É urgente sermos mais isso: humanos

É a partir dos detalhes que se constrói a grandeza e é por nos termos esquecido do nosso valor individual que deixámos que se instalasse um esmagador egoísmo e desinteresse pela vida humana

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Catarina Sanches

Desde pequenina que o faço. Talvez porque a minha infância se repartiu entre o campo e a cidade e, nas aldeias, nos são oferecidos sorrisos apenas porque “sai mesmo à mãe”. Ou talvez tenha herdado esta faceta da minha avó que sempre me ensinou que há coisas que só existem quando são partilhadas. De facto, o olá, o boa tarde e os sorrisos só existem quando são dirigidos a alguém. E, seja lá pelo motivo que for, a mim sempre me fez sentido partilhá-los com aqueles que se penduram do lado de lá das janelas que dão para a minha rua.

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Desde pequenina que o faço. Talvez porque a minha infância se repartiu entre o campo e a cidade e, nas aldeias, nos são oferecidos sorrisos apenas porque “sai mesmo à mãe”. Ou talvez tenha herdado esta faceta da minha avó que sempre me ensinou que há coisas que só existem quando são partilhadas. De facto, o olá, o boa tarde e os sorrisos só existem quando são dirigidos a alguém. E, seja lá pelo motivo que for, a mim sempre me fez sentido partilhá-los com aqueles que se penduram do lado de lá das janelas que dão para a minha rua.

Alguns fitam-me com um olhar desconfiado e há também aqueles que fingem não me ouvir, mas a estes desculpo-os já que ninguém os avisou que este “olá” não lhes vai ser deduzido no valor da reforma. Com alguma persistência, algures à terceira ou quarta tentativa, já lhes vejo um sorriso desenhado no olhar e, de entre muitas histórias, há uma velhinha que guardo com especial carinho.

O seu nome era Maria José e respondeu-me com um generoso sorriso logo na primeira vez que nos cruzámos. Logo ali eu soube que tinha feito uma amiga. Contou-me que era de Portimão e que gostava de viver em Lisboa embora lhe fizesse falta o mar. Às vezes ia de comboio até Cascais para enganar a saudade e quando tinha as sobrinhas de visita lá em casa dizia-se feliz, “enchem-me a casa, são uma alegria”. Quando eu gostava mesmo de me cruzar com ela era com a roupa de sexta-feira. Tinha sempre uma brincadeira na ponta da língua, porque “quando uma menina se veste assim é porque vai ter com o namorado, quem é ele, conte lá!”. Nesses dias relembrava que “antes não era nada como é agora” e que se um rapaz lhe piscava o olho tinham de namorar em segredo, embora assim até soubesse melhor. Com o tempo comecei a vê-la menos, utilizo mais o carro e passo menos tempo na zona. Mas de quando a quando ainda me cruzava com o seu sorriso à janela e nunca deixei de parar para saber como estava.

Um dia encontrei uma rapariga mais nova à janela. Pensei que fosse uma das sobrinhas de quem tanto gostava a senhora e perguntei-lhe pela Maria José. Ela não sabia a quem eu me referia. Angustiou-me constatar que perdemos mesmo o interesse nas pessoas. Deixámos de valorizar a existência dos outros e de ter em conta os detalhes das histórias de cada um. Estamos sempre prontos para apontar o dedo à falta de humanidade do vizinho mas quando a história é connosco respondemos prontamente que somos apenas um e que, portanto, estamos indubitavelmente condenados a não fazer a diferença. Mentira. Os pequenos gestos contam. É a partir dos detalhes que se constrói a grandeza e é por nos termos esquecido do nosso valor individual que deixámos que se instalasse um esmagador egoísmo e desinteresse pela vida humana.

Afinal, a rapariga era a nova inquilina da casa. Respondeu-me que a Maria José faleceu. “Lamento. Era da família?” Respondi-lhe que sim. Tudo o que fazemos conta. É urgente darmos mais valor aos seres humanos. É urgente sermos mais isso: humanos.