Chegou a vez de dar a voz

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DAVID CLIFFORD/ ARQUIVO

A meio de uma investigação de 2010 sobre o quotidiano no Vale do Ave (des)industrializado, o sociólogo Bruno Monteiro, da Universidade do Porto, confrontou-se com um trabalho realizado pela investigadora americana Alice Ingerson em 1980: perguntas semelhantes feitas às pessoas da mesma região, com uma diferença de 30 anos.

“Ao comparar as respostas, reconhece-se que o que era negativo em 1980 pode não o ser em 2010. Há uma visão mitificada do passado em função do tempo que decorreu. Existem espaços onde se exercem censuras, e solicitações dentro desses espaços são sempre pontos de vista social e historicamente radicados sobre as vidas das pessoas, não são uma visão autêntica e única da História”, explica.

São desta natureza as dúvidas de quem faz História Oral: como confiar nestas vozes informais, vozes como as nossas, sujeitas a falhas da memória, que nos contam narrativas por vezes fragmentárias ou incongruentes, dependentes da passagem do tempo, dos seus próprios interesses, das suas visões pessoais ou das suas trajectórias de vida? Fazer História Oral é ter sempre presentes as limitações dessa fonte viva que conta ao historiador o que se passou (e como se passou) em determinado momento. “É necessário ver esses testemunhos em perspectiva, compreender a trajectória daqueles sujeitos e a sua situação no momento da entrevista”, continua Monteiro.

O Ípsilon ouviu vários investigadores que usam (e que não usam) métodos da História Oral, recorrendo a entrevistas e testemunhos para documentar factos históricos, e concluiu que, apesar de diferentes abordagens, há um consenso sobre os riscos, as limitações, os desafios e as alternativas de um método que pode ser olhado com desconfiança, mas que se impõe cada vez mais como uma necessidade para investigadores que hoje fazem História.

No ano em que se celebram os 40 anos da revolução de 1974, não podia ser mais significativo referir que foi a partir da criação do Centro de Documentação 25 de Abril na Universidade de Coimbra, em 1984, que se iniciou um projecto pioneiro de História Oral em Portugal — documentando, através de entrevistas e da recuperação de material disperso, a transição do Estado Novo para a democracia. O actual director do Centro, Rui Bebiano, explica que o arquivo, fundado por Boaventura de Sousa Santos em 1990, “tinha por objectivo a recolha de testemunhos do maior número possível de militares relacionados com a preparação e a sequência do 25 de Abril e do PREC”. A investigadora Manuela Cruzeiro realizou dezenas de entrevistas a militares de Abril (Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Melo Antunes, etc.) e o arquivo contém ainda depoimentos de figuras da oposição ao regime ou do exílio político. O projecto é “naturalmente para continuar, embora neste momento os seus elevados custos e os escassos meios humanos de que o Centro dispõe não permitam avançar com a velocidade e a intensidade” desejáveis, explica Bebiano.

No passado mês de Novembro, o Centro 25 de Abril e o Centro de Estudos Sociais (CES) organizaram um seminário de dois dias, em Coimbra, em que se apresentou a primeira tradução para português de um conjunto de ensaios do investigador italiano especialista em História Oral Alessandro Portelli, A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios (edição unipop, tradução de Bruno Cordovil e Miguel Cardina). A este encontro seguiu-se outro mais curto, em Braga, um mês depois, e hoje mesmo, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Miguel Cardina coordena mais um dia de discussão sobre História Oral para investigadores.

Luísa Tiago de Oliveira lecciona no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa a única cadeira de História Oral do país (para alunos de mestrado). Num artigo publicado em 2010, traça a génese da mesma em Portugal nos anos 90, demonstrando que com os trabalhos de Antropologia de Paula Godinho e Inês Fonseca o método começou a disseminar-se em várias disciplinas — mais de 40 anos depois do seu surgimento nos EUA, com o Columbia Oral History Research Office, primeiro como estudo das elites, depois do folclore e do povo, e da sua gradual apropriação na América Latina, por exemplo, que conserva desde os anos 1950-60 uma forte tradição do testemunho (Cuba, Argentina, ou Brasil).

No seu artigo, Luísa Tiago de Oliveira demonstra que na última década o recurso à oralidade pelos investigadores portugueses em Ciências Sociais é exponencial, sobretudo nos trabalhos interdisciplinares (Ciências Políticas, Antropologia, Sociologia, História, Estudos Culturais) e nas temáticas contemporâneas. E os encontros têm-se sucedido: em 2011 houve a Jornada de História Oral da Universidade Popular do Porto, em 2012 o encontro de três dias da HOPER (História Oral Portuguesa em Rede).

Mas nem todos os historiadores que trabalham temas contemporâneos sentem necessidade de recorrer a testemunhos. Repare-se que “os testemunhos orais não são significativamente citados ou nomeados como fonte de informação por vários autores de referência da História do Estado Novo e do 25 de Abril. São estes, por exemplo, os casos de César Oliveira, Fernando Rosas, José Medeiros Ferreira ou António Costa Pinto, cujas teses de doutoramento datam respectivamente de 1987, 1990, 1991 e 1992”, escreve Oliveira.

Miguel Bandeira Jerónimo, do Instituto de Ciências Sociais (ICS), não tem experiência com o método, “não por qualquer espécie de reserva epistemológica ou metodológica”, mas apenas porque a natureza dos seus objectos de estudo ou das suas interrogações “assim não o exigiu”, diz. “Não vejo que se imponha com ‘naturalidade’ e não me parece que pelo facto de se estudarem períodos mais recentes, ou temas específicos como os fenómenos imperiais e coloniais, se tenha necessariamente de recorrer a esse método.” Ainda assim, sublinha, “o princípio da interdisciplinaridade é um que devemos promover. Infelizmente, a ‘razão’ e o enfeudamento disciplinar, as ortodoxias dos campos disciplinares e os arranjos institucionais dos saberes não recompensam esse esforço, que ainda por cima é difícil, exigente e trabalhoso”.

Já Dulce Freire, também do ICS, que desde o final dos anos 90 tem trabalhado História rural e da agricultura no século XX, começou por recorrer a entrevistas e a métodos da Antropologia (com Godinho e Fonseca), incorporando-as depois no seu trabalho como historiadora. Não faz sentido, diz, “não incluir fontes orais num processo de construção de fontes no período contemporâneo”: “Hoje tudo é fonte — a paisagem, um objecto, uma carta, a roupa, o corpo e os gestos das pessoas — e as entrevistas também podem ser fonte. Não há limites para a construção das fontes e o historiador deve recolhê-las em função do problema que quer esclarecer. Se o problema carece de entrevistas ou testemunhos orais, se o argumento assim o exige, tem de os fazer, sob pena de ter de explicar por que não os encontrou.”

Também para Rui Bebiano, a história recente, porque aborda temas e acontecimentos com os quais se relacionam “testemunhas que permanecem vivas”, tem exigido o recurso a entrevistas. “No caso da História portuguesa, sem o seu uso o reconhecimento de domínios tão diferentes como a resistência cultural ao Estado Novo, o estudo dos processos da polícia política e da censura, o papel dos movimentos da extrema-esquerda, a vivência da Guerra Colonial ou da presença portuguesa em África e os fenómenos da deserção política e do exílio perder-se-iam para sempre. Seria quase criminoso se, como historiador interessado nesses temas, recusasse usar essas fontes para recuperar fragmentos do passado capazes de preencher as lacunas que os escassos documentos escritos deixam em aberto.”

Mas ainda assim — e apesar de, como argumenta Bruno Monteiro, “em Portugal [haver] condições moleculares excepcionais para fazer História Oral”—, continua a haver muita resistência: “Como ainda não está institucionalizada, não há ninguém que se sinta na obrigação de segui-la.”

Questões de contexto

Miguel Cardina é investigador do CES e recorreu a testemunhos (mais de 100 entrevistas e depoimentos por e-mail) para o doutoramento sobre a extrema-esquerda que resultou no livro Margem de Certa Maneira — O Maoismo em Portugal 1964-1974, editado pela Tinta-da-China. Entrevistar pessoas tornou-se imperativo: “Os documentos escritos podem dar-nos muita informação, mas não toda. O tema do maoismo implicava trabalhar um série de organizações num contexto político-social no qual as fontes, sobretudo as escritas, a que tinha acesso — comunicados internos, recortes clandestinos, documentação policial, relatórios da PIDE — tinham problemas”, explica. Foi necessário confrontá-las com quem viveu esse período: não só foi “possível, como também foi desejável, falar com as pessoas que tiveram essa militância política”.

É neste período da História recente que faz sentido debater a abordagem do historiador face às fontes, e a diferença entre fontes orais e escritas. Se numa tradição positivista, à século XIX, o historiador sabe que um documento escrito (um registo, uma acta, um artigo de imprensa, um tratado) foi produzido num determinado contexto histórico, social, económico e com determinado objectivo, no caso de um testemunho oral pode haver dúvidas em relação à sua “autenticidade”. “Quando olho para um documento oficial percebo que é um documento produzido em determinado contexto, com um objectivo. Quando analiso um depoimento, tenho de ter o mesmo tipo de preocupação”, explica Silvestre Lacerda, arquivista e director cessante do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Hoje, mesmo com as tecnologias disponíveis (gravadores, vídeos, suportes digitais), “ainda não chegámos, para os testemunhos orais, ao mesmo apuro na construção da fonte, na detecção da sua autenticidade e na sua análise crítica”.

Isto não quer dizer que os documentos escritos não possam igualmente ser erróneos ou “fabricados” — da mesma maneira que “construímos” memórias ou narrativas em função de censuras, tabus, derrotas pessoais, ou do tom triunfalista que gostaríamos de dar ao nosso passado. Continua Silvestre Lacerda: “Quando analisamos um documento escrito, mesmo um acto notarial ou um relatório de um Governador Civil, que são as nossas fontes primárias na maior parte das vezes, ele também tem significado em si. Há o contexto de produção do próprio documento. Ou seja: muitas vezes chama-se a atenção, e bem, para as limitações da chamada História Oral, mas não temos o mesmo cuidado quando tratamos de documentos escritos, oficiais.”

Os relatórios da PIDE/DGS são disso exemplo: como Miguel Cardina (que no trabalho sobre os maoístas teve de mergulhar nos arquivos da polícia política do Estado Novo), também Silvestre Lacerda, numa investigação para a Universidade Popular do Porto, entrevistou pessoas que estiveram na clandestinidade. Em ambos os casos, os únicos documentos escritos existentes à época sobre estudantes, organizações políticas e partidárias, sindicalistas, clandestinas ou de resistência são os relatórios da PIDE. “Por um lado, a PIDE não sabia tudo; por vezes, até sabia muito pouco. Por outro, muitas informações podiam ter sido dadas sob tortura”, explica Cardina. Sem recuo do historiador em relação a essas informações obtidas em circunstâncias extremas, “a polícia estaria a ganhar duas vezes: primeiro quando prendeu as pessoas [na altura] e agora porque o ‘discurso oficial’ é o único registo que temos da época”, continua Lacerda.

O mesmo tipo de problema se colocou a Dalila Cabrita Mateus ao longo do seu trabalho sobre a PIDE/DGS na Guerra Colonial. A historiadora explica que “é nos processos-crime que fica o depoimento do preso, [mas] claro que ele está debaixo duma grande violência, pois é obrigado a dizer o que viu, o que ouviu”. A historiadora sabia que “a realidade sobre o acontecimento em si não estava nos arquivos”. Era preciso “procurar relatos e ouvir o outro lado para perceber o que tinha acontecido”: “Mesmo que fosse ao arquivo do processo-crime, não era ali que encontraria o que me interessava. Ali não estariam os relatos em primeira pessoa dos desânimos, dos choros, dos gritos de violência, da dor da família”, conta. “Tudo isto só podia encontrar ao recolher testemunhos.”

Nem sempre “as fontes que nos chegam do passado têm as respostas que pretendemos”, completa Cardina. Fazer perguntas é, pois, importante para o desejável contraponto com as fontes escritas: “Através das fontes orais podemos perceber o que nos dizem certos textos em linguagem cifrada ou até triunfalista.” Bruno Monteiro corrobora: “Isto só se percebe fazendo a crítica das fontes: a fonte, neste caso, é o próprio testemunho. Não importa que seja oral, desde que lhe apliquemos todos os procedimentos metodológicos.” E Silvestre Lacerda remata: “Temos de seguir um aparato crítico. Às vezes, os historiadores estão mais desarmados, menos vigilantes, quando se trata de documentação oficial do que quando se trata de um testemunho oral.”

Com voz ou sem?

Além da falibilidade dos testemunhos, do ruído introduzido pela assimetria de poder entre entrevistador e entrevistado, das “guerras de memórias” (como refere o historiador António Araújo) entre diferentes facções, há desafios constantes que se colocam quando se recorre à oralidade. Não se trata, sublinha Miguel Bandeira Jerónimo, de uma divisão entre historiadores “‘velhos’ e ‘novos’ ou ‘clássicos’ e ‘inovadores’; ‘conservadores’ e ‘emancipadores’” (divisão que de resto “serve essencialmente para duas coisas: para legitimar a ‘autoridade’ institucionalizada dos primeiros; para legitimar a suposta ‘inovação’, ‘ruptura’, ‘diferenciada’ investigação dos segundos)”. Há, argumenta, “inúmeras razões para questionar os que sacralizam a História Oral, ou desconhecem/desvalorizam os seus perigos. A História não é, e não pode ser, um mero instrumento da memória individual ou de grupo. É assim que se reforçam mitos”.

Esta é, talvez, a discussão mais complexa sobre o recurso à oralidade pelo historiador: a História Oral serve as elites, que sempre tiveram acesso ao poder, aos média, à educação e à alfabetização, ou serve os sem-voz, os subalternos, os esquecidos da História, os vencidos? Serve a ideologia ou a militância — à direita ou à esquerda?

“A mistificação e a celebração pública dos grandes homens (muito menos das grandes mulheres), dos ‘heróis’, dos ‘exemplos’, de certos ‘grupos’, vive disso. Ora isso tanto sucede à esquerda como à direita”, diz Miguel Bandeira Jerónimo. Rui Bebiano: “Um dos mais importantes contributos da História Oral prende-se com a possibilidade que ela tem de confrontar a história dos vencedores, aquela que domina o discurso público — o do poder e o dos média — com versões alternativas do mesmo passado.”

Luísa Tiago Oliveira sublinha que “todas as vozes de todas as pessoas são património. Mesmo as que não estão gravadas, mesmo as que não foram ouvidas”. E não só a dos “sem-voz”, lembra: “A História Oral começou nos EUA não como a voz dos sem-voz mas como a voz das elites.” A preocupação com a militância dos historiadores (à esquerda ou à direita) não é, por isso, legítima neste contexto: “É um disparate. Fazer teses sobre a Reforma Agrária é ser militante?”, pergunta. “Há uma tese de uma politóloga americana que ouviu pessoas em Portel; depois houve outras teses sobre a Reforma Agrária, como a do António Barreto. O António Barreto é de direita ou de esquerda? Usa entrevistas numa tese sobre a Reforma Agrária...”. A historiadora sublinha que “há bons trabalhos de História Oral que se centraram mais no estudo da perspectiva dos trabalhadores rurais, mas também há outros que supostamente procuraram abarcar todos os grupos sociais envolventes e que, na prática, desconsideram os trabalhadores rurais e consideram os outros, os ricos”. Depois, acrescenta, “em sociedades muito polarizadas, não é possível estudar todos. Se como antropóloga quiser estudar ladrões e polícias ao mesmo tempo, não consigo. Se tenho a confiança dos ladrões, não tenho a dos polícias.”

Bruno Monteiro ressalva: “O historiador não pode praticar História Oral como catarse pessoal. Insisto muito na questão da metodologia e na questão epistemológica para nos libertamos de constrangimentos ou leituras políticas.” E Miguel Cardina completa ainda: “Os objectos que escolhemos estudar são sempre objectos que, de uma maneira ou de outra, nos interessam. Nesse sentido, todos os historiadores têm uma visão interessada, mas isso não significa que não se faça História com rigor. Não há nenhum enviesamento político intrínseco no uso de fontes orais. Isso é um fantasma.”

Silvestre Lacerda conclui a discussão com um exemplo distante do século XX, sublinhando que também sobre documentos escritos (históricos, antigos, consensuais ou canónicos) podemos fazer diferentes leituras: “Se estivermos os dois a olhar para o Tratado de Tordesilhas [1494], de certeza que vamos encontrar coisas diferentes. Não quer dizer que os nossos olhares estejam ambos certos ou ambos errados. No caso das fontes orais, trata-se de, com o aparelho que temos e a metodologia que desenvolvemos, sermos capazes de olhar para estas pessoas também como uma fonte.”

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A meio de uma investigação de 2010 sobre o quotidiano no Vale do Ave (des)industrializado, o sociólogo Bruno Monteiro, da Universidade do Porto, confrontou-se com um trabalho realizado pela investigadora americana Alice Ingerson em 1980: perguntas semelhantes feitas às pessoas da mesma região, com uma diferença de 30 anos.

“Ao comparar as respostas, reconhece-se que o que era negativo em 1980 pode não o ser em 2010. Há uma visão mitificada do passado em função do tempo que decorreu. Existem espaços onde se exercem censuras, e solicitações dentro desses espaços são sempre pontos de vista social e historicamente radicados sobre as vidas das pessoas, não são uma visão autêntica e única da História”, explica.

São desta natureza as dúvidas de quem faz História Oral: como confiar nestas vozes informais, vozes como as nossas, sujeitas a falhas da memória, que nos contam narrativas por vezes fragmentárias ou incongruentes, dependentes da passagem do tempo, dos seus próprios interesses, das suas visões pessoais ou das suas trajectórias de vida? Fazer História Oral é ter sempre presentes as limitações dessa fonte viva que conta ao historiador o que se passou (e como se passou) em determinado momento. “É necessário ver esses testemunhos em perspectiva, compreender a trajectória daqueles sujeitos e a sua situação no momento da entrevista”, continua Monteiro.

O Ípsilon ouviu vários investigadores que usam (e que não usam) métodos da História Oral, recorrendo a entrevistas e testemunhos para documentar factos históricos, e concluiu que, apesar de diferentes abordagens, há um consenso sobre os riscos, as limitações, os desafios e as alternativas de um método que pode ser olhado com desconfiança, mas que se impõe cada vez mais como uma necessidade para investigadores que hoje fazem História.

No ano em que se celebram os 40 anos da revolução de 1974, não podia ser mais significativo referir que foi a partir da criação do Centro de Documentação 25 de Abril na Universidade de Coimbra, em 1984, que se iniciou um projecto pioneiro de História Oral em Portugal — documentando, através de entrevistas e da recuperação de material disperso, a transição do Estado Novo para a democracia. O actual director do Centro, Rui Bebiano, explica que o arquivo, fundado por Boaventura de Sousa Santos em 1990, “tinha por objectivo a recolha de testemunhos do maior número possível de militares relacionados com a preparação e a sequência do 25 de Abril e do PREC”. A investigadora Manuela Cruzeiro realizou dezenas de entrevistas a militares de Abril (Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Melo Antunes, etc.) e o arquivo contém ainda depoimentos de figuras da oposição ao regime ou do exílio político. O projecto é “naturalmente para continuar, embora neste momento os seus elevados custos e os escassos meios humanos de que o Centro dispõe não permitam avançar com a velocidade e a intensidade” desejáveis, explica Bebiano.

No passado mês de Novembro, o Centro 25 de Abril e o Centro de Estudos Sociais (CES) organizaram um seminário de dois dias, em Coimbra, em que se apresentou a primeira tradução para português de um conjunto de ensaios do investigador italiano especialista em História Oral Alessandro Portelli, A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios (edição unipop, tradução de Bruno Cordovil e Miguel Cardina). A este encontro seguiu-se outro mais curto, em Braga, um mês depois, e hoje mesmo, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Miguel Cardina coordena mais um dia de discussão sobre História Oral para investigadores.

Luísa Tiago de Oliveira lecciona no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa a única cadeira de História Oral do país (para alunos de mestrado). Num artigo publicado em 2010, traça a génese da mesma em Portugal nos anos 90, demonstrando que com os trabalhos de Antropologia de Paula Godinho e Inês Fonseca o método começou a disseminar-se em várias disciplinas — mais de 40 anos depois do seu surgimento nos EUA, com o Columbia Oral History Research Office, primeiro como estudo das elites, depois do folclore e do povo, e da sua gradual apropriação na América Latina, por exemplo, que conserva desde os anos 1950-60 uma forte tradição do testemunho (Cuba, Argentina, ou Brasil).

No seu artigo, Luísa Tiago de Oliveira demonstra que na última década o recurso à oralidade pelos investigadores portugueses em Ciências Sociais é exponencial, sobretudo nos trabalhos interdisciplinares (Ciências Políticas, Antropologia, Sociologia, História, Estudos Culturais) e nas temáticas contemporâneas. E os encontros têm-se sucedido: em 2011 houve a Jornada de História Oral da Universidade Popular do Porto, em 2012 o encontro de três dias da HOPER (História Oral Portuguesa em Rede).

Mas nem todos os historiadores que trabalham temas contemporâneos sentem necessidade de recorrer a testemunhos. Repare-se que “os testemunhos orais não são significativamente citados ou nomeados como fonte de informação por vários autores de referência da História do Estado Novo e do 25 de Abril. São estes, por exemplo, os casos de César Oliveira, Fernando Rosas, José Medeiros Ferreira ou António Costa Pinto, cujas teses de doutoramento datam respectivamente de 1987, 1990, 1991 e 1992”, escreve Oliveira.

Miguel Bandeira Jerónimo, do Instituto de Ciências Sociais (ICS), não tem experiência com o método, “não por qualquer espécie de reserva epistemológica ou metodológica”, mas apenas porque a natureza dos seus objectos de estudo ou das suas interrogações “assim não o exigiu”, diz. “Não vejo que se imponha com ‘naturalidade’ e não me parece que pelo facto de se estudarem períodos mais recentes, ou temas específicos como os fenómenos imperiais e coloniais, se tenha necessariamente de recorrer a esse método.” Ainda assim, sublinha, “o princípio da interdisciplinaridade é um que devemos promover. Infelizmente, a ‘razão’ e o enfeudamento disciplinar, as ortodoxias dos campos disciplinares e os arranjos institucionais dos saberes não recompensam esse esforço, que ainda por cima é difícil, exigente e trabalhoso”.

Já Dulce Freire, também do ICS, que desde o final dos anos 90 tem trabalhado História rural e da agricultura no século XX, começou por recorrer a entrevistas e a métodos da Antropologia (com Godinho e Fonseca), incorporando-as depois no seu trabalho como historiadora. Não faz sentido, diz, “não incluir fontes orais num processo de construção de fontes no período contemporâneo”: “Hoje tudo é fonte — a paisagem, um objecto, uma carta, a roupa, o corpo e os gestos das pessoas — e as entrevistas também podem ser fonte. Não há limites para a construção das fontes e o historiador deve recolhê-las em função do problema que quer esclarecer. Se o problema carece de entrevistas ou testemunhos orais, se o argumento assim o exige, tem de os fazer, sob pena de ter de explicar por que não os encontrou.”

Também para Rui Bebiano, a história recente, porque aborda temas e acontecimentos com os quais se relacionam “testemunhas que permanecem vivas”, tem exigido o recurso a entrevistas. “No caso da História portuguesa, sem o seu uso o reconhecimento de domínios tão diferentes como a resistência cultural ao Estado Novo, o estudo dos processos da polícia política e da censura, o papel dos movimentos da extrema-esquerda, a vivência da Guerra Colonial ou da presença portuguesa em África e os fenómenos da deserção política e do exílio perder-se-iam para sempre. Seria quase criminoso se, como historiador interessado nesses temas, recusasse usar essas fontes para recuperar fragmentos do passado capazes de preencher as lacunas que os escassos documentos escritos deixam em aberto.”

Mas ainda assim — e apesar de, como argumenta Bruno Monteiro, “em Portugal [haver] condições moleculares excepcionais para fazer História Oral”—, continua a haver muita resistência: “Como ainda não está institucionalizada, não há ninguém que se sinta na obrigação de segui-la.”

Questões de contexto

Miguel Cardina é investigador do CES e recorreu a testemunhos (mais de 100 entrevistas e depoimentos por e-mail) para o doutoramento sobre a extrema-esquerda que resultou no livro Margem de Certa Maneira — O Maoismo em Portugal 1964-1974, editado pela Tinta-da-China. Entrevistar pessoas tornou-se imperativo: “Os documentos escritos podem dar-nos muita informação, mas não toda. O tema do maoismo implicava trabalhar um série de organizações num contexto político-social no qual as fontes, sobretudo as escritas, a que tinha acesso — comunicados internos, recortes clandestinos, documentação policial, relatórios da PIDE — tinham problemas”, explica. Foi necessário confrontá-las com quem viveu esse período: não só foi “possível, como também foi desejável, falar com as pessoas que tiveram essa militância política”.

É neste período da História recente que faz sentido debater a abordagem do historiador face às fontes, e a diferença entre fontes orais e escritas. Se numa tradição positivista, à século XIX, o historiador sabe que um documento escrito (um registo, uma acta, um artigo de imprensa, um tratado) foi produzido num determinado contexto histórico, social, económico e com determinado objectivo, no caso de um testemunho oral pode haver dúvidas em relação à sua “autenticidade”. “Quando olho para um documento oficial percebo que é um documento produzido em determinado contexto, com um objectivo. Quando analiso um depoimento, tenho de ter o mesmo tipo de preocupação”, explica Silvestre Lacerda, arquivista e director cessante do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Hoje, mesmo com as tecnologias disponíveis (gravadores, vídeos, suportes digitais), “ainda não chegámos, para os testemunhos orais, ao mesmo apuro na construção da fonte, na detecção da sua autenticidade e na sua análise crítica”.

Isto não quer dizer que os documentos escritos não possam igualmente ser erróneos ou “fabricados” — da mesma maneira que “construímos” memórias ou narrativas em função de censuras, tabus, derrotas pessoais, ou do tom triunfalista que gostaríamos de dar ao nosso passado. Continua Silvestre Lacerda: “Quando analisamos um documento escrito, mesmo um acto notarial ou um relatório de um Governador Civil, que são as nossas fontes primárias na maior parte das vezes, ele também tem significado em si. Há o contexto de produção do próprio documento. Ou seja: muitas vezes chama-se a atenção, e bem, para as limitações da chamada História Oral, mas não temos o mesmo cuidado quando tratamos de documentos escritos, oficiais.”

Os relatórios da PIDE/DGS são disso exemplo: como Miguel Cardina (que no trabalho sobre os maoístas teve de mergulhar nos arquivos da polícia política do Estado Novo), também Silvestre Lacerda, numa investigação para a Universidade Popular do Porto, entrevistou pessoas que estiveram na clandestinidade. Em ambos os casos, os únicos documentos escritos existentes à época sobre estudantes, organizações políticas e partidárias, sindicalistas, clandestinas ou de resistência são os relatórios da PIDE. “Por um lado, a PIDE não sabia tudo; por vezes, até sabia muito pouco. Por outro, muitas informações podiam ter sido dadas sob tortura”, explica Cardina. Sem recuo do historiador em relação a essas informações obtidas em circunstâncias extremas, “a polícia estaria a ganhar duas vezes: primeiro quando prendeu as pessoas [na altura] e agora porque o ‘discurso oficial’ é o único registo que temos da época”, continua Lacerda.

O mesmo tipo de problema se colocou a Dalila Cabrita Mateus ao longo do seu trabalho sobre a PIDE/DGS na Guerra Colonial. A historiadora explica que “é nos processos-crime que fica o depoimento do preso, [mas] claro que ele está debaixo duma grande violência, pois é obrigado a dizer o que viu, o que ouviu”. A historiadora sabia que “a realidade sobre o acontecimento em si não estava nos arquivos”. Era preciso “procurar relatos e ouvir o outro lado para perceber o que tinha acontecido”: “Mesmo que fosse ao arquivo do processo-crime, não era ali que encontraria o que me interessava. Ali não estariam os relatos em primeira pessoa dos desânimos, dos choros, dos gritos de violência, da dor da família”, conta. “Tudo isto só podia encontrar ao recolher testemunhos.”

Nem sempre “as fontes que nos chegam do passado têm as respostas que pretendemos”, completa Cardina. Fazer perguntas é, pois, importante para o desejável contraponto com as fontes escritas: “Através das fontes orais podemos perceber o que nos dizem certos textos em linguagem cifrada ou até triunfalista.” Bruno Monteiro corrobora: “Isto só se percebe fazendo a crítica das fontes: a fonte, neste caso, é o próprio testemunho. Não importa que seja oral, desde que lhe apliquemos todos os procedimentos metodológicos.” E Silvestre Lacerda remata: “Temos de seguir um aparato crítico. Às vezes, os historiadores estão mais desarmados, menos vigilantes, quando se trata de documentação oficial do que quando se trata de um testemunho oral.”

Com voz ou sem?

Além da falibilidade dos testemunhos, do ruído introduzido pela assimetria de poder entre entrevistador e entrevistado, das “guerras de memórias” (como refere o historiador António Araújo) entre diferentes facções, há desafios constantes que se colocam quando se recorre à oralidade. Não se trata, sublinha Miguel Bandeira Jerónimo, de uma divisão entre historiadores “‘velhos’ e ‘novos’ ou ‘clássicos’ e ‘inovadores’; ‘conservadores’ e ‘emancipadores’” (divisão que de resto “serve essencialmente para duas coisas: para legitimar a ‘autoridade’ institucionalizada dos primeiros; para legitimar a suposta ‘inovação’, ‘ruptura’, ‘diferenciada’ investigação dos segundos)”. Há, argumenta, “inúmeras razões para questionar os que sacralizam a História Oral, ou desconhecem/desvalorizam os seus perigos. A História não é, e não pode ser, um mero instrumento da memória individual ou de grupo. É assim que se reforçam mitos”.

Esta é, talvez, a discussão mais complexa sobre o recurso à oralidade pelo historiador: a História Oral serve as elites, que sempre tiveram acesso ao poder, aos média, à educação e à alfabetização, ou serve os sem-voz, os subalternos, os esquecidos da História, os vencidos? Serve a ideologia ou a militância — à direita ou à esquerda?

“A mistificação e a celebração pública dos grandes homens (muito menos das grandes mulheres), dos ‘heróis’, dos ‘exemplos’, de certos ‘grupos’, vive disso. Ora isso tanto sucede à esquerda como à direita”, diz Miguel Bandeira Jerónimo. Rui Bebiano: “Um dos mais importantes contributos da História Oral prende-se com a possibilidade que ela tem de confrontar a história dos vencedores, aquela que domina o discurso público — o do poder e o dos média — com versões alternativas do mesmo passado.”

Luísa Tiago Oliveira sublinha que “todas as vozes de todas as pessoas são património. Mesmo as que não estão gravadas, mesmo as que não foram ouvidas”. E não só a dos “sem-voz”, lembra: “A História Oral começou nos EUA não como a voz dos sem-voz mas como a voz das elites.” A preocupação com a militância dos historiadores (à esquerda ou à direita) não é, por isso, legítima neste contexto: “É um disparate. Fazer teses sobre a Reforma Agrária é ser militante?”, pergunta. “Há uma tese de uma politóloga americana que ouviu pessoas em Portel; depois houve outras teses sobre a Reforma Agrária, como a do António Barreto. O António Barreto é de direita ou de esquerda? Usa entrevistas numa tese sobre a Reforma Agrária...”. A historiadora sublinha que “há bons trabalhos de História Oral que se centraram mais no estudo da perspectiva dos trabalhadores rurais, mas também há outros que supostamente procuraram abarcar todos os grupos sociais envolventes e que, na prática, desconsideram os trabalhadores rurais e consideram os outros, os ricos”. Depois, acrescenta, “em sociedades muito polarizadas, não é possível estudar todos. Se como antropóloga quiser estudar ladrões e polícias ao mesmo tempo, não consigo. Se tenho a confiança dos ladrões, não tenho a dos polícias.”

Bruno Monteiro ressalva: “O historiador não pode praticar História Oral como catarse pessoal. Insisto muito na questão da metodologia e na questão epistemológica para nos libertamos de constrangimentos ou leituras políticas.” E Miguel Cardina completa ainda: “Os objectos que escolhemos estudar são sempre objectos que, de uma maneira ou de outra, nos interessam. Nesse sentido, todos os historiadores têm uma visão interessada, mas isso não significa que não se faça História com rigor. Não há nenhum enviesamento político intrínseco no uso de fontes orais. Isso é um fantasma.”

Silvestre Lacerda conclui a discussão com um exemplo distante do século XX, sublinhando que também sobre documentos escritos (históricos, antigos, consensuais ou canónicos) podemos fazer diferentes leituras: “Se estivermos os dois a olhar para o Tratado de Tordesilhas [1494], de certeza que vamos encontrar coisas diferentes. Não quer dizer que os nossos olhares estejam ambos certos ou ambos errados. No caso das fontes orais, trata-se de, com o aparelho que temos e a metodologia que desenvolvemos, sermos capazes de olhar para estas pessoas também como uma fonte.”

Notícia corrigida dia 21 de Janeiro: Bruno Monteiro é sociólogo