Vem o estupor do cancro e vai-nos ao bolso da vida
Estas humildes letras são dedicadas à N., aos que perderam amados para o cancro e àqueles que bravamente o enfrentam dia após dia
Era um dia de outono, em 2011. Mais uma entrevista, mais um artigo para fazer. No caso, já não me recordo bem em que contexto, encontrar alguém que tivesse vencido a batalha contra o cancro. A N., cujo nome não será aqui revelado em respeito a si e aos seus, era uma mulher feliz. Ainda não tinha chegado aos 40 e tinha já sulcos cravados numa juventude roubada pela doença. Mesmo assim, era uma vencedora.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Era um dia de outono, em 2011. Mais uma entrevista, mais um artigo para fazer. No caso, já não me recordo bem em que contexto, encontrar alguém que tivesse vencido a batalha contra o cancro. A N., cujo nome não será aqui revelado em respeito a si e aos seus, era uma mulher feliz. Ainda não tinha chegado aos 40 e tinha já sulcos cravados numa juventude roubada pela doença. Mesmo assim, era uma vencedora.
Uma entrevista sem "glamour" nenhum, num café de bairro no meio de nenhures, escondido para os lados de Sintra. A N. estava ainda abalada pelos tratamentos, mas tinha no olhar o brilho da esperança. “Vou poder viver outra vez, dar aulas aos meus queridos alunos”, dizia-me cheia de alegria.
A N. tinha fintado por duas vezes o cancro. Perdoem-me a falha mas a pouca memória que resistiu ao vigor dos dias não me permite saber ao certo o lugar das incidências da maleita. Ainda assim, a N. vencera o cancro. Basta-me saber isso.
Graças às maravilhas do século XXI, fui-lhe acompanhando o regresso à normalidade. Ao longe, observava-lhe os comentários internáuticos e confortava-me saber que a N. estava bem e, acima de tudo, viva. Até ao dia. Até àquele dia de há poucas semanas. Homenagens de conhecidos seus inundaram-lhe a página pessoal online. “Descansa em paz”, “foste uma mulher cheia de coragem”, “nunca nos esqueceremos de ti”. O habitual. O triste habitual. A N. perdeu uma guerra apesar de ter passado os últimos meses a vencer as batalhas todas. Que raio de estratégia militar nos leva desta maneira?
É estranho ver desaparecer pessoas que conhecemos por um dia. A memória está mesmo aqui à mão de semear, cristalizada no outono de há uns anos. A memória que nos deixa sonhar que aquela pessoa há-de estar mesmo aqui, à distância de um telefonema. E depois, vai-se a ver, e ninguém atende do outro lado. Porque o bastardo do cancro não pede licença para regressar, atreve-se a ir-nos ao bolso da vida e rouba mais um ser dos nossos.
Morreremos sempre de alguma coisa, de qualquer coisa. O elixir da vinda ainda não saiu da mitologia e parecer tardar em chegar. De qualquer forma, são pessoas como ela que nos dão lições sobre como enfrentar a ceifeira: a lutar, com cada célula saudável.
Que se lixe o cancro. A vontade da vida será sempre capaz de o esmagar. Mais um dia, mais uma vitória. Nos laboratórios, há outros heróis que trabalham a tempo inteiro para nos livrar de vez da maldição. Até lá, mais cairão e outros sobreviverão. Hoje eu, amanhã tu, ou vice-versa ou nada disto. Mas, acima de tudo, lembra-te: se caíres, não te esqueças de cair de pé. É desta forma que sempre serás recordado. Tu e todos aqueles que já perdeste. Tu e todos aqueles que foram roubados pelo estupor do cancro.
Estas humildes letras são dedicadas à N., aos que perderam amados para o cancro e àqueles que bravamente o enfrentam dia após dia.