Um homem do Sul

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Vinte quilos a menos: eis como se fez este Ron Woodroof que deu a Matthew McConaughey o Globo de Ouro e pode pô-lo no caminho dos Óscares CARLO ALLEGRI/ REUTERS

É uma anedota que vale o que vale: a mãe de Lee Daniels, realizador de O Mordomo, é fã de Matthew McConaughey. Quando viu o actor no papel de um jornalista homossexual no filme anterior do filho, Um Rapaz do Sul, perguntou-lhe chorosa: “O que é que tu fizeste ao meu Matthew McConaughey?”

Daniels não fez nada que o próprio não quisesse fazer a si próprio. E o que McConaughey quis fazer a si próprio pô-lo no caminho dos Óscares com o filme que esta semana chega às salas portuguesas: macilento, com quase 20 quilos a menos, para encarnar Ron Woodroof, electricista do Texas que se torna num improvável activista no combate à sida em O Clube de Dallas, de Jean-Marc Vallée. Apesar de inspirado por uma história verídica, o filme tem sido acusado de faltar à verdade dos factos, mas mesmo os detractores tiram o chapéu à interpretação de McConaughey, que lhe valeu para já o Globo de Ouro de melhor actor, entregue na madrugada de domingo. 

Entretanto, a nomeação para os Óscares está claramente à esquina, mas não há nada de cínico nem de calculista na presença de McConaughey neste filme. Nem nos outros todos que, ao longo dos últimos dois anos, construíram uma das menos previsíveis reinvenções de um actor americano — de aspirante a vedeta mainstream, empurrado por Hollywood para encaixar numa gaveta pré-definida, a actor “de risco” que literalmente “rouba” o filme às estrelas nominais (confirmar o seu patrão de um clube de strip masculino em Magic Mike, de Steven Soderbergh). Numa entrevista feita em 2012 com o jornalista Dennis Lim para o New York Times, McConaughey avisava que essa reinvenção não se deveu a nenhuma epifania do género “é agora ou nunca”, antes ao seu cansaço com os guiões que lhe eram oferecidos. Farto de ser “carinha laroca” em comédias românticas de linha de montagem, McConaughey começou a recusar esses projectos e “de modo cíclico”, a “atrair outro tipo de coisas”.

O ponto de viragem foi Cliente de Risco (2011), de Brad Furman, um policial ainda relativamente mainstream mas estreado na mesma altura em que William Friedkin levava a Veneza Killer Joe, com McConaughey no papel de um polícia corrupto que é assassino contratado nas horas vagas. Seguiram-se, em rápida sucessão, Morre e Deixa-me em Paz, de Richard Linklater (2011), Um Rapaz do Sul, de Lee Daniels, o referido Magic Mike, e Fuga, de Jeff Nichols (todos de 2012), e O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese (2013). De repente, redescobríamos um actor que parecia encurralado no nicho de comédias românticas de segunda classe como Como Perder um Homem em 10 Dias, Como Despachar um Encalhado ou O Tesouro Encalhado — e que escapava à armadilha com piruetas inesperadas.

Telúrico e confiante

À superfície, parece haver algo de comum entre todas estas personagens e todos estes filmes em que McConaughey foi anunciando o seu novo fôlego. Muitos deles transpiram uma sensibilidade ruralista, uma ambiência de “gótico sulista” — e todos sabemos como o Sul dos EUA é um manancial inesgotável de histórias de que resultam alguns dos pontos mais altos da cultura, literária ou fílmica, americana. Nascido no Texas, e continuando a morar parte do ano em Austin, McConaughey seria assim o actor perfeito para Danny Buck Davidson, o promotor público em cruzada de Morre e Deixa-me em Paz, ou para Mud, o criminoso relutante por amor de Fuga, o actor capaz de lhes atribuir uma mais-valia de “veracidade” nascida da experiência “em primeira mão” — William Friedkin não escondeu que escolhera McConaughey para a peça de Tracy Letts que adaptou em Killer Joe em parte por vir da zona do Texas onde tudo se passava.

Mas se é verdade que essa “ligação à terra” não deve ser subestimada — sobretudo numa cultura que valoriza as histórias do Sul —, o crítico Wesley Morris estará mais perto da verdade num artigo da revista on-line Grantland, ao propor que o “segredo” desta reinvenção residirá na mera presença física do actor, no lado simultaneamente telúrico e confiante, no modo como as suas interpretações parecem ser indissociáveis do seu corpo, do seu movimento, da sua convicção de ser um sedutor. Para Morris, McConaughey teria passado a maior parte da sua carreira, após a revelação em 1993 em Dazed and Confused, de Richard Linklater, a tentar encarnar “tipos” que pouco tinham a ver com a sua natureza — em thrillers legais de John Grisham (Tempo de Matar, de Joel Schumacher), em papéis secundários de filmes de prestígio (Contacto, de Robert Zemeckis, ou Amistad, de Steven Spielberg), em tentativas de herói de acção (Sahara, de Breck Eisner, Submarino U-571, de Jonathan Mostow, Reino de Fogo, de Rob Bowman). O que ajuda (e muito) à teoria de Morris é que ou ninguém se lembra dos filmes, ou ninguém se lembra de McConaughey neles. (William Friedkin dizia, ao New York Times, que o filme que o convenceu finalmente do actor certo para Killer Joe foi o pouco conhecido Pela Mão do Senhor, outro “gótico sulista” dirigido pelo actor Bill Paxton.)

Não é preciso mais para perceber essa lógica do que ver McConaughey nas duas-três cenas de O Lobo de Wall Street em que surge, interpretando o primeiro “chefe” da personagem de Leonardo di Caprio. Mark Hanna, o corretor amoral que enumera as regras do jogo, transpira charme, sucesso, confiança, é a quintessência do macho alfa americano, o mentor no qual Jordan Belfort/Di Caprio se modela; alguém que constrói o seu próprio mundo e dá as cartas nele. Tal como todas as outras desta segunda fase da carreira de McConaughey, é uma personagem larger than life, magnética, sedutora, cuja capacidade de sedução e de envolvimento num mundo ideal mascara as dúvidas e angústias que ancoram essa fachada. Como se McConaughey estivesse, ele próprio, a comentar as personagens que o popularizaram enquanto “carinha laroca”, ao mesmo tempo que as desmonta e que dá a entender o que se esconde por trás delas — e, no processo, exercitando os seus talentos para lá do que lhe tinha até agora sido exigido. Outra vez Friedkin a Dennis Lim no New York Times: Hollywood desvaloriza as carinhas larocas como actores. “Eles não querem que se represente, apenas que o actor esteja no plateau e faça amor com a estrela do filme de modo convincente. Alguém como o Matthew tem de tomar conta da sua própria carreira porque os estúdios vão querer que ele faça sempre o mesmo papel.”

Por isso é que McConaughey está, finalmente, a cumprir aquilo que escreveu em tempos num dos seus diários pessoais e revelou a Dennis Lim: “Vamos tentar não fazer um filme para mim e outro para eles. Vamos fazer um para mim, dois para mim, três para mim, quatro para mim, cinco para mim, e esperar que algum deles funcione para eles também.” Prova disso: ao mesmo tempo que se fala dele para os Óscares por O Clube de Dallas, o actor surge numa nova série televisiva do canal HBO, True Detective (contracenando com outro americano subestimado, Woody Harrelson), e vamos vê-lo, para o final do ano, no novo Christopher Nolan,Interstellar. 

A mãe de Lee Daniels pode não ter gostado, mas é melhor habituar-se: Matthew McConaughey já não é, apenas, uma carinha laroca.

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É uma anedota que vale o que vale: a mãe de Lee Daniels, realizador de O Mordomo, é fã de Matthew McConaughey. Quando viu o actor no papel de um jornalista homossexual no filme anterior do filho, Um Rapaz do Sul, perguntou-lhe chorosa: “O que é que tu fizeste ao meu Matthew McConaughey?”

Daniels não fez nada que o próprio não quisesse fazer a si próprio. E o que McConaughey quis fazer a si próprio pô-lo no caminho dos Óscares com o filme que esta semana chega às salas portuguesas: macilento, com quase 20 quilos a menos, para encarnar Ron Woodroof, electricista do Texas que se torna num improvável activista no combate à sida em O Clube de Dallas, de Jean-Marc Vallée. Apesar de inspirado por uma história verídica, o filme tem sido acusado de faltar à verdade dos factos, mas mesmo os detractores tiram o chapéu à interpretação de McConaughey, que lhe valeu para já o Globo de Ouro de melhor actor, entregue na madrugada de domingo. 

Entretanto, a nomeação para os Óscares está claramente à esquina, mas não há nada de cínico nem de calculista na presença de McConaughey neste filme. Nem nos outros todos que, ao longo dos últimos dois anos, construíram uma das menos previsíveis reinvenções de um actor americano — de aspirante a vedeta mainstream, empurrado por Hollywood para encaixar numa gaveta pré-definida, a actor “de risco” que literalmente “rouba” o filme às estrelas nominais (confirmar o seu patrão de um clube de strip masculino em Magic Mike, de Steven Soderbergh). Numa entrevista feita em 2012 com o jornalista Dennis Lim para o New York Times, McConaughey avisava que essa reinvenção não se deveu a nenhuma epifania do género “é agora ou nunca”, antes ao seu cansaço com os guiões que lhe eram oferecidos. Farto de ser “carinha laroca” em comédias românticas de linha de montagem, McConaughey começou a recusar esses projectos e “de modo cíclico”, a “atrair outro tipo de coisas”.

O ponto de viragem foi Cliente de Risco (2011), de Brad Furman, um policial ainda relativamente mainstream mas estreado na mesma altura em que William Friedkin levava a Veneza Killer Joe, com McConaughey no papel de um polícia corrupto que é assassino contratado nas horas vagas. Seguiram-se, em rápida sucessão, Morre e Deixa-me em Paz, de Richard Linklater (2011), Um Rapaz do Sul, de Lee Daniels, o referido Magic Mike, e Fuga, de Jeff Nichols (todos de 2012), e O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese (2013). De repente, redescobríamos um actor que parecia encurralado no nicho de comédias românticas de segunda classe como Como Perder um Homem em 10 Dias, Como Despachar um Encalhado ou O Tesouro Encalhado — e que escapava à armadilha com piruetas inesperadas.

Telúrico e confiante

À superfície, parece haver algo de comum entre todas estas personagens e todos estes filmes em que McConaughey foi anunciando o seu novo fôlego. Muitos deles transpiram uma sensibilidade ruralista, uma ambiência de “gótico sulista” — e todos sabemos como o Sul dos EUA é um manancial inesgotável de histórias de que resultam alguns dos pontos mais altos da cultura, literária ou fílmica, americana. Nascido no Texas, e continuando a morar parte do ano em Austin, McConaughey seria assim o actor perfeito para Danny Buck Davidson, o promotor público em cruzada de Morre e Deixa-me em Paz, ou para Mud, o criminoso relutante por amor de Fuga, o actor capaz de lhes atribuir uma mais-valia de “veracidade” nascida da experiência “em primeira mão” — William Friedkin não escondeu que escolhera McConaughey para a peça de Tracy Letts que adaptou em Killer Joe em parte por vir da zona do Texas onde tudo se passava.

Mas se é verdade que essa “ligação à terra” não deve ser subestimada — sobretudo numa cultura que valoriza as histórias do Sul —, o crítico Wesley Morris estará mais perto da verdade num artigo da revista on-line Grantland, ao propor que o “segredo” desta reinvenção residirá na mera presença física do actor, no lado simultaneamente telúrico e confiante, no modo como as suas interpretações parecem ser indissociáveis do seu corpo, do seu movimento, da sua convicção de ser um sedutor. Para Morris, McConaughey teria passado a maior parte da sua carreira, após a revelação em 1993 em Dazed and Confused, de Richard Linklater, a tentar encarnar “tipos” que pouco tinham a ver com a sua natureza — em thrillers legais de John Grisham (Tempo de Matar, de Joel Schumacher), em papéis secundários de filmes de prestígio (Contacto, de Robert Zemeckis, ou Amistad, de Steven Spielberg), em tentativas de herói de acção (Sahara, de Breck Eisner, Submarino U-571, de Jonathan Mostow, Reino de Fogo, de Rob Bowman). O que ajuda (e muito) à teoria de Morris é que ou ninguém se lembra dos filmes, ou ninguém se lembra de McConaughey neles. (William Friedkin dizia, ao New York Times, que o filme que o convenceu finalmente do actor certo para Killer Joe foi o pouco conhecido Pela Mão do Senhor, outro “gótico sulista” dirigido pelo actor Bill Paxton.)

Não é preciso mais para perceber essa lógica do que ver McConaughey nas duas-três cenas de O Lobo de Wall Street em que surge, interpretando o primeiro “chefe” da personagem de Leonardo di Caprio. Mark Hanna, o corretor amoral que enumera as regras do jogo, transpira charme, sucesso, confiança, é a quintessência do macho alfa americano, o mentor no qual Jordan Belfort/Di Caprio se modela; alguém que constrói o seu próprio mundo e dá as cartas nele. Tal como todas as outras desta segunda fase da carreira de McConaughey, é uma personagem larger than life, magnética, sedutora, cuja capacidade de sedução e de envolvimento num mundo ideal mascara as dúvidas e angústias que ancoram essa fachada. Como se McConaughey estivesse, ele próprio, a comentar as personagens que o popularizaram enquanto “carinha laroca”, ao mesmo tempo que as desmonta e que dá a entender o que se esconde por trás delas — e, no processo, exercitando os seus talentos para lá do que lhe tinha até agora sido exigido. Outra vez Friedkin a Dennis Lim no New York Times: Hollywood desvaloriza as carinhas larocas como actores. “Eles não querem que se represente, apenas que o actor esteja no plateau e faça amor com a estrela do filme de modo convincente. Alguém como o Matthew tem de tomar conta da sua própria carreira porque os estúdios vão querer que ele faça sempre o mesmo papel.”

Por isso é que McConaughey está, finalmente, a cumprir aquilo que escreveu em tempos num dos seus diários pessoais e revelou a Dennis Lim: “Vamos tentar não fazer um filme para mim e outro para eles. Vamos fazer um para mim, dois para mim, três para mim, quatro para mim, cinco para mim, e esperar que algum deles funcione para eles também.” Prova disso: ao mesmo tempo que se fala dele para os Óscares por O Clube de Dallas, o actor surge numa nova série televisiva do canal HBO, True Detective (contracenando com outro americano subestimado, Woody Harrelson), e vamos vê-lo, para o final do ano, no novo Christopher Nolan,Interstellar. 

A mãe de Lee Daniels pode não ter gostado, mas é melhor habituar-se: Matthew McConaughey já não é, apenas, uma carinha laroca.