dizer poesia há 25 anos
O quarto de século de poesia no Pinguim Café, no centro histórico da cidade, é celebrado com uma antologia de poetas que foram passando por lá, de Daniel Maia-Pinto Rodrigues a Valter Hugo Mãe. Esta segunda-feira, um volume comemorativo é lançado na Biblioteca Almeida Garrett.
O actor Rui Spranger não diz poesia sozinho na cave do Pinguim-Café, no centro histórico do Porto. Alterna com quem se senta à volta das mesas, com um, ou dois, ou três, ou mesmo uma pilha de livros à frente. Ninguém se inscreve. Ele, o mestre-de-cerimónias, está atento – há alguém que levanta o braço; alguém que levanta o corpo todo; alguém, mais tímido, que com insistência segura um livro aberto.
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O actor Rui Spranger não diz poesia sozinho na cave do Pinguim-Café, no centro histórico do Porto. Alterna com quem se senta à volta das mesas, com um, ou dois, ou três, ou mesmo uma pilha de livros à frente. Ninguém se inscreve. Ele, o mestre-de-cerimónias, está atento – há alguém que levanta o braço; alguém que levanta o corpo todo; alguém, mais tímido, que com insistência segura um livro aberto.
As sessões começaram há 25 anos nesta cave pela mão do poeta e crítico Joaquim Castro Caldas (1956-2008). Desde então, por ela passaram inúmeros poetas, dizedores, amantes de poesia. Para o provar, está a Antologia da Cave, que esta segunda-feira, pelas 21h30, é apresentada na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto.
No início, era quase só Castro Caldas a dizer, a dizer. Dizia muito Fernando Pessoa e seus heterónimos. Dizia muito o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros.
O autor Amílcar Mendes foi dos primeiros a ganhar o seu espaço na cave. Durante doze anos, vestia-se de preto às segundas-feiras e ia ao Pinguim, como quem ia à missa. Depois, vieram muitos outros – Daniel Maia-Pinto Rodrigues, João Habitualmente, José João Sardinha, Valter Hugo Mãe, Pedro Lamares, Filipa Leal…
O Pinguim era um dos poucos sítios abertos à segunda-feira à noite. A cave podia encher-se de gente, envolta em fumo, animada pelo álcool e pela poesia. “Havia coisas arrancadas a ferro e fogo”, recorda o habitué Isaque Ferreira. A qualquer instante, Castro Caldas podia intimar alguém a dizer um poema. E ai da criatura que se engasgasse, que comesse alguma palavra ou cometesse outra heresia qualquer.
Foi ali que o poeta Daniel Maia-Pinto Rodrigues começou a dizer poesia. Dizia poesia como se pedisse misericórdia. Ganhou confiança, redobrou a sua vontade. Sentia-se em casa. “Era um sítio bem frequentado”, lembra, agora. Testou ali o efeito de muitos dos seus poemas. Escrevê-los, nem por isso, embora tivesse sempre com ele, como ainda agora, uma caneta barata e um caderno de capa preta, com folhas pautadas, para o caso de lhe aparecer alguma frase.
Sim, forjaram-se poetas naquela cave pouco iluminada, fumegante. Naqueles primeiros anos, até se lançaram pequenos livros: fez-se uma micro-colecção semanal intitulada Pinguim Poesia em Pó.
Valter Hugo Mãe era um rapaz tímido protegido pela penumbra. Sentia a poesia, ali, como “uma espécie de festividade arruaceira: tinha uma componente de celebração e, ao mesmo tempo, de protesto”. Bem ouvia Castro Caldas bradar contra os lavadinhos de mais, contra os bem-vestidos de mais, contra os perfumados de mais, que não concebia como parte da resistência popular.
O então jovem escritor arriscou dizer alguns poemas curtos. Dizia-os num tom tão baixo que mal se ouviam. Castro Caldas respeitava-o, mesmo assim. “Eu não era adversário para nada. Com um grito, morria”, diz. Mas aprendia muito. Aquele era um lugar de partilha, de descoberta – de textos, de autores, de pessoas.
Em 2000, com a mudança de gerência, Castro Caldas decidiu regressar a Lisboa. Alguns tentaram aguentar o barco, num período conturbado; entre eles, Pedro Lamares e Tiago Meireles, que faziam mais espectáculos improvisados do que poesia participada. Não era a mesma coisa. As noites definharam. Houve até um interregno. Mas, há dez anos, Rui Spranger, actor, tomou as rédeas das noites do Pinguim.
Spranger dá a palavra, sem perguntar o que de lá vem. E tanto pode vir um poema erudito como um apimentado ou “javardola”. Não há tema. Por vezes, alguém pega num tema, suponhamos, o mar ou a mãe, e logo outros o seguem com poemas que lhe parecem vir mesmo a propósito.
O actor recuperou o velho espírito da cave ao assumir o risco do improviso, mas tem um estilo muito próprio. Gere sem se impor. Resultado: sessões descontraídas em que os poemas ditos por todos, de vez em quando, dão lugar aos poemas cantados por Rui David ao som da sua guitarra.
"O importante [para que as noites de poesia permaneçam] é haver gente que gosta tanto, que raramente falha uma segunda-feira”, diz Spranger. Fez-se uma comunidade. “As pessoas partilham o gosto pela poesia e acabam por se ir conhecendo, por ir falando umas com as outras.”
Uns ficam para ali, a ouvir, a ouvir. Outros não resistem a dizer, a dizer. Diz-se muito Fernando Pessoa e seus heterónimos, Mário de Sá-Carneiro, Ary dos Santos, António Gedeão, Ruy Belo, Mário Cesariny Vasconcelos, Manuel António Pina, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Jorge Sousa Braga, João Habitualmente.
Entre os amantes de poesia, continua a aparecer um ou outro poeta. Alguns dizem-se muito a si próprios, como Renato Filipe Cardoso e Eduardo Leal. Usam a granítica cave como laboratório. Eduardo Leal acha mesmo que a sua poesia ganhou uma nova dimensão desde que começou a frequentar o Pinguim, há uns três anos. Agora, escreve para ser dito e isso faz diferença.
Antologia da Cave, editado pela Associação Apuro, com o apoio do Pinguim Café, segue a filosofia das noites de poesia: não houve intervenção editorial – procuraram-se os poetas que, nalgum dia, disseram poesia ali e cada um deles foi convidado a escolher dois textos.
Esta segunda-feira, no auditório da Biblioteca Almeida Garrett, muitos dirão os seus próprios poemas. A noite continuará depois na cave do Pinguim. No fim, todos cantarão o “cançoninho”, escrito por Joaquim Castro Caldas, como de costume. O retrato dele está na parede.